Ponta do iceberg

Considerações sobre a investigação criminal pelo MP

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4 de outubro de 2006, 14h28

I – Noções Introdutórias

A despeito das críticas que freqüentemente lhe são endereçadas e do preconceito de que é vítima por parte de segmentos dos operadores do Direito, o inquérito policial, presidido pela autoridade da polícia judiciária, sempre foi e segue sendo instituto fundamental no sistema processual penal brasileiro.

Basta, no entanto, ocorrer um crime de grande repercussão para que sejam formadas “equipes especiais” e constituídas comissões apuradoras, ou vozes se levantarem para criticar a atividade investigativa policial, ponta mais visível desse iceberg. Entram em cena os experts de ocasião, aqueles que para tudo têm pronta e barata solução.

Ilude-se a opinião pública com a adoção de medidas simbólicas, de fachada, demagógicas e efêmeras, mas sabidamente ineficazes, alardeando-se, com exacerbada ênfase, os crescentes índices de criminalidade. Proclama-se a urgente necessidade de soluções imediatas.

Sem se considerar a proporcionalidade com o aumento demográfico e o fenômeno da desordenada concentração urbana, vivencia-se, contemporaneamente, uma espécie de propaganda do pânico, uma exploração quotidiana e amplificada da violência, da ênfase do comportamento audaz dos infratores, do arsenal militar em mãos das chamadas “organizações criminosas”, fator que aterroriza a sociedade e a convida a considerar medidas extremas e incivilizadas para o combate à criminalidade.

Instilam-se o receio e o medo coletivos, predispondo-nos a aceitar medidas excepcionais, de legalidade duvidosa, para reprimir o crime, punir, prender e arrebentar (ou, como hodiernamente, prender antes e investigar depois, ou, ainda, atirar antes e perguntar depois…). Argumenta-se com a intolerável violência, com a inaceitável impunidade.

É nesse cenário que florescem exóticas (no sentido de alienígenas) propostas no campo penal e processual penal, como panacéia para se equacionar a complexa questão da criminalidade. São fórmulas prontas e acabadas, quer para exacerbar a punição, quer para suprir alegadas deficiências do aparato repressivo do Estado.

Dentre estas, contemplamos, preocupados, a proposição do Ministério Público de avocar, para si, a competência para comandar investigações criminais, esvaziando as atribuições constitucionais da polícia judiciária. Aqui também se argumenta com a maior eficiência apuratória…

Seriam inidôneas as investigações conduzidas pela polícia judiciária? Ou ineficientes? Melhor deixá-las a cargo do Ministério Público?

Salvantes as exceções e os desvios atrabiliários de minoritários setores corruptos ou messiânicos, que se afastam da lei a pretexto de fazê-la cumprir (fenômeno comum a todas as instituições), certo é que, em razão de investimentos (não totalmente suficientes, é verdade) feitos ao longo do tempo, a polícia judiciária brasileira dispõe de razoável tecnologia investigativa, conta com pessoal especializado e se inclui entre as bem conceituadas.

Aliás, caindo no exagero e em razão da falta de políticas públicas para promover o desenvolvimento nacional, incrementar a pesquisa e alcançar o bem estar social, é o próprio e atual Governo Federal quem se utiliza do marketing publicitário como forma de sustentação e, para tanto se vale dos freqüentíssimos “espetáculos policiais”, em cadeia nacional, proporcionados pela polícia judiciária da União (PF). É, pois, o próprio Governo que, em suas manifestações de prestação de contas à população, ufana-se em dizer que sua grande obra é a Polícia Judiciária da União, apontada pelo Ministério da Justiça como “modelo de eficiência”, sem se lembrar, é claro, da truculência de suas “operações”, do recente “desaparecimento” de cerca de dois milhões de reais apreendidos, de dentro de suas próprias dependências no Rio de Janeiro e do até hoje insolúvel mistério do furto do Banco Central na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará…

De outro bordo e a despeito dos protestos dos advogados brasileiros, o Ministério Público tem tecido loas à ação da polícia judiciária, especialmente a da União, referendando, respaldando e aplaudindo seus métodos, por vezes de legalidade duvidosa, o que permite concluir que, da ótica do Parquet, tem sido satisfatória a condução das investigações criminais pela autoridade policial. Se tudo vai bem, não há por que se mudar, diria a sabedoria popular…


A partir de uma perspectiva de absorção pantagruélica de atribuições e funções, insiste-se em transferir a direção da investigação criminal ao MP, claro, de lege ferenda, eis que o ordenamento constitucional, na distribuição de competências, não lhe destina tal função, antes a comete à polícia judiciária. Se o anelo ministerial se tornasse realidade a mudança traria benefícios coletivos ou maior eficiência repressiva? A resposta é não, como abaixo se verá.

