Justiça humana

Entrevista: desembargador Carlos Teixeira Leite Filho

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1 de outubro de 2006, 7h01

Carlos Teixeira - por SpaccaSpacca" data-GUID="carlos_teixeira.png">Ao julgar um caso de família o juiz de primeira instância quase passa a fazer parte da família. Antes de dar uma decisão, ele debruça-se sobre os detalhes do caso, conhece as pessoas, seu modo de vida, suas posses e suas carências. Depois de muito estudo ela dá a sentença e então a parte recorre e o caso vai para o Tribunal de Justiça, onde um desembargador, que não tem nenhuma afinidade com a situação, vai ter de analisar os fatos.

Casos como esse, que ajudam a tornar a Justiça mais lenta e ineficiente, são muito freqüentes e costumam exasperar o desembargador Carlos Teixeira Leite Filho, do Tribunal de Justiça de São Paulo. “A não ser que haja alguma questão de Direito, e isso é raro acontecer, tem de prevalecer nestes casos a decisão do juiz de primeira instância, que conversou com as partes e tem os elementos concretos para saber realmente o que é justo”.

O convite feito pela redação para a entrevista que se segue tem múltiplos motivos. Um deles é o de apresentar o perfil e as idéias de um representante do numeroso grupo de novos desembargadores que passou a integrar o TJ em maioria. Carlão, como é mais conhecido, é emblemático por representar uma nova geração de desembargadores que compõem o novo perfil do Judiciário nacional. No cargo desde fevereiro de 2005, ele já é o 301º integrante do TJ por ordem de antiguidade num universo de 356 juízes.

Outro motivo é que o desembargador é um atuante militante das causas da classe. Atualmente é o vice-presidente do Conselho Consultivo da Associação Paulista de Magistrados.

Carlão, é um juiz apaixonado pela sua missão e é reconhecido pela sua capacidade de articulação política — característica que o leva a participar de todos os esforços para o aperfeiçoamento do Tribunal. Jovem, ele tem 47 anos, acumula experiência de veterano nas coisas do tribunal e da Justiça paulistas. Filho e neto de juízes, freqüentou desde cedo os corredores dos tribunais ou acostumou-se a fazer respeitoso silêncio em casa, para não atrapalhar o trabalho dos magistrados da instância doméstica. “Eram outros tempos e outro ritual”

Antes de se tornar desembargador, Teixeira Leite foi assessor da presidência tanto do Tribunal de Justiça quanto do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Desse privilegiado posto de observação ele entendeu tanto a necessidade de os juizes de primeira instância terem assessores para dividir com ele as tarefas, como a importância das relações humanas para o bom funcionamento da Justiça.

Para ele fazer Justiça é muito mais do que aplicar as leis. “A reflexão, muitas vezes, é mais importante”. Ele conta casos comuns de execução de dívidas de condomínio, que o morador deixa de pagar, não por má-fé, mas simplesmente porque este tipo de dívida não expõe o devedor ao risco de ter o nome na Serasa. Ou do sujeito que comprou o carro para passear com a família no fim de semana e tem de devolvê-lo ao banco porque não consegue pagar a prestação. “Ele prefere ir entregar o carro no banco a se humilhar em casa diante do oficial de Justiça na frente da família e dos vizinhos.”

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, discorreu sobre suas experiências quem ajudam a entender como funciona o maior e mais complexo Tribunal de Justiça do país. Participaram da entrevista os jornalistas Maurício Cardoso, Rodrigo Haidar e Adriana Aguiar.

Leia a entrevista

ConJur — Qual o perfil do Tribunal de Justiça de São Paulo?

