Beija-mão jurídico

Juízes ainda têm de pedir bênção aos escalões superiores

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30 de novembro de 2006, 17h20

Não renego o orgulho por ter abraçado a carreira da magistratura. Em meio às crises que assolam os Poderes constituídos, sobressai o Judiciário como o mais imaculado dentre eles. Os episódios de corrupção, que envolvam juízes e servidores, são estatisticamente bastante inferiores aos verificados no âmbito do Executivo e Legislativo, em todas as esferas federativas. Têm sido rotineiramente apurados e punidos.

Ives Gandra da Silva Martins já escreveu “Poder Judiciário, o Poder Universitário e as Forças Armadas na Revisão Constitucional”, in A Reengenharia do Estado Brasileiro, Editora RT, 1995, p. (121):

“Dos três poderes, de longe, o melhor é o Poder Judiciário. É um poder técnico e não político. É um poder que fala nos autos e não pela imprensa. É um poder em que a seleção de seus componentes se faz em demorados concursos, à luz dos conhecimentos jurídicos do candidato e de sua idoneidade”.

Os juízes brasileiros trabalham arduamente. A dedicação insana a milhares e milhares de processos sob suas jurisdições não propicia tempo para refletirem sobre si próprios. Não percebem a contradição entre o poder externo e o poder interno de que desfrutam.

Desde que ingressei na carreira da magistratura, há 17 anos, senti o respeito que usufrui o juiz de Direito nas comunidades. A legislação nos atribui enorme gama de poderes para desempenharmos o árduo mister jurisdicional. Julgamos autoridades integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo, poderosos agentes econômicos e grandes proprietários rurais.

Exercemos poder de Polícia nas audiências, para concitar à ordem as partes e advogados. Mandamos conduzir coercitivamente testemunhas recalcitrantes. A nossa poderosa caneta pode assinar decretos de prisão, seqüestro de bens e separação de corpos.

Todavia, somos figuras diminutas perante as instâncias superiores. Para disputarmos promoções por merecimento ou mesmo uma singela remoção, temos de nos submeter ao famoso “beija-mão” perante os ilustres desembargadores integrantes dos órgãos especiais.

Não é franqueada aos juízes de primeiro grau a participação em deliberações administrativas dos tribunais. O humorista José Simão criou anedota, segundo a qual o marido traído é o penúltimo a saber. O último a saber passou a ser uma famosa autoridade da República. Na verdade — diriam os magistrados — o desditoso cônjuge é o antepenúltimo a ter ciência. O penúltimo é a citada autoridade brasileira. O último a saber das coisas é o juiz das instâncias inferiores.

Recentemente, vários magistrados atuaram nas eleições para presidente da República, governadores, senadores e deputados. Enquadraram diversos políticos nos rigores da legislação eleitoral. Da atuação enérgica da magistratura decorreu a sucumbência, nas urnas, de notórios e ultrapassados “coronéis” regionais. A Justiça Eleitoral age para assegurar aos eleitores o voto livre e consciente.

Mas, diz o ditado, “casa de ferreiro, espeto de pau”. No âmbito dos tribunais, os juízes de primeira instância ainda têm de “pedir bênção” aos escalões superiores. Não podem escolher os dirigentes dos tribunais. Não lhes é garantido o elementar direito à informação sobre a administração institucional. Os leões, aos olhos da sociedade, são frágeis camundongos, aos olhos das cúpulas judiciárias.

Eugenio Raúl Zaffaroni, hoje juiz da Suprema Corte da Argentina, apontou as mazelas (in Poder Judiciário — Crises, Acertos e Desacertos, Editora RT, trad. Juarez Tavares, 1995, pp. 88/89):

“A lesão à independência interna costuma ser de maior gravidade do que a violação à própria independência externa. (…) Os corpos colegiados exercem uma ditadura interna e se divertem aterrorizando seus colegas. Abusam de seu poder cotidiano. Através desse poder vertical, satisfazem seus rancores pessoais, cobram dos jovens suas frustrações, reafirmam sua titubeante identidade, desenvolvem sua vocação para as intrigas, desprendem sua egolatria etc., mortificando os que, pelo simples fato de serem juízes de diversa competência, são considerados seus ‘inferiores’. Deste modo, desenvolve-se uma incrível rede de pequenez e mesquinharias vergonhosas”.

Desse quadro desalentador, resulta uma classe intrinsecamente desunida. Infelizmente, a maioria dos magistrados está mais preocupada com interesses pessoais imediatos. A ausência de critérios na promoção por merecimento cria o “afilhadismo” entre desembargadores e juízes. Estes últimos necessitam lisonjear freqüentemente os primeiros. Ao nível da primeira instância, o convívio entre juízes não é nada solidário. Verifica-se permanente porfia de vaidades pessoais: é a cultura da rivalidade entre potenciais adversários nas futuras promoções. Se o colega estiver em apuros com algum noticiário negativo, mesmo injusto, tanto melhor. Menos um concorrente na corrida rumo à toga de desembargador.

Maquiavel, em O Príncipe, ensinou que o governante não precisa possuir todas as qualidades recomendáveis a um chefe de Estado. Basta que aparente possuí-las. Os juízes tendem a se tornar maquiavélicos nesse sentido. Mais do que em ter as qualidades do bom magistrado, estarão preocupados em aparentar possuí-las. Por exemplo, realizam obras suntuosas em prédios forenses, promovem festas feéricas ou se apegam ao recebimento de comendas e condecorações, em busca de notícias elogiosas na mídia. Muitas vezes a eficiente prestação jurisdicional fica ao largo de tanto aparato.

Eis influência bastante nociva na administração da justiça. Preteridos injustamente em promoções por merecimento, bons magistrados vêem esmorecer o entusiasmo com a carreira e a atividade cotidiana.

Democracia, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência são necessidades prementes e inadiáveis do Judiciário brasileiro.

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