Trabalho no lixo

Justa causa de acusado de beber em serviço é revertida

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7 de outubro de 2006, 7h01

A demissão por justa causa sob a alegação de que o catador de lixo teria bebido em serviço deve ser revertida. A decisão é do juiz Grijalbo Coutinho, da 19ª Vara do Trabalho de Brasília. Ele entendeu que a embriaguez não foi comprovada e que seria até justificável pelo duro trabalho exercido.

A empresa alegou que o empregado foi demitido por chegar embriagado no trabalho. Sustentou ainda que no dia em que foi demitido brigou com o motorista do caminhão que com quem trabalhava, o que foi registrado em boletim de ocorrência. Ele se apresentou ao trabalho supostamente alcoolizado no dia 30 de abril deste ano, mas o contrato só foi rescindido no dia 3 de maio.

O empregado nega que tenha trabalhado embriagado. A prova de que o fato teria ocorrido se basearia em duas testemunhas que são funcionárias da empresa. Elas disseram que o catador de lixo não estava em estado normal e que parecia ter tomado alguma bebida alcoólica.

Segundo o juiz, as suposições não são suficientes para demitir o empregado por justa causa, “penalidade mais severa aplicável ao empregado, algo capaz de macular para sempre a sua trajetória de trabalhador”.

Para o juiz, mesmo que o empregado tenha bebido em serviço, isso não deveria ser levado contra ele. “É penoso o trabalho de coletor de lixo urbano. Logo, a utilização de bebida alcoólica pela respectiva categoria profissional deve ser avaliada dentro deste contexto.” Em vez de punir o empregado que recolhe lixo por ter bebido uma cerveja ou cachaça durante o expediente, o juiz entende que a empresa deveria oferecer melhores condições de trabalho.

O juiz não conheceu a justa causa, já que a embriaguez não foi comprovada e também porque “a atividade insalubre desempenhada pelo autor pode levá-lo, sim, à busca do antídoto contra odores exalados do lixo transportado, ainda mais quando a empregadora não fornece ao trabalhador alimentação e bebida não alcoólica no horário de intervalo”, diz.

Leia a íntegra da sentença

ATA DE AUDIÊNCIA

PROCESSO: 0686-2006-019-10-00-2

RECLAMANTE: JOSÉ GARCIA DE OLIVEIRA FILHO

RECLAMADA: QUALIX SERVIÇOS AMBIENTAIS LTDA

SENTENÇA

I- RELATÓRIO

Dispensado o Relatório, na forma do Artigo 852-I, da CLT.

II- FUNDAMENTOS

1- CONTRATO DE TRABALHO– RESCISÃO – JUSTA CAUSA – ÔNUS DA PROVA – EMBRIAGUEZ – COLETOR DE LIXO URBANO

O reclamante alega que foi admitido no dia 11 de novembro de 2005, na função de coletor de lixo, tendo sido dispensado, sem justa causa, em 03 de maio de 2006, com ausência do pagamento regular das verbas rescisórias.

A reclamada aduziu o seguinte:

“O reclamante foi demitido por justa causa nos moldes do artigo 482, “f” da Legislação consolidada, ou seja, pela contumácia em comparecer ao serviço embriagado. Não obstante o motivo explanado, que por si só enseja a justa causa, no dia em que foi dispensado, em razão de encontrar-se alcoolizado fez ameaças ao motorista que conduzia o caminhão com quem laborava, ensejando. Inclusive, a ocorrência policial ora anexada”.(Transcrição de Trechos da Contestação, fls. 14).

Em resumo, sustenta a empresa que a dispensa obreira foi motivada pelo fato de o empregado ter laborado em estado de embriaguez.


O ônus da prova é da empregadora, competindo-lhe demonstrar que o autor praticou o ato noticiado na exordial(CLT, Artigos 769 e 818; CPC, Artigo 333, Inciso II).Para além de tal aspecto, resta avaliar se o quadro é suficiente para determinar o rompimento do pacto laboral.

A comunicação da rescisão do contrato foi apresentada no dia 03 de maio de 2006 (fls. 64), cujo suposto flagrante do estado de embriaguez do reclamante teria ocorrido no dia 30 de abril de 2006.

As demais provas estão restritas aos depoimentos pessoais e testemunhais.

O reclamante, em seu depoimento pessoal, nega a veracidade do fato noticiado na contestação (fls. 68/69).