Carlos Teixeira Leite Filho — É difícil definir se é um Tribunal conservador ou progressista. Pela unificação acredito que a fase é de sedimentação, com reflexos em tudo, especialmente nos aspectos políticos, internos e externos. A prova disso, da novidade, é que os novos componentes do Órgão Especial, eleitos por todos os desembargadores, são, basicamente ex-presidentes dos antigos Alçadas. Ainda falta um pouco de integração. Nesse caso, acho que um grande problema é físico, pois, com os gabinetes dos desembargadores instalados em quatro prédios distintos, fica difícil uma maior convivência, o que se acentua pelo volume de serviço e a necessidade de se dar conta do acervo que todos receberam. São divisões físicas que se mantiveram, mesmo com a Justiça unificada.

ConJur — Isso é uma peculiaridade do Tribunal de São Paulo?

Carlos Teixeira Leite Filho — Exatamente. Mas acredito que isso se dê pelo gigantismo da Justiça paulista. São muitos juízes. Muitos desembargadores. Muitos processos. Não dá muito tempo de sentar e conversar com um colega.

ConJur — Por isso são nítidas as alas de pensamento, de comportamento?

Carlos Teixeira Leite Filho — Não. Acho que isso acontece muito mais em razão das matérias julgadas por cada desembargador e pelo o aspecto individual


ConJur — Não pela idade?

Carlos Teixeira Leite Filho — Não. É mais pela competência. Você cria uma afinidade jurídica pelo que julga e pelos colegas que fazem parte da Câmara que você participa. Acontece em outras atividades.

ConJur — Então, a única dificuldade de relacionamento se dá pela quantidade de trabalho?

Carlos Teixeira Leite Filho — Talvez sim, associada ao modo se ser de cada um. Nunca senti nenhum tipo de resistência ou distância. Muito pelo contrário. Logo quando fui promovido, convivia com os desembargadores mais antigos na carreira e não identifiquei situações que pudessem acentuar essa ou aquela diferença no tratamento.

ConJur — Como é a comunicação da Apamagis (Associação Paulista dos Magistrados) com a direção do Tribunal?

Carlos Teixeira Leite Filho — Como o Celso Limongi já foi presidente da associação, existe um canal de comunicação bem definido. Ocorre que o tribunal é muito mais presente na vida da magistratura do que a própria associação. É aí que está a maior deficiência da associação e o que deve ser mudado.

ConJur — Que tipo de reivindicação a Apamagis recebe?

Carlos Teixeira Leite Filho — Várias, desde salariais, às institucionais, como por exemplo e da atualidade, a necessidade do juiz de primeira instância ter um assessor. Também, a associação analisa diversas situações pessoais dos magistrados, sempre procurando auxiliá-los.

ConJur — Como o acúmulo de processos na Justiça paulista prejudica a formação da jurisprudência no Brasil?

Carlos Teixeira Leite Filho — Acredito que São Paulo, pelo tempo de julgamento dos recursos, deve estar atrás do resto do país na ordem de chegada nos Tribunais Superiores, apesar da maior proporcionalidade. Com isso é comum ver orientações surgidas de questões de outros estados e algumas vezes de modo e tempo diverso do que se decide aqui. Por exemplo: existem algumas de caráter tributário e fiscal que foram proferidas sobre problemas enfrentados por empresas que muitas vezes não são compatíveis com a realidade das nossas empresas, e isso pode traduzir alguma distorção quando adotadas como precedentes.

ConJur — A morosidade é o maior desafio do Tribunal de São Paulo?

Carlos Teixeira Leite Filho — Sem dúvida. A morosidade está associada à eficiência e a credibilidade dos serviços. Se não solucionamos um processo o mais rápido possível, isso pode afetar a credibilidade, e daí perdemos confiança. É a insegurança jurídica.

ConJur — A sessão de Direito Privado deve ser a mais volumosa do tribunal. Quantos votos o senhor já teve de proferir em um único dia?

