Crime passional

O homicida passional não merece compaixão nem perdão

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6 de outubro de 2006, 13h25

Com o recente assassinato do coronel Ubiratan Guimarães e a possibilidade de que o crime tenha sido passional, torna-se oportuno fazer algumas considerações sobre esse tipo de delito. Entende-se por passional o homicídio praticado por ciúme, por possessividade, pela incapacidade de aceitação do fim de um relacionamento amoroso. Em geral, é uma conduta própria do homem, que se sente possuidor da mulher e com direito de vida e morte sobre ela.

É natural que tenha sido assim, como regra geral, pois o patriarcalismo criou uma situação desigual entre os gêneros masculino e feminino, pondo a mulher em posição de subalternidade em relação ao seu companheiro. Porém, toda regra tem exceções. Por vezes, acontece de a mulher matar o companheiro ou ex-companheiro também movida pelo inconformismo com o final da relação. O modo de agir da mulher, contudo, difere bastante da conduta masculina. Os casos que chegam aos tribunais mostram peculiaridades de gênero na ocorrência desse tipo de homicídio.

O homem que decide matar a companheira ou namorada costuma planejar sua ação com bastante antecedência, de modo a pegar a vítima de surpresa e evitar qualquer erro na execução de seu intento. Assim aconteceu, por exemplo, com Pimenta Neves, que matou Sandra Gomide em um haras no município de Ibiúna (SP) quando a moça se encontrava em momento de lazer e não esperava uma agressão. O mesmo se pode dizer de Pontes Visgueiro, Eduardo Gallo, Lindomar Castilho, Guilherme de Pádua e muitos outros homicidas passionais que premeditaram cuidadosamente suas ações, de forma que suas vítimas não tiveram possibilidade de escapar do ataque.

Já Dorinha Duval não planejou matar seu companheiro, Paulo Alcântara. Ela teve uma reação impulsiva durante uma discussão conjugal recheada de insultos. Dorinha não tinha uma arma. No embate final, usou a da vítima, uma arma que o próprio companheiro colocara nas mãos dela. Assim também ocorreu com Zulmira Galvão Bueno, que, em 1950, matou seu marido, Stélio, após prolongada discussão sobre um caso extraconjugal que ele mantinha há algum tempo. Zulmira usou a arma de Stélio, pois nunca pensara em adquirir um revólver e não imaginara que um dia tiraria a vida do esposo.

A regra geral, portanto, é que, em se tratando de passionalidade, a mulher age por impulso, e o homem, com premeditação. Além disso, se não há uma arma disponível, muito à mão da mulher, o homem não morre.

O Código Penal estabelece que o motivo do homicídio pode qualificar o crime, isto é, dependendo do móvel da ação delituosa, ela pode ser apenada com maior ou menor rigor. Entre as razões mais reprováveis para tirar a vida de alguém, estão incluídos o motivo torpe e o fútil. O motivo fútil é o irrelevante, é quase a falta de motivo para a prática da agressão. Compara-se o motivo fútil com motivo nenhum. Por exemplo, matar alguém por causa de um pisão no pé. Já o motivo torpe é sinônimo de vilania, ódio, vingança.

No caso do homicídio passional, que é praticado por ciúme, egocentrismo, possessividade, prepotência e até vaidade, não é apropriado considerar que o motivo é fútil. O sentimento que mortifica o passional é de perda, de desonra, de indignidade, de repúdio, de inconformismo, o que leva a um irresistível desejo de vingança. Consequentemente, não se pode entender que não havia motivo considerável para o crime, mas, isto sim, que o motivo foi torpe. O passional mata para impedir que o companheiro se liberte e siga sua vida de forma independente.

O Tribunal de Justiça de São Paulo tem vasta jurisprudência no sentido de que “ocorre a qualificadora do motivo torpe se o acusado, se sentindo desprezado pela amásia, resolve vingar-se, matando-a”.

Está claro que ninguém mata por amor. O homicida passional não merece compaixão e muito menos perdão por seu ato, ao alegar que não poderia viver sem a vítima. Nos termos de nossa lei (art.121, parágrafo 2º, do Código Penal), ele está sujeito a pena que vai de 12 a 30 anos de reclusão. Além disso, o homicídio qualificado é crime considerado hediondo.

O ciúme que extravasa a normalidade deve ser evitado a todo custo, pois é um veneno que certamente levará à destruição. Ninguém é insubstituível na vida de ninguém, e o fracasso amoroso é absolutamente normal e corriqueiro. Todos temos de aprender a lidar com isso.

O artigo foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, na edição do dia 5 de outubro.

Autores

  • Brave

    é procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, autora de vários livros, dentre os quais “A paixão no banco dos réus” e “Matar ou morrer — o caso Euclides da Cunha”, ambos da editora Saraiva. Foi Secretária Nacional dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça no governo FHC.

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