II – Delineamentos Constitucionais

Da dicção do artigo 144 da Constituição Federal a única leitura exegética possível é que compete à polícia judiciária a função investigatória, através da realização de diligências prévias e da colheita de elementos probatórios sobre fatos que constituem crime em tese.

Ao Parquet, titular privativo da ação penal pública, nos termos do artigo 129 da Carta Magna, que disciplina suas funções institucionais, compete promover o inquérito civil público (inciso III), exercer o controle externo da atividade policial (inciso VII) e requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial. O regramento é explícito et in claris cessat interpretatio!

Estes, precisamente estes, os limites constitucionais das competências, das atribuições institucionais, da polícia judiciária de um lado, e do Ministério Público de outro. Quaisquer outras funções que se pretenda deferir-lhes, através de leis infraconstitucionais, acima ou a latere das opções axiológicas da Charta Magna, se operam fora da ordem constitucional, em desabrida afronta à soberania do povo brasileiro estratificada na Lei Máxima.

É que, como consabido, a regra suprema não pode ser lida de acordo com lei subalterna, mas esta é que deve ser interpretada a partir do texto da Constituição, consoante pontificou o Ministro do STF, SEPÚLVEDA PERTENCE:

As leis é que se devem interpretar conforme a Constituição e não ao contrário.

(RT 680/416)

Assim, se a Constituição, que é o lineamento fundante do sistema processual penal, estabelece os limites funcionais dos órgãos estatais da persecução, é precisamente dentro desses lindes que se deve pautar a atividade de cada um.

A opção do legislador constituinte foi muito clara e não abre ensejo a especulações interpretativas. A Constituição de 1988 trouxe grandes inovações, tendo em vista o propósito soberano de se construir uma nova Nação. O Ministério Público ganhou amplos e nunca vistos – mas não ilimitados – poderes. Dentre eles e na esfera extrapenal, o de promover, sob seu próprio comando, o inquérito civil, medida preparatória da ação civil pública. Não é pouco, convenhamos…

Na esfera criminal, porém – quis o Legislador Máximo -, a atribuição do Ministério Público em matéria de investigação penal se limita à faculdade de requisitar a instauração de inquérito, bem como de diligências em seu bojo. Igualmente, dispôs competir ao Parquet a fiscalização externa das atividades policiais, o que se não confunde com a direção do inquérito policial, atribuição exclusiva da polícia judiciária (ressalvadas as exceções constitucionais). Di-lo, incontrastavelmente, a Lex Legum.

Como se vê, não lhe é dado – à luz da ordem constitucional – promover, presidir, comandar, conduzir, chefiar, segundo seus próprios critérios, investigação criminal, tarefa esta expressamente atribuída à polícia judiciária.

Ao longo do processo constituinte, que culminou com a promulgação da Constituição Federal de 1988, não foram poucas as iniciativas legislativas que objetivavam a entrega da direção do inquérito policial ao Ministério Público, destacando-se entre elas a ação parlamentar constituinte do Deputado Plínio de Arruda Sampaio, todas, no entanto, rechaçadas em votação pelos representantes do soberano povo brasileiro. Há como revogar tal opção? Quais artifícios exegéticos poderiam inverter a vontade do povo, representado em Assembléia Nacional Constituinte?


Correlatamente à distribuição de competências, como visto, a Lei das Leis consagra direitos e garantias fundamentais absolutamente irrenunciáveis para a plena eficácia do Estado Democrático de Direito.

Com efeito, os princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal são imperativos constitucionais que, a nenhum pretexto, podem ser desatendidos.

Bem se vê que o legislador constituinte teve a cautela de explicitar que o processo judicial será marcado pelo timbre da publicidade absoluta para as partes, do contraditório, da paridade de armas, da isonomia processual, já que todos os atos que o compõe devem, necessariamente e sempre, submeter-se ao crivo da contraposição.

