Início da trajetória

Estudo sobre o conceito de vida protegido pela Constituição

Autor

  • João Ibaixe Júnior

    é advogado criminalista e sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. É também mestre em Filosofia do Direito. Foi coordenador da assessoria jurídica da Febem e Delegado de Polícia.

3 de outubro de 2006, 17h25

A Constituição Federal inicia seu texto com seus princípios fundamentais e um dos fundamentos do Estado é justamente a dignidade da pessoa humana (artigo1º, III). Logo depois, o artigo 5º, caput, assevera que o direito a vida é inviolável. O ordenamento brasileiro, assim, é amparado sobre dois pilares: dignidade da pessoa e vida humana.

Por óbvio, sem vida humana não se pode falar em pessoa. Portanto, considerando-se esta base antropológica constitucionalmente estruturante, como a denomina Canotilho (s.d:248, 405 e 414), a colocar o indivíduo como ponto central da trama constitucional, um questionamento inicial se faz necessário: investigar o que seja vida e como ela se manifesta em sua forma humana, para que se possa compreender o alcance dos dispositivos constitucionais.

Quando se fala em vida, ao se olhar apenas o texto legal e os princípios constitucionais, pode-se chegar à conclusão de que há a possibilidade de vários conceitos. Permanece-se, contudo, limitado a duas linhas de interpretação diante de cada caso concreto, das quais, em síntese, a primeira provém do texto de eventual lei para chegar ao da Constituição e a segunda, dos princípios constitucionais para a incidência destes sobre os preceitos normativos.

O problema talvez ainda não tenha sido abordado adequadamente, fato que impedirá chegar-se à essência da discussão que o envolve. Antes de tudo, cabe a observação de que o atual paradigma das ciências sociais, dentre elas o Direito, vem sofrendo profundas mudanças, as quais podem ser consideradas verdadeiras rupturas, principalmente no que tange ao método de trabalho, como bem esclarece Sousa Santos (2003:29 e 60), após relatar a crise do modelo científico dominante, ao afirmar a emergência de um novo paradigma de conhecimento e salientar a visão científica como um sistema não reducionista, que enxerga o objeto, o observador, as finalidades presentes e as relações existentes.

De acordo com o novo modelo de análise, a postura atual, de natureza mecanicista-causal, é colocada de lado e passa-se a abordagem mais ampla em termos de relações e integrações, enfatizando-se princípios básicos de organização, não se permitindo limitá-los a suas partes.

A técnica proposta deve ser aquela que observa o fenômeno e, por sua manifestação, em seu todo, examinando os resultados finais de sua aparência, presença ou ação, busca encontrar os elementos respectivos e os padrões de suas respectivas relações. Ou seja, é preciso, diante da situação que aparece e com a qual se depara, a partir dela verificar os mecanismos que a envolvem.

Como se pode conceituar vida? Pela atividade cerebral? Pelo batimento cardíaco? Pela formação da consciência ou pela possibilidade de autoconsciência? Residirá a vida na possibilidade de fruição política ou de cidadania? Estará a vida atrelada a um conceito de padrão social ou econômico que, se não atingido, não permite a realização desta mesma vida? Será a vida medida, calculada, estimada pelo tempo de sua duração, sendo válida aquela que apenas perdurar por determinado decurso?

Na década de 40, o físico austríaco Schödinger (1997) estudou o tema a partir de conceitos de física e biologia. O mérito de seu trabalho, em que pese não ter alcançado a definitiva solução, foi adotar a noção de organização, a qual veio a superar a de evolução por seleção natural, ao combiná-la com a de estabilidade genética e dinâmica celular.

Com isto, a idéia de organismo integrou-se à de organização. Para se conhecer um organismo, é preciso estudar-se sua organização, que é dinâmica. Este dinamismo de movimento é o fenômeno que aparece ao se contemplar um organismo. Ora, se há movimento, como então o organismo se mantém o mesmo? Há o movimento, há uma organização constante e dinâmica, mas que obedece a duas propriedades, a saber: estrutura e padrão de organização.