Devo concluir que não houve a confissão do reclamante, nem por parte da reclamada (fls. 68).

A reclamada trouxe duas testemunhas ocupantes da função de confiança de supervisor. Afirmou Carlos Alberto Ferreira que “o reclamante foi dispensado em razão de ter se notado que ele tinha sintomas de embriaguez” (fls. 69). A testemunha João Paulo Pereira de Macedo, por sua vez, declara “que o reclamante foi dispensado por ter ingerido bebida alcoólica durante o horário de trabalho, segundo informação repassada pelo motorista e pelo coletor que estava na área; que naquela ocasião, num determinado sábado à noite, após o depoente ser comunicado do estado de embriaguez do reclamante, foi ao local conversar com o reclamante; que o reclamante não estava num estado comum para o trabalho, razão pela qual acionou a segurança do trabalho, na pessoa do Sr. Edilson”(fls. 69/70).

Como se percebe, a prova oral não foi firme no sentido de comprovar a embriaguez do reclamante em serviço. A primeira testemunha fala que o reclamante tinha sintomas de embriaguez. A segunda testemunha, do mesmo modo,não presenciou o reclamante ingerindo qualquer bebida alcoólica, mas diz que ele não estava “num estado comum para o trabalho”.

Meras suposições não são suficientes para o reconhecimento do quadro capaz de atrair a penalidade mais severa aplicável ao empregado, algo capaz de macular para sempre a sua trajetória de trabalhador. Portanto, a embriaguez em serviço, por parte do reclamante, não restou provada pela reclamada, muito menos a agressão contra terceiro noticiada na contestação, tendo as testemunhas, na verdade, declarado que o obreiro estava calmo.

Ainda que as palavras das testemunhas pudessem ser interpretadas a partir de uma perspectiva rigorosa sob o ponto de vista “moral e legal”, na forma perseguida pela empresa na defesa, a justa causa não restaria configurada.

O reclamante era coletor de lixo urbano,muitas vezes laborando em horário noturno. No desempenho de tal atividade insalubre, fazia o recolhimento de tudo aquilo que a sociedade pretende afastar de suas imediações para manter a saúde das pessoas e dos animais domesticados, a limpeza das residências e do bairro, bem como para afastar odores fortes e desagradáveis.

Correndo como um atleta da limpeza para acompanhar o caminhão de lixo, durante 08( oito) horas por dia, no horário noturno, quando as famílias de Ceilândia-DF dormiam depois de um dia de labuta, o reclamante, ao lado de outros valorosos colegas de trabalho, pegava e transportava os restos de produtos descartados pela comunidade. Não é pelo fato de o empregado ter tão dura missão diária que será encarada como normal a execução de uma tarefa desgastante e a tudo possa ele suportar em nome do reduzido salário auferido no final do mês. Basta invertermos os papéis para melhor e mais apurada reflexão sobre a importância do ofício profissional de muitos dos trabalhadores, cujas vitais funções permitem o desenvolvimento de tantas outras.

É penoso o trabalho de coletor de lixo urbano. Logo, a utilização de bebida alcoólica pela respectiva categoria profissional deve ser avaliada dentro deste contexto.

A testemunha João Paulo Pereira de Macedo, chefe imediato do reclamante, admitiu ser comum o uso de bebida alcoólica pelos coletores de lixo no horário de trabalho, cujo fornecimento gratuito é feito por determinado segmento (comerciantes) da região que recebe o serviço de recolhimento do lixo. Disse, ainda, que os empregados justificam a atitude como natural reação ao forte cheiro que exala do lixo por eles transportado (fls.69).


Não tenho elementos, do ponto de vista científico, para aferir a relação existente entre o trabalho com lixo de cheiro fortemente desagradável, muitas vezes insuportável, e o uso de bebida alcoólica. Mas é certo que a sensação suportada pelo trabalhador é terrível. Tal estado pode levar o empregado a adotar as mais diversas ações. Vamos encontrar na história da sociedade moderna vários relatos de alcoolismo decorrentes de um estado de opressão e desespero. De qualquer modo, segundo depoimento testemunhal, a partir do senso-comum entre os coletores de lixo, há relação de causa e efeito entre as duas situações antes apontadas.