E, se de um lado a posição da parte que se defende no processo penal pode ser vista como direito público subjetivo, segundo uma ótica que privilegia o interesse individual sobre o social, de outro, tal posição deve ser encarada como garantia. Garantia não apenas da parte, do cidadão que a Constituição vem proteger do arbítrio, mas, também, garantia do justo e devido processo, dando relevância ao interesse geral na legitimidade e na justiça das decisões proferidas pelos órgãos da jurisdição.

Garantia da parte e do próprio processo que, segundo ADA PELLEGRINI GRINOVER, são o enfoque de conteúdo da cláusula do due process of law.

Dessa forma, opções axiológicas vertidas no Texto Constitucional devem coadunar-se entre si para evitar conflitos normativos e permitir a perfeita harmonia do sistema, razão pela qual a interpretação conjugada dos preceitos constitucionais aponta para um único sentido: a legitimidade da atividade persecutória só terá eficácia, sob o ponto de vista formal e processual, do ângulo da contraditoriedade constitucional e do devido processo legal.

III – Competência Investigativa: cerne da questão

É indubitável que os princípios constitucionais do contraditório e do due process of law devem ser rigorosamente observados para que seja válida a persecutio criminis instaurada contra o cidadão.

Partindo desse pressuposto, revela-se contaminado qualquer elemento probatório que contrarie, no processo judicial, os preceitos garantistas, que afronte as normas procedimentais destinadas à produção e à colheita das provas.

A norma reitora, de hierarquia constitucional, já bem distinguiu e fixou as competências dos órgãos públicos, prevalecendo, indisputavelmente, a concepção de que os poderes de investigar e de acusar são distintos e apresentam especificidades próprias. Corolário inexorável dessa opção conceitual é que são igualmente distintos os Órgãos encarregados de tais competências.

Assim, cabe à autoridade da polícia judiciária promover investigações criminais preliminares para, em um segundo momento processual, encaminhá-las ao destinatário mediato, que é o Ministério Público, que, de seu turno e em formando ou não a opinio delicti, deverá incoar, ou não, a ação penal pública.

Muito bem definidos os poderes institucionais desses operadores do direito penal, segundo a ordem constitucional, a conciliação decorre, também, do processo interpretativo dos dispositivos infraconstitucionais de incidência.

Nessa linha de raciocínio, o exercício de atividade estranha às funções outorgadas pela Lei Suprema significa, em outras palavras, excedimento do desempenho de suas funções. Manifesta exorbitância.

Note-se o despautério: admitindo-se poderes investigatórios ao Parquet, ainda na fase inquisitorial, e, nessa hipótese, o Ministério Público legitimado a controlar inusitado procedimento: requisitando diligências e, pasmem, ele próprio as autorizando (?)…

Tudo ao seu próprio talante!


Decorre dessa inusitada premissa que o Órgão Acusatório deteria, solitariamente, pseudopoder investigativo, à margem de qualquer controle (em especial os princípios do controle judicial da legalidade), situação que já foi rechaçada em precedente do Excelso Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, o direito pretoriano firmou o entendimento de que são imprestáveis, desprovidas de qualquer valor, as provas produzidas unilateralmente pela parte acusatória, porque acarretam flagrante desequilíbrio processual:

“No processo penal, como órgão promovente da ação penal pública, o Ministério Público é parte, cabendo-lhe a função de acusar”.

“Investigar e apurar infrações penais e sua autoria é atribuição policial (C.F. arts. 144, §§ 1.º e 4.º; C.P.P., art. 4.º)…" (TRF 3ª Região, Rel. Des. JOSÉ KALLÁS, Habeas Corpus nº 90.03.37634-4, v.u.).

“O Ministério Público é o guardião da Ordem Jurídica, mas, separando a Constituição Federal as funções constitucionais e entregando, expressamente, as de investigação criminal e, em certas hipóteses, a outros órgãos à Polícia Judiciária, não tem o Parquet legitimidade para proceder à investigação preparatória da ação penal, já que a ele também se confere o poder de requerer o arquivamento da documentação dos fatos, situação que o tornaria ao mesmo tempo o autor e o juiz da demanda, em verdadeiro sistema inquisitório vedado pela Carta da República”.(TJRJ, HC n.º 597/01-RJ, Relator Des. VALMIR DE OLIVEIRA SILVA, j. 15/05/2001; v.u. grifamos).