Reconhece-se, então, um sistema, ou seja, um conjunto de elementos (componentes) e um conjunto de regras que determinam ou orientam as relações entre tais componentes fornecendo sua estrutura. Num sistema, os seus elementos relacionam-se e, assim, adquirem uma organização, uma totalidade que revela a regra do sistema. Organização de um sistema é a disposição (padrão) de relações entre componentes que produz o próprio sistema.

As relações existentes visam sempre a uma finalidade específica e é por esta que se pode conhecer o próprio sistema. Para ressaltar, é a totalidade da organização ou finalidade que determina a regra para compreensão da unidade sistêmica.

Com relação aos seres vivos, a característica básica é a auto-organização (também denominada autopoiese, decorrente do grego, criar ou produzir a si mesmo) a permitir uma rede contínua de interações. Sistema vivo é, deste modo, um processo dinâmico de auto-organização das estruturas, respeitando-se sempre o mesmo padrão. Deste modo, o processo de vida é a atividade abrangida na contínua incorporação das relações de organização do sistema, uma organização autopoiética.


Tudo o que se precisa fazer para descobrir se um ser é vivo é observar se seu padrão de organização é uma rede autopoiética, a qual tem por característica básica a continuada produção de si mesma. Donde pode se concluir que o ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis, porque a rede viva, constantemente, cria a si própria.

Tem-se aí a diferença entre um sistema vivo e um sistema não-vivo. Em ambos encontra-se presente a organização de estruturas padronizadas de componentes; em ambos há o ser e o fazer. Todavia, no primeiro, o ser e o fazer são realizados autonomamente, pelo próprio ser, enquanto se faz a si mesmo e, no sistema não-vivo, embora haja o ser (do próprio sistema), o fazer ocorre por força externa, ou seja, o sistema não-vivo é feito por outro; precisa ser construído. A unidade sistêmica viva é um ser que se faz e a não-viva é um ser que é feito.

O ser vivo tem a faculdade, a capacidade, a potencialidade de se fazer a si mesmo e, por isto, tem consciência de si. A expressão consciência é empregada aqui com a idéia de cognição, ou seja, o sistema vivo, ao fazer-se, acaba por realizar um processo de cognição, um modo de relação, com o meio no qual interage.

Todo sistema vivo existe em referência a um meio, a um ambiente com o qual também troca relações. Ao realizar as respectivas trocas com o meio, a unidade sistêmica se coloca em contato com ele e recebe elementos externos, cuja função é formativa e/ou informativa para a própria unidade. Toda relação ocorrida entre o sistema e o meio tem natureza cognitiva, porque o sistema recebe material de natureza física ou abstrata que irá, de certa maneira, alcançar sua organização, mantendo ou alterando seu padrão relacional, logo, influenciando sua interação cognitiva consigo mesmo.

A complexidade da consciência, ou seja, a ciência do processo cognitivo descrito é diretamente proporcional à complexidade presente no sistema. Na natureza, o ser humano constitui a unidade sistêmica mais complexa existente. É ele que maior ciência possui de sua interação com o meio em que vive. Por isto, é colocado numa classificação biológica mais elevada em relação a outros seres vivos, o que não implica dizer que soberanamente deve governar os demais seres, mas sim, na verdade, ter a maior responsabilidade sobre todo o ambiente que habita. Com efeito, deve-se lembrar que responsabilidade vem da raiz latina spond que é a mesma raiz que origina resposta. Logo, ser responsável significa dar a resposta adequada à situação enfrentada.

Por isto, o ser humano deve ser o mais responsável de todos os seres, porque é o único capaz de conhecer a limitação de consciência dos demais seres vivos, inclusive humanos que, por deficiências neurobiológicas, venham a formar-se de maneira incompleta ou de maneira que impeça a fruição do que se considera padrão de normalidade.

O ser vivo humano tem sua vida natural no decorrer da duração de sua autopoiese, a permitir a decorrência temporal de sua existência. Enquanto houver possibilidade de autopoiese, haverá vida. Quando aquela, por qualquer motivo organizacional ou estrutural não for mais possível, a vida se encerrará.