Em vez de punir o empregado que recolhe os restos de produtos com fortes odores, desagradáveis, portanto, despejados no lixo pela sociedade, por ter ele ingerido cerveja ou cachaça doada durante o expediente, a reclamada deveria adotar medidas preventivas, oferecendo aos seus coletores de lixo melhores condições de trabalho, desde o fornecimento dos instrumentos adequados à prestação laboral à redução da jornada, além de alimentação no horário de intervalo e realização de cursos regulares para afastá-los do consumo de álcool.

Não reconheço a justa causa, seja porque a embriaguez em serviço não restou provada, seja porque a atividade insalubre desempenhada pelo autor pode levá-lo, sim, à busca do antídoto contra odores exalados do lixo transportado, ainda mais quando a empregadora não fornece ao trabalhador alimentação e bebida não alcoólica no horário de intervalo, o deixando, assim, ainda mais vulnerável aos agrados dos comerciantes, os quais passam a servir lanches acompanhados de “tragos” de cachaça e de “goles” de cerveja.

Muito mais preocupante é a defesa da ordem “moral” feita pela reclamada ao aplicar justa causa em humilde trabalhador pelo suposto consumo de bebida alcoólica durante o expediente. É evidente que o fato está longe de ter conotação moral.

Imoral é qualquer ato praticado contra a sociedade ou contra a res publica. A figura está presente na contratação irregular de servidores, na terceirização para burlar o concurso público e para proteger cabos eleitorais, no superfaturamento de obras públicas, no loteamento irregular e na grilagem de terras públicas, na compra de votos, na auto-promoção realizada por caciques políticos com dinheiro do povo, na corrupção, na prática coronelista autoritária que se julga detentora do poder da realização e na existência de parlamentos compostos dos mais diversos tipos de delinqüentes (mensaleiros, sanguessugas, pedófilos, homicidas,grileiros e de outros nefastos personagens que habitam a cena política nacional). Usando a nomenclatura indicada pela segunda testemunha, considero que os desvios antes nominados são “vícios,” na verdadeira expressão da palavra (para Aurélio,vício é defeito grave que torna uma pessoa ou coisa inadequadas para certos fins ou funções.Inclinação para o mal. Conduta ou costume censurável ou condenável, libertinagem ou licenciosidade), a serem combatidos sistematicamente pela sociedade, longe de ser “vício” um “trago de cachaça” ou um “gole de cerveja” ingerido por empregado ocupante da penosa função de coletor de lixo urbano. O lixo que precisa ser eliminado é outro.

Por menor que possa parecer a questão, não podemos perder de vista a amplitude da decisão para quem a aguarda. Sendo assim, o fato precisa ser analisado em toda a sua dimensão, indo da atitude individual do empregado à repercussão do ato para o conjunto da sociedade.

Por conseguinte, afasto a justa aplicada ao reclamante, trabalhador que exerceu a função de coletor de lixo urbano, não havendo contra ele a prova do uso de bebida alcoólica e, se houvesse, também o quadro não avalizaria a conduta do empregador tendente a romper o contrato de maneira motivada,deferindo-lhe, assim, o pagamento de verbas relativas ao aviso prévio( 30 dias) e respectiva integração do período ao seu tempo de serviço, para todos os fins, 13º salário fracionado de 2006( 5/12), férias proporcionais( 6/12), acrescidas do abono de 1/3, multa rescisória do Artigo 477,§ 8º, da CLT, liberação do FGTS, garantida a regularidade dos depósitos mensais, com a multa de 40%, tudo com base no salário mensal de R$ 371,00( trezentos e setenta um reais), a resultar nos valores apontados na exordial nos ítens A,B,C,D,F e G.

2 – JORNADA DE TRABALHO – INTERVALO – INDENIZAÇÃO


O reclamante alegou haver laborado das 19:00 às 02:30 horas, de segunda a sábado, na função de coletor de lixo, sem intervalo intrajornada, assegurando que para esse fim concedia ao empregado o tempo de 01 (uma) hora.

As partes, em depoimentos pessoais, ratificaram as versões de suas respectivas peças processuais (fls. 68/69).

A primeira testemunha trazida pela reclamada, Carlos Alberto Ferreira, declarou que “o intervalo dos coletores de lixo consiste na realização de lanches que são fornecidos pelos comerciantes durante o horário de trabalho” (fls. 69), contexto que não foi alterado de forma substancial pela segunda reclamada, embora tenha o supervisor feito referência a intervalo de 25 a 40 minutos muito mais na condição do exercente da função de confiança que acompanha à distância o trabalho executado pelo reclamante.