“Não se nega que ‘a razão do poder de polícia é o interesse social que a Administração tutela, em supremacia geral sobre todas as pessoas, bens e atividades, respeitados somente os mandamentos jurídicos constitucionais…”.

“… Nem se quer tirar do Ministério Público o monopólio sobre a ação penal pública, com que o art. 129, I, da Constituição Federal acena”.

“Mas, da análise combinada dos artigos 127 e segts. e 144, § 4.º, da Constituição Federal, bem como do art. 26 da Lei nº 8.625/93, tem-se a nítida impressão de que o Ministério Público está avançando além dos limites que a Constituição e a lei lhe impuseram.”

“E, se assim for – e parece a este Relator que está sendo – o princípio do devido processo legal sofre arranhão inconcebível”.(TJRJ, HC nº 615/96, Relator Des. SILVIO TEIXEIRA, j. 23.07.96).

Eis um excerto desse luminoso julgado:

“Vê-se – é o que parece – que as funções do Ministério Público, em termos de diligências investigatórias ou de inquérito policial, devem limitar-se à sua requisição, não podendo ele passar da condição de seu acompanhante”.

“A função de polícia judiciária não condiz com a titularidade da ação penal pública, que o MP bem e ciosamente resguarda”.

“O Ministério Público só pode, no seu âmbito, promover inspeções e diligências investigatórias, se destinadas à formação de inquéritos civis e outras medidas procedimentais pertinentes”.

“As diligências investigatórias, destinadas ao inquérito policial, refogem ao âmbito de atuação interna do Ministério Público, exatamente porque devem ficar afetas a quem tenha a titularidade de instaurar esse tipo de procedimento, isto é, a polícia civil”.

“Assim, não podia ser instaurado, ‘no âmbito ministerial, o procedimento investigatório previsto no art. 26, inc. I da Lei nº 8.625 de 12/02/93’ (fls. 104), porque não se destinava à instauração de inquérito civil, este, sim, de atribuição do Ministério Público”.


“É necessário que as funções fiquem bem delimitadas. Cada Poder, cada órgão ou membro do Poder com suas atribuições e competências bem definidas, sob pena de se descumprir a regra, também constitucional, do devido processo legal”.

“Quando se define, estabelecem-se limites. Não deve haver funções ou atribuições superpostas. Se as há, ou serão conflitantes (devido processo legal ferido), ou serão desnecessárias (economia processual desprezada, com desgaste da máquina estatal)”.(grifamos).

“O Ministério Público, como dominus litis, é o verdadeiro destinatário das investigações preparatórias da ação penal, cabendo a operacionalização das mesmas, de forma exclusiva, pela Polícia Judiciária (CF, art. 144, § 1.º, IV); ‘Pode o Ministério Público, portanto, presentes as normas do inc. VIII do art. 129 da CF, requisitar as diligências investigatórias e requisitar a instauração de inquérito policial, indicando os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais. As diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial deverão ser requisitadas, obviamente, à autoridade policial’ (STF, RE 215.301-CE, 2.ª T., rel. Min. Carlos Velloso, Informativo-STF 145, DJ 28.05.1999, p. 1.303). Diante da falta de atribuição legal do Ministério Público Federal para promover diretamente atos investigatórios, há que ser reconhecida a ilegalidade das provas coligidas, sob pena de violação ao princípio do due process of law. Habeas corpus concedido.” (TRF 2.ª Região, 4.ª Turma, HC 99.02.07263-RJ, Relator Des. Federal BENEDITO GONÇALVES, j. 08.11.2000, DJ 15.03.2001, p. 163).

“I- Inocorrência de ofensa ao art. 129, VIII, C.F., no fato de a autoridade administrativa deixar de atender requisição de membro do Ministério Público no sentido da realização de investigações tendentes à apuração de infrações penais, mesmo porque não cabe ao membro do Ministério Público realizar, diretamente, tais investigações, mas requisitá-las à autoridade policial, competente para tal (C.F. art. 144, §§ 1.º e 4.º).” (STF – RE nº 205.473-9/AL, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, D.J. 19.03.99, Ementário n.º 1943-2, v.u.).