Desta forma, a vida humana é sempre dinâmica, sempre mutável, havendo, porém, um padrão de organização temporal possível que a mantém a mesma em seus critérios básicos de existência, uma mesma essência, composta de seu padrão de organização, que faz um ser, embora transcorrido o tempo, continuar em sua existência sendo ele mesmo. Pode-se dizer que mesmo envelhecendo, em seu decurso histórico ou sua biografia, mesmo adquirindo maior conhecimento ou experiência cognitiva, o ser permanece ele mesmo; é temporalmente modificado, ele mesmo.

A vida humana baseia-se, assim, no seu ser cognitivamente autopoiético, variável de ser para ser, sem uma qualidade mensurável comum, salvo a passagem do tempo, a qual não possui a mesma duração para todos. Isto significa que a vida natural de um ser humano é o seu existir enquanto unidade autopoiética, enquanto contínua a sua possibilidade de se auto-fazer, a qual não tem uma unidade de medida comum a todos. O ser humano realiza-se a si mesmo, tendo o maior grau de possibilidade cognitiva desta situação, o que também não é o mesmo comparativamente entre os seres, podendo existir aqueles, mesmo humanos, que não reúnem as condições biológicas para disto tomarem ciência, não se excluindo a responsabilidade cognitiva dos demais que as possuem.

Todo ser humano tem alguma capacidade cognitiva que não é igual em todos, havendo apenas semelhanças cuja classificação permanece em outro âmbito que não o da vida natural.

Cabe a lembrança feita por Agambem (2002:09) de que os gregos, na Antiguidade, não possuíam um termo único para expressar o que se hoje diz com a palavra vida. Serviam-se eles de dois termos semântica e morfologicamente distintos, sendo o primeiro deles zoe, o qual exprimia o simples fato de viver, aquele viver inerente a todos os seres vivos, a vida sem qualquer qualificativo, a vida natural de todo ser vivente sem nenhum predicado a atribuir-lhe qualquer qualidade, sendo que, no humano, seu grau de possibilidade cognitiva é maior que os demais seres. O outro termo era biós, o qual por sua vez indicava a forma ou a maneira de viver própria ou qualificada de um indivíduo ou grupo, a vida com um atributo, fosse civil, político, nacional, cultural, social, jurídico ou econômico.


Antes de qualquer coisa, antes de ocupar um espaço relativo à sua cidadania, antes de ocupar um espaço social, antes de ocupar um espaço político, é o homem um ser vivente e, por isto, existente. E a consciência de sua existência, de seu ser no mundo se faz presente, mesmo que de maneira limitada, mesmo que de modo distinto, mesmo que diverso de qualquer padrão de normalidade. A consciência de ser existente integra-se em todos os seres vivos e também no homem, numa só finalidade: viver. E unicamente no homem há a perfeita mistura, a relação verdadeiramente dialética entre a vida natural e a vida qualificada.

Ao garantir a inviolabilidade da vida e a dignidade da pessoa humana, a Constituição pretende proteger toda e qualquer possibilidade de vida natural e com este significado deve ser interpretada. A reforçar este entendimento está a própria redação do texto constitucional, que claramente distingue o fenômeno vida como inviolável, no caput do artigo 5º, e, depois, no decorrer dos incisos e subseqüentes artigos, dispõe sobre a vida com suas qualificações individuais, sociais, políticas e, até mesmo, ecológicas, posto normatizar questões referentes ao meio ambiente (artigo 225). Neste sentido, o Estado Brasileiro é guardião da vida desde sua singela potencialidade alcançando seus níveis de complexidade mais desenvolvidos até prescrever sobre a vida em sua ambiência ecossistêmica.

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Autores

  • é advogado criminalista e sócio do escritório Queiroz Prado Advogados. É também mestre em Filosofia do Direito. Foi coordenador da assessoria jurídica da Febem e Delegado de Polícia.

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