O empregado não tinha tempo destinado ao intervalo. Entre um e outro volume de lixo carregado para o caminhão, recebia o obreiro lanche dos comerciantes para ser consumido na própria agitação laboral, sem a concessão do tempo mínimo de uma hora para usufruir do descanso, portanto.

Empregado que é obrigado a permanecer no local de trabalho, no curto espaço de tempo em que faz a sua refeição oferecida por terceiros, não usufrui de intervalo.

Detentora do poder diretivo e de comando, deve a empregadora conceder, fiscalizar e fazer com que se cumpra o intervalo intrajornada regular, pelos seus empregados. Não se trata de uma ação facultativa, que possa ser exercida ou não pelos trabalhadores.

Na esteira deste raciocínio, condeno a reclamada ao pagamento do intervalo intrajornada não concedido, de 01( uma) por dia laborado, com acréscimo de 50% (CLT, Artigo 71,§ 4º), durante a vigência do pacto laboral, conforme valor indicado pelo reclamante, ítem E(678,00).

3- BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA

Preenchidos os pressupostos da lei e nos termos da Declaração de Pobreza Jurídica a fls. 6, concedo ao reclamante os benefícios da justiça gratuita.

4- OFÍCIOS AOS ÓRGÃOS FISCALIZADORES

A secretaria deverá encaminhar ofícios aos órgãos fiscalizadores (INSS,DRT-DF e CEF), em face das irregularidades constatadas.

III – CONCLUSÃO

Ante o exposto, julgo PARCIALMENTE PROCEDENTES os pedidos, condenando a reclamada, QUALIX SERVIÇOS AMBIENTAIS LTDA, a pagar ao reclamante, JOSÉ GARCIA DE OLIVEIRA FILHO, no prazo legal, aviso prévio(30 dias) e respectiva integração do período ao seu tempo de serviço, para todos os fins, 13º salário fracionado de 2006( 5/12), férias proporcionais(6/12), acrescidas do abono de 1/3, multa rescisória do Artigo 477,§ 8º, da CLT, liberação do FGTS, garantida a regularidade dos depósitos mensais, com a multa de 40%, tudo com base no salário de R$ 371,00 (trezentos e setenta um reais), a resultar nos valores apontados na exordial nos ítens A,B,C,D,F e G,além da indenização prevista no Artigo 71,§ 4º, da CLT (item E), tudo nos termos da fundamentação, que fica integrando o presente dispositivo.

Juros e atualização monetária a partir da data do ajuizamento da presente ação.

A liquidação será por cálculos, a partir das diretrizes delineadas na fundamentação, importando a condenação em R$ 2.242,00. Havendo a liberação regular do FGTS, haverá dedução da importância de R$ 278,00.

Nos termos da Lei nº 10.035/2000, são cabíveis recolhimentos previdenciários sobre o 13º salário fracionado, constituindo-se as demais verbas em parcelas que não compõem a base de cálculo do salário de contribuição.

Recolhimentos previdenciários, na forma do Provimento 01/96, da CGJT, sob pena de execução de ofício (artigo 114, §3º, da CF), incidentes sobre as parcelas antes indicadas. Deve-se observar a alíquota da contribuição previdenciária do empregado e do empregador, estando a reclamada autorizada a reter a parcela devida ao reclamante (art 30, inciso I, alínea “a”, da Lei nº 8.212/91), devendo a empresa comprovar o recolhimento ao INSS no prazo legal (Lei nº 8.212/91, artigo 30, inciso I, alínea “b”).

Recolhimentos fiscais, conforme Provimento 03/2005 da CGJT, sobre as parcelas cabíveis, na forma da lei e por ocasião do pagamento em respeito ao regime de caixa.

Expeçam-se ofícios aos órgãos fiscalizadores (DRT-DF), após o trânsito em julgado desta decisão.

Custas fixadas no importe de R$ 44,84 (quarenta e quatro reais e oitenta e quatro centavos), a cargo da reclamada, calculadas sobre R$ 2.242,00 (dois mil, duzentos e quarenta e dois reais), estando aqui incluído o FGTS a ser liberado, valor da condenação e para esse fim aproveitado.

As partes estão cientes (Súmula nªº 197/TST).

GRIJALBO FERNANDES COUTINHO

Juiz Titular

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