Foco na realidade

Apesar dos pesares, combate à corrupção no país melhorou

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

29 de novembro de 2006, 6h00

A Justiça Criminal é, costumeiramente, acusada de lenta, ineficiente e de proteger os mais favorecidos na sociedade. Todavia, há aspectos pouco conhecidos e, menos ainda, discutidos. As acusações são feitas de forma apaixonada e nem sempre correspondem à verdade. A sociedade associa sempre a eficiência do sistema à prisão dos acusados.

É preciso que as críticas sejam feitas com isenção e com o objetivo de aprimorar o Poder Judiciário. É sempre bom lembrar que não há democracia sem um Judiciário forte e independente. Vejamos alguns pontos que merecem meditação, favoráveis e desfavoráveis ao Poder Judiciário.

Foro privativo

Determinadas funções públicas fazem com que o réu responda à ação penal em outro grau de jurisdição. Por exemplo, prefeitos respondem às ações penais nos Tribunais de Justiça (CF, artigo 29, X), juízes federais, nos Tribunais Regionais Federais (CF, artigo 108, I, “a”), e governadores dos estados, perante o Superior Tribunal de Justiça (CF, artigo 105, I, “a”). Explica-se a prerrogativa como uma necessidade de dar aos que exercem determinadas funções o direito de serem julgados por quem se encontre em posição superior, na estrutura hierárquica do estado. Esta opinião não é unânime (p.ex, G. S. Nucci, Cód. Proc. Penal Comentado, 5ª. ed, RT, p.257) e não existe nos Estados Unidos da América.

Os resultados dessa prerrogativa não são animadores. É fato notório, como diz o legislador processual (CPC, artigo 334, I), que as ações penais originárias não têm efetividade. Na verdade, os tribunais não são preparados para tal função. O recebimento da denúncia é feito pelo órgão especial ou tribunal pleno (Lei 8.658/93) e, por vezes, demora meses, em razão de pedidos de vista. A estrutura administrativa é preparada para julgar recursos e não para processar ações penais. Os servidores das secretarias não têm experiência prática. As provas, quase sempre, são colhidas por carta de ordem. Os julgamentos de mérito são demorados e excessivamente formais.

Em síntese, este é um problema significativo na ineficiência e descrédito da Justiça Criminal. Todavia, é norma constitucional e ao Judiciário cumpre obedecer. Apenas em um particular este Poder poderia dar um passo à frente. Seria adotar a louvável iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que especializou a 4ª Câmara Criminal em matéria de julgamento de ações penais originárias, conseguindo, assim, maior efetividade.

As quatro instâncias

Afirma a doutrina que, no Brasil, temos duas instâncias ordinárias e duas instâncias extraordinárias, estas exercidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça. A afirmativa, em tese, é verdadeira. Só que, na realidade, temos quatro instâncias, já que facilmente se levam os processos aos tribunais superiores. Basta um mínimo da habilidade para invocar-se a questão constitucional ou ofensa à lei federal. Alcançado este objetivo, terá o recorrente, garantidos, quatro, cinco ou mais anos. Neste espaço de tempo, provavelmente, não será executada eventual sentença criminal condenatória, em obediência ao princípio da presunção de inocência. E assim terá o acusado, tudo somado, de seis a dez anos entre os fatos e a decisão final. Quando esta vier, certamente muitas coisas terão mudado, beneficiando-se de leis mais favoráveis.

E mais. A existência de quatro instâncias, que encerra uma presunção de que a decisão centralizada em tribunais superiores será mais justa do que as das duas instâncias ordinárias, leva a outras conseqüências indesejáveis. O STF e o STJ, por receber um número exacerbado de ações originárias e recursos, acabam abarrotados de processos. Conseqüentemente, os julgamentos não são feitos com a rapidez ou com o apuro técnico desejado. Os ministros do STF e do STJ, premidos por um volume de trabalho descomunal, não podem dedicar aos casos que examinam o tempo necessário. Vítimas de um sistema judicial pouco racional, acabam se valendo de assessorias cada vez maiores. E o problema se avoluma, sem qualquer perspectiva de melhora.