“O MP não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos, nem competência para produzir inquérito policial sob o argumento de que tenha possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos, e pode propor ação penal sem inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Mas os elementos suficientes não podem ser auto-produzidos pelo MP”.(STF – RHC 81.326).

O insuperável e saudoso ANTÔNIO EVARISTO DE MORAES FILHO, profundo conhecedor do nosso direito processual penal, demonstrando preocupação com o tema que ganhava contornos perigosos, asseverou: “a faculdade de o Ministério Público produzir, direta e pessoalmente, sem qualquer controle, as peças de informação que virão a servir, no futuro, de base para o oferecimento de denúncia, ou para o pedido de arquivamento, implicaria risco para o princípio da paridade de armas, e conferiria a este verdadeiro quarto poder um arbítrio incontrastável no exercício, que lhe é privativo, da função de promover a ação penal.” (Ministério Público e o Inquérito Policial, In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 19, jul-set 1997, págs. 105/110).

Também, o grande advogado NÉLIO MACHADO, em discurso sobre o tema, sublinhou que a Carta Magna estabelece “uma verdadeira simetria, uma absoluta paridade entre as funções da acusação pública e da defesa” (in Notas sobre a investigação criminal, diante da estrutura do processo criminal no estado de direito democrático).

A inobservância à separação de atribuições, no processo penal, confronta abertamente com a garantia constitucional da par conditio, do devido processo legal, a toda evidência.

Nesse diapasão, o Professor JUAREZ TAVARES, em parecer ofertado nos autos do Recurso Extraordinário n.º 233.072-4/RJ do Excelso Supremo Tribunal Federal, assim se pronunciou: ”Primeiramente, cumpre-nos salientar que a ação penal desfechada contra o Paciente, lastreada em inquérito penal realizado pelo próprio órgão do Ministério Público, constitui, realmente, fato inusitado e estranho.” (textual do parecer – grifamos).


A questão não é nova para o Excelso Supremo Tribunal Federal. O ilustre Ministro NÉLSON JOBIM, a propósito do tema, já concluiu enfaticamente que:

“Inquérito penal não é juízo de instrução. Não temos esse tipo de procedimento no nosso ordenamento jurídico. Sua criação foi negada em dois momentos de voto no parlamento. Não será por exegese que vá se outorgar ao MINISTÉRIO PÚBLICO aquilo que não foi dado”.

E prossegue o ilustre Ministro:

“Por que o Tribunal Regional entendeu relevante, se exorbitou o MINISTÉRIO PÚBLICO, e a meu juízo exorbitou das suas funções institucionais, pretensão que já tem há muito tempo em detrimento dos interesses da defesa”.

“Sei que ao trazer exemplos de casos vividos corre-se o risco de se trazer aquilo que se chama generalização empírica, mas ao exercer a advocacia penal durante vinte anos, sei como se conduz o MINISTÉRIO PÚBLICO nesses atos unilaterais de produção de provas”.

E finaliza:

“Sr. Presidente, quero que, com todas as vênias e com o respeito que V. Exa. Merece, como meu velho Professor da Faculdade de Direito do Rio Grande do Sul, possam a defesa e a acusação estarem no mesmo nível, no campo da investigação”.

“Ou seja, com o mesmo status do MINISTÉRIO PÚBLICO…”

“Que não esteja a defesa sujeita a ações unilaterais da acusação, no sentido de promover dentro do seu próprio prédio, isolado, sem possibilidade alguma de qualquer tipo de participação no inquérito”.

“Faríamos a divergência perante o juízo. Mas não teríamos a possibilidade de exercê-la fora dele, porque à POLÍCIA sabe-se o que fazer, contra o MINISTÉRIO PÚBLICO pouca coisa tem-se a fazer.” (grifamos).

No mesmo julgamento, o Ministro MAURÍCIO CORRÊA teceu as seguintes considerações sobre a matéria sub studio:

“A Constituição atribui ao Ministério Público a função institucional de promover o inquérito civil (artigo 129, III), mas não o inquérito penal, o qual foi cometido à polícia judiciária (artigo 144, § 1.º, I, e § 4); atribui-lhe, também, a de promover a ação penal pública, privativamente e na forma da lei (artigo 129, I) e, ainda, a ação civil pública (artigo 129, III).”