Carlos Teixeira Leite Filho — Não sei se é a mais volumosa e acredito que hoje isso não existe mais ou menos importa. Sempre achei errado medir trabalho de juiz pelo número de casos julgados. O que deve ser analisado é o trabalho, como um todo. Número não significa resultado ou, justiça. Por exemplo, um juiz de Vara de Fazenda Pública não dá o mesmo número de sentenças que um juiz de Vara de Família. A este último, quanto menos sentença ele der e quanto mais acordos e soluções definitivas realizar, mais estará realizando a paz social, trabalhando tanto ou mais que o outro e, essa é a função que lhe cabe. Acredito que isso se aplica em segunda instância. Refletir sobre uma tese de direito, um contrato, pode ser tão desgastante e díficil quanto analisar uma prova no processo criminal e vice-versa. Não sei quantos votos proferi. Apenas faço o meu trabalho.

ConJur — Não é só uma questão de aplicar a lei.

Carlos Teixeira Leite Filho — Evidente que não. Veja o caso de erro médico, por exemplo. O juiz pode entrar em contato com um médico conhecido para tirar alguma dúvida. Por outro lado, em outras situações, nem sempre são os elementos menos técnicos que vão definir o resultado. Existe a reflexão. É evidente que o volume de processos prejudica esse tipo de análise

ConJur — Dá para ter uma idéia de quantos processos são julgados pela Câmara de Direito Privado separados por matéria?

Carlos Teixeira Leite Filho — Recentemente recebi um estudo do tribunal que mostra que a maior parte dos processos é de direito bancário, depois responsabilidade civil em geral, direito comercial, questões relativas a imóveis e familia. Mas existem picos e situações variadas ou medidas provisórias, que afetam essa estatística. É o momento econômico do país que vai definir a pauta da Justiça e muitas vezes, a maioria delas, não são previstas e refletem na estrutura que pode não estar preparada para o que surge como novidade.

ConJur — Ou seja, não é nenhum clichê ou demagogia dizer que uma melhor distribuição de renda resolveria boa parte do número de ações ajuizadas?


Carlos Teixeira Leite Filho — É lógico. Se existe a possibilidade de pagar ou fazer um excelente acordo, para que litigar com o banco ou porque se submeter a juros absurdos?. Se houvesse garantia dos serviços públicos essenciais à sociedade, não haveria tantos litígios voltados contra planos de saúde, por exemplo. No caso de financiamentos bancários ou de obrigações, não haveria tanto inadimplemento. Cansei de fazer audiência de cobrança de condomínio. Era revoltante: em 95% dos casos o condomínio não é pago porque o morador não pode e não porque não quer. É uma humilhação no local onde você mora e era comum ver que a causa não era de opção pessoal. Era uma necessidade: como o nome não ia ao Serasa no caso de falta de pagamento de condomínio, o melhor era adiar o problema. No caso de busca e apreensão de carro financiado é a mesma coisa. Quem se utiliza dessa linha de crédito é porque quer o carro, muitas vezes para o final de semana com a família, e se ele deixou de pagar tem uma razão maior. Jamais iria agir sem um motivo. Aliás, nessas ações, é comum os réus, na maioria sem defesa por opção, entregar os carros diretamente à financeira para não passar pelo constrangimento de ter o carro apreendido pelo oficial de Justiça diante dos vizinhos ou da família. E, a peculiaridade é que, fora a questão dos juros, há muito pouco de direito ou jurídico nessas ações.

>ConJur — Do que o Tribunal precisa para distribuir mais Justiça?

Carlos Teixeira Leite Filho — Basicamente de mais estrutura, de mais funcionários. Há uma carência muito grande de pessoal. Instalam várias varas, mas todas sem o que seria adequado. Também precisamos de mais juízes. E porque não contratar assessores para esses magistrados? Há muitas coisas que podem ser delegadas. Um assessor custa bem mais barato e é o caminho mais rápido. Por outro lado, há assuntos que nem deveriam chegar à segunda instância. É o caso dos recursos sobre o pagamento de pensão alimentícia quando a necessidade é presumida. Veja, por exemplo, o caso de um menor carente com o pai desempregado, que vive de bicos, ganha por volta de um salário mínimo e deve dar um terço disso ao filho. Foi o juiz de primeira instância quem analisou o caso, conversou com o responsável. É ele quem tem elementos para saber se o valor fixado é justo. Não é o Tribunal de Justiça. O Tribunal de Justiça não teve nenhum contato com as partes e não tem o que analisar concretamente, salvo raras exceções.