Prescrição

A prescrição é causa de extinção da punibilidade. E com toda razão. Passado determinado lapso de tempo, impõe-se, no interesse de todos, o fim da persecução penal. É um benefício não apenas do réu, mas de toda sociedade. No entanto, o legislador, baseado na antiga Súmula 161 do STF, criou a prescrição retroativa, ou seja, aquela que decorre da pena aplicada (CP, artigo 110). Em poucas palavras, o lapso se conta pela pena imposta na sentença e não em abstrato. A partir daí surge a teoria (não adotada pela maioria dos tribunais) de que, se houver perspectiva de que isto venha a ocorrer, o juiz de pronto deverá reconhecê-la.

E mais. Se a sentença foi condenatória e o acórdão a confirma, este não interrompe a prescrição (STF, HC 77.519-1/SP, j. 20.10.1998). Só haverá interrupção se a sentença for absolutória e o acórdão condenatório. Recurso Especial ao STJ, sob o argumento singelo de ofensa à lei federal, seguido de outro ao STF sob qualquer alegação de violação da Carta Magna (o tamanho da nossa Carta Magna faz com que tudo possa ser discutido como afronta à Lei Maior), permite a ida dos autos à corte suprema. Entre a sentença condenatória de primeiro grau e a decisão final do STF, muitos anos passarão. E, na maioria dos casos, sobrevirá a prescrição pela pena imposta.


Mas não é só isto. A maioria das condenações criminais, atualmente, impõe penas restritivas de direitos em substituição à pena corporal. E com razão. Os cárceres não recuperam ninguém e estão abarrotados de presos. Só que há um detalhe pouco conhecido. Quando um tribunal de segunda instância (TJ ou TRF) julga o recurso e confirma a pena restritiva de direitos (ou a impõe, provendo a apelação), não costuma executá-la de imediato. Primeiro, por falta de hábito dos desembargadores em determinar a execução (que não é prisão).

Segundo, porque a jurisprudência do STF e do STJ são no sentido de que deve ser aguardado o trânsito em julgado. É verdade que se o caso for de prisão, executa-se imediatamente (STJ, Súmula 267). Mas se for uma mera prestação de serviços à comunidade (CP, artigo 43, IV), o STF e o STJ entendem que deverá aguardar-se o trânsito em julgado. Como os recursos especial e extraordinário demoram anos e só o início (ou continuação) do cumprimento da pena interrompe a prescrição (CP, artigo 117,V), fácil é ver que o reconhecimento da causa de extinção da punibilidade é quase uma certeza.

Pena de multa

Afirma a doutrina, com toda a razão, que a pena de multa é uma opção acertada, pois atinge o condenado em seu patrimônio e evita o seu encarceramento. Só que nosso sistema não tem sanção para quem não a cumpre. Isto porque, se o condenado não a pagar no prazo de 10 dias (CP, artigo 50), ela será considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública. Em outras palavras, ela será objeto de execução fiscal em uma Vara Privativa das Execuções Fiscais. Como é do conhecimento geral, estas varas encontram-se com milhares de processos (é normal que atinjam 30 mil processos) e as cobranças são de uma ineficiência assustadora.

O resultado é que o condenado paga se quiser, se for ingênuo. Se não quiser, não paga, facultando-se-lhe a defesa em local diverso, podendo valer-se de todas as alegações próprias do processo tributário, inclusive da decadência e da prescrição. Na pior das hipóteses, se tiver bens penhorados e todas suas alegações forem rejeitadas, poderá protelar a execução por cinco ou mais anos, valendo-se de todas as instâncias ordinárias e extraordinárias. Sintetizando, pena de multa e nada são quase a mesma coisa.

Sistema perverso

Diz-se que o sistema judiciário é perverso. E com razão. O último parágrafo do item 3 é uma prova disto. Criminosos condenados à pena de reclusão superior a quatro anos são imediatamente presos. Geralmente, assaltantes ou traficantes. Outros, cuja pena foi substituída, algo comum nos crimes contra a ordem econômica (pessoas socialmente mais beneficiadas), ficarão em liberdade e, com um pouco de habilidade, conseguirão a prescrição. Evidentemente, tais sutilezas passam despercebidas não apenas à sociedade, como a muitos operadores do Direito.

Na prática judiciária, muitas vezes os julgamentos acabam sendo mais rigorosos contra os economicamente menos favorecidos. Pessoas situadas em melhor posição social são, regra geral, defendidas por advogados mais competentes. Mas a diversidade de tratamento não é privilégio do mundo do Direito. Estende-se por todas as áreas da atividade humana. Por exemplo, o sistema de saúde. Não podemos nos esquecer de que estamos em um país que ocupa uma das piores classificações na distribuição de renda do mundo. Neste particular e na pouca educação das classes menos favorecidas está o centro da questão.