“Se, de um lado, não é obrigatória a existência de inquérito policial para a instauração da ação penal, por outro, quando se fizer necessário, é mister que seja realizado de acordo com as normas vigentes, sob pena de nulidade. Não vejo impedimento para que o Ministério Público requisite algum documento ou mesmo um processo administrativo para melhor fundar a ação penal que irá propor; o que não pode é que solitariamente realize investigação criminal à margem de qualquer controle”.

“Isto porque o Ministério Público só poderá proceder a investigações preliminares criminais quando houver no sistema jurídico positivo normas que venham presidir a sua atuação, regrando-a; não pode ele, entretanto, motu próprio, criar normas novas e ignorar as existentes, sob pena de comprometer a segurança jurídica da sociedade e, mais, a dele própria”.

“… A minha objeção está na inexistência de prévia normatização legal que regule tal atribuição. Veja-se: sem normas que regulamentem o procedimento investigatório penal do Ministério Público, não há garantia da lisura e do controle desta investigação, pois sem o devido processo administrativo o material coletado estará numa pasta ou numa gaveta ou num armário, sem acesso a quem quer que seja, inclusive ao advogado, o qual não terá a garantia de “examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante ou de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos” (Estatuto da Advocacia – Lei n.º 8.906/94, artigo 7.º, XIV); poderá não ser utilizada prova coletada que incrimine ou que absolva determinado indiciado, segundo conveniências subjetivas e fora de qualquer controle; não haverá como dar eficácia à disposição constitucional que admite ação penal privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal (CF, artigo 5º, LIX), porque dificilmente se saberá qual o dies a quo do início da contagem deste prazo legal.”


“Em suma, o inquérito penal fora do controle normativo transformar-se-á inevitavelmente, em alguns casos, num escoadouro de paixões subalternas, como revela a história, que é pródiga em exemplos, e, porque não dizer, a própria experiência adquirida neste Tribunal, onde não raro percebe-se procedimentos marcados com enorme carga passional.” (textual do RE n.º 233.072-4/RJ – grifamos).

IV – Conclusões

Palpitante e indiscutivelmente atual, o tema sob enfoque merece acurada atenção de todos aqueles que, quotidianamente, se opõem à inaceitável violação das franquias constitucionais dos investigados, manifestada por variegadas formas.

Já não bastam os famigerados “procedimentos secretos”, “incidentes unilaterais”, “feitos sigilosos”, ou qualquer que seja a nomenclatura que se lhes dê, que muitas vezes são comandados clandestinamente pelo Órgão Acusatório, “acautelados” em impenetráveis gabinetes, tramitando à sorrelfa, sem que o próprio acusado, ou mesmo seu defensor legalmente constituído, saibam de sua existência. São fonte de todos os abusos, de todas as arbitrariedades, de todos os desvios, de todas as deformações, anulando a contraposição da verdade da defesa. Tese sem antítese e com síntese previamente definida na perfeita identidade com a primeira…

Não é o suficiente! Pretende-se, agora, contra a literalidade do Texto Maior, o poder persecutório absoluto, total, amplo e irrestrito, com o cúmulo das funções investigativas e das acusatórias.

Ao dominus litis não é lícito usurpar competências que não lhe foram atribuídas.

A vedação é constitucional.

Ora, não devem ser iguais em armas processuais as partes formais no regime do devido processo legal? Ou, como na “Revolução dos Bichos”, do visionário George Orwell, uma parte é mais igual do que a outra?

A resposta, meridiana, não reclama maiores esforços de raciocínio…

Por isso que a pretensão dos jovens e idealistas integrantes do Ministério Público, de se transmutar a instituição em órgão investigador, para reunir em uma só entidade funções distintas, se revela absolutamente insólita, anômala, no processo penal brasileiro, que se rege segundo os ditames constitucionais e regras próprias que definem os critérios de competência investigatória.

De outra parte, há inconvenientes funcionais outros, comprometimentos de ordem estrutural.

Se os órgãos e agentes policiais encarregados da missão investigatória não são capazes de vencerem a pletora de inquéritos que se acham em curso, que se dirá em relação ao Parquet?