ConJur — As deficiência da prestação jurisdicional em São Paulo é o reflexo da relação do Judiciário paulista com o Executivo?

Carlos Teixeira Leite Filho — Se não há uma relação direta, com certeza tem muita importância. Pelo que observo, atualmente as relações são boas, mas, pelo sistema, independentemente das pessoas, poderia dizer que o Executivo faz o que quer. Desde que o Judiciário estadual perdeu o poder de julgar governadores, nós ficamos muito aquém do que deveríamos. O mais comum, nesse campo, é a troca de amabilidades e discurso dizendo que muito se respeita o judiciário e que decisão não se discute, se cumpre. Basta ver a questão dos precatórios para melhor se refletir a respeito. Não sei se há interesse do Executivo, como um todo, em ter um Judiciário ágil e, por mais que se fale em independência, do ponto de vista econômico não é isso que tenho visto. É um absurdo o Presidente do TJ ter que negociar orçamento todo ano, pleitear suplementação de verba quando isso é um serviço público absolutamente essencial, mesmo que não resulte em votos. Nunca se viu em uma campanha política algum candidato falar que vai construir forums.

ConJur — São Paulo está representado no Judiciário nacional de acordo com o peso que ele tem na política e na economia?

Carlos Teixeira Leite Filho — A meu ver não. Ao longo dos anos perdemos muito espaço. Por exemplo, é evidente que não queremos um Superior Tribunal paulista, mas hoje o jogo está completamente desequilibrado. Na verdade, um pouco da culpa é nossa na medida em que, por termos muitos desembargadores temos muitos candidatos. Isso não ocorre em estados com número bem menor de desembargadores, que podem concentrar o processo político necessário.

ConJur — Como anda a relação do Tribunal com a advocacia em São Paulo?

Carlos Teixeira Leite Filho — Institucionalmente, não participo dessas discussões. Mas até onde eu sei a relação é boa. Pelo que me recordo, houve um problema na questão de uma lista tríplice, para o quinto constitucional, uma questão de interpretação, apenas isso.

ConJur — E a relação com o Ministério Público?

Carlos Teixeira Leite Filho — Da mesma forma.

ConJur — Temos a impressão de que o Tribunal de Justiça de São Paulo é muito fechado. Ainda é assim?

Carlos Teixeira Leite Filho — Precisamos pensar que o trabalho do juiz é individual. Isolado. Fechado. Ele recebe enorme volume de processos, senta no computador e trabalha o dia todo. Mas, por um tempo, a Justiça esteve realmente muito longe da sociedade. Isso vem mudando paulatinamente. O Tribunal, como um todo, poderia ser mais transparente em algumas questões. Isso é até uma necessidade. Mas não dá para transformar uma pessoa tímida em extrovertida do dia para a noite só porque o sistema é outro e assim é melhor.

ConJur — A Justiça Eleitoral parece ser um exemplo de eficiência, pois os seus prazos, em regra, não podem ir além das eleições? O que da Justiça Eleitoral poderia ser aplicado à Justiça Comum?

Carlos Teixeira Leite Filho — Da minha experiência no Tribunal Eleitoral em duas eleições pude constatar essa certeza. Em primeiro lugar a lei, o procedimento obriga a uma menor formalidade. O dia a dia é diferente, bem mais objetivo. Ninguém quer perder tempo. O candidato quer seu registro, o marqueteiro a decisão sobre essa ou aquela propaganda e o eleitor quer votar e ver o resultado. Lá é mais do que comum, aliás necessário, um contato constante e direto com advogados e isso ajuda muito. O juiz eleitoral é obrigado a dar entrevista, a manter contato permanente com variados setores da sociedade local. No TJ, como sabemos, é completamente diferente.

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