A presunção de inocência

A Constituição de 1988 deu ênfase aos direitos e garantias individuais. Não era de se esperar outra coisa. Após um longo período ditatorial, ansiava a sociedade brasileira pelo mais amplo direito de liberdade. Assim foi que o artigo 5º, inciso LVII, reconheceu, como garantia fundamental, o direito de não ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Esta situação, que é um ideal, de todo respeitável, gera dois tipos de interferência nos processos criminais.

A primeira delas é que parte da jurisprudência entende que um cidadão, mesmo com longa lista de inquéritos policiais e ações penais, se não tiver sido condenado, com certidão de trânsito em julgado, encontra-se na mesma situação de outro que, em toda a sua vida, jamais se viu investigado. Assim, a ambos se daria o mesmo tratamento, quer para efeitos de dosagem da pena (CP, art. 59), quer para decretação da prisão preventiva (CPP, art. 312). A segunda é que ambos, condenados em primeira e segunda instância, devem permanecer em liberdade até o julgamento de eventuais recursos especial e extraordinário.

Fora do âmbito do processo penal, mas dentro da credibilidade no Poder Judiciário, outras complexas situações podem ocorrer. Exemplifico:


a) Caio responde a dois processos criminais por peculato e a um inquérito policial por tráfico de entorpecentes, sem sentença condenatória transitada em julgado; pode, após aprovado em concurso, ser nomeado juiz de Direito?

b) Caio, respondendo a duas ações civis públicas por improbidade administrativa e a uma ação popular por lesão aos cofres públicas, tendo sido condenado pelo Tribunal de Contas do Estado, eleito deputado estadual, deve receber o diploma da Justiça Eleitoral?

c) Mévio, com 18 anos de idade, é condenado pelo Tribunal do Júri a 14 anos de reclusão pelo assassinato de seus pais, decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça; deve permanecer em liberdade enquanto recorre ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal?

Tudo isto seria aceitável se o sistema judicial desse resposta definitiva com eficiência (CF, artigo 37, caput) e em tempo razoável (CF, artigo 5º, inciso LXXVIII). Mas não dá, porque isto é impossível em um país de 180 milhões de habitantes, que admite que tudo chegue à suprema corte. O resultado é a descrença no Poder Judiciário e a total incompreensão quando um deputado é preso, depois responde a ação penal solto e continua em pleno exercício de seu mandato. Este é só um exemplo.

Apesar de tudo

No entanto, em que pesem todas estas peculiaridades do nosso irrealista sistema judicial, a efetividade nos casos economicamente relevantes cresceu nos últimos anos. E isto não foi fruto do acaso, mas, acima de tudo, pela atuação firme da Polícia Federal, do Ministério Público e pela especialização, na Justiça Federal, de Varas de crimes contra a ordem econômica. Quem se der ao trabalho de comparar as estatísticas das condenações antes e depois destas especializações, iniciativa cujo mérito se deve ao empenho do ministro Gilson Dipp, do STJ, verá que as coisas estão mudando.

Mera consulta via internet (p. ex. www.trf4.gov.br) permite que se chegue a tal conclusão. Mas, é evidente, grande parte das condenações permite a substituição da pena imposta por restritivas de direitos (CP, artigo 43). Esta medida, louvável porque esvazia nossos superlotados presídios e contribui mais para a recuperação do condenado, é — e deve ser — permitida a todos. Inclusive aos chamados criminosos de colarinho branco. Esta afirmativa não é gratuita e um dos muitos exemplos é a 1ª Vara Federal de Porto Alegre (competente para Execuções Penais), onde grande quantidade de empresários cumpre pena através da prestação de serviços.

O sistema judicial brasileiro em geral, e o criminal em particular, precisa ser mais conhecido e discutido pela sociedade. O avanço da corrupção no país (106º classificado, jornal O Estado de S. Paulo, 16/9/06, B8), a existência reconhecida de eficientes organizações criminosas, a má distribuição de renda e um sistema judicial concentrado na cúpula põem em risco a crença no sistema democrático. Por sua vez, as universidades deveriam estudar mais a política judiciária do Brasil, dando menos valor às discussões teórico-abstratas e estimulando os estudos que possam colaborar para o aperfeiçoamento da Justiça.

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