A preocupante indagação se acentua na medida em que o Ministério Público acha-se formado por um contingente pessoal drasticamente inferior aos agentes públicos que hoje estão destacados na polícia judiciária e com a tarefa específica de elucidação dos ilícitos penais.

O Parquet, à toda evidência, não dispõe de instrumentos e recursos – de ordem pessoal e material – suficientes para dar cabo de todas essas investigações preliminares.

Qual seria, então, a solução materialmente eficaz proposta pelos defensores da atividade ministerial investigativa?

Uma só: a seletividade dos casos a serem investigados!

Isto mesmo: a “eleição criteriosa” de procedimentos, seleção essa que atenderia a sabe-se lá quê critérios…

“Casos especiais”, “investigados especiais”, e os “comuns”, continuariam sob direção da polícia judiciária?’

Seria, na verdade, um sistema de competências concorrentes, em que o parâmetro definidor da direção seria a violação do princípio republicano da isonomia? Algo como “todos são iguais perante a lei, mas, quando MP elege um cidadão, não são mais todos iguais?”.


É bom que se assinale, nessa toada, que o Estado Democrático de Direito não se compadece com esse tipo de “apuração especial”, eleição de investigados “notórios”, seletividade investigatória, etc…

Estranhos tempos seriam estes em que se passaria a “eleger” pessoas, “selecionar” aqueles casos em que se têm interesses…

Seletividade anti-republicana e afronta ao princípio constitucional da isonomia?

Privilégio às avessas?

Não se mostra legítima, pois, sob o prisma constitucional, a aceitação de “opções preferenciais”, restritas apenas a certos investigados e determinadas hipóteses, na exata medida em que tal processo seletivo importa em aberta violação aos princípios do devido processo legal e do contraditório.

Ademais, alguém duvida que aquele que comandou as apurações, a seu próprio talante, deixe de prestigiá-las ao término do apuratório? Vale dizer, encerradas as investigações que a própria autoridade ministerial – ou algum outro membro da Instituição – conduziu, não será, por certo, oferecida denúncia?

Ora, ora.

Por isso que se mostra inconcebível, qualquer que seja o pretexto e fora das previsões constitucionais de definição de competência, que o inquérito policial possa ser presidido por autoridade outra, que não seja a determinada pela Lei Maior, qual seja, a autoridade da polícia judiciária.

Pelo que aqui já se argumentou, seria razoável – ou constitucional – transferir a legitimidade da condução investigativa ao Parquet, ainda que seus dedicados integrantes estejam bem intencionados? Parece que não…

E o que se dizer das dezenas, centenas, milhares, de apuratórios depositados nos Distritos Policiais e que aguardam empenho investigativo de nossas autoridades? Serão eles também alcançados por esse sentimento abnegativo?

Ou o intento açambarcador do Ministério Público serviria somente para algumas hipóteses? Quais? Para aquelas às quais se voltam os holofotes da mídia? Para os considerados “antipáticos” a alguma instituição? Aos desafetos do “stablishment”?

“Critério da seletividade sem critério” (com a permissão do trocadilho)?

O intento em causa se insere em uma espécie de esquizofrenia persecutória, emoldurada pela escandalosa publicidade que se empresta às ocorrências delituosas e à respectiva persecução, através da qual se pretende levar à opinião pública a sensação de que “algo está sendo feito” em matéria de segurança, por messiânicos setores do aparato estatal, que se inculcam os exterminadores do mal, o “látego do Senhor, a azorragar todos os impuros”. Fundamentalismo persecutório em quintessência… Que tal fenômeno não contamine o regime de liberdades e garantias que, com sofrimento e perseguições, logramos alcançar. Máxime contra a literalidade do texto da Constituição Federal (risíveis, em matéria de distribuição de competências na Constituição, exegeses do tipo “quem pode o mais, pode o menos”, invocadas para sustentar a falácia de quem pode requisitar a instauração de inquérito policial, poderia presidi-lo).

A humanidade já viu esse fenômeno de caráter demagógico ou radical antes e, por ele pagou, invariavelmente, sangrentos preços. NORBERTO BOBBIO afirmava, contemporaneamente, que o maior de todos os inimigos da democracia e dos regimes de liberdade é o radicalismo, máxime o de convicção moralista extremada ou o messiânico- religioso. E, quem se esquece das lições da história – já se afirmou -, arrisca-se a repetir suas tragédias…

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