Fisco na contramão

Decreto do estado de São Paulo dificulta abertura de empresas

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27 de novembro de 2006, 12h23

A pretexto de combater a sonegação e o crime organizado, o governador paulista acaba de baixar o Decreto 51.305, publicado no Diário Oficial deste sábado (25/11), alterando o artigo 21 do Regulamento do ICMS e conferindo à Secretaria da Fazenda o direito de exigir uma série enorme de requisitos para deferir o pedido de inscrição de novas empresas.

Essa medida vem, curiosamente, no mesmo momento em que o Congresso acaba de aprovar a lei do chamado Supersimples, há tempos reivindicada pela sociedade como forma de desburocratizar e incentivar a abertura de novos negócios, ante a indiscutível necessidade de crescimento econômico.

Embora alguém já tenha afirmado que não existe crime organizado, mas sim polícia desorganizada, justiça desorganizada e sociedade desorganizada, ninguém duvida da necessidade de que as autoridades fazendárias se dediquem com afinco à defesa do erário, prevenindo as diferentes formas de fraudes e combatendo a sonegação, o contrabando, a pirataria e outras modalidades de delitos.

Todavia, a nova redação do artigo 21 do RICMS praticamente deixa ao critério da autoridade fiscal estadual autorizar ou não a abertura de novas empresas. Boa parte das disposições ora alteradas são totalmente ilegais e inconstitucionais.

Diz a norma aqui examinada que a autoridade poderá exigir um monte de coisas. Ao dizer que poderá, viabiliza a arbitrariedade, na medida em que deixa ao critério do chefe do posto fiscal o que vai exigir.

Os fiscais estaduais são funcionários de altíssimo nível, todos com formação universitária, aprovados em rigorosos concursos públicos, que não precisam desse monstrengo jurídico para continuar exercendo o seu eficiente trabalho.

O inciso I do tal artigo diz que a inscrição poderá ficar condicionada ao “preenchimento de requisitos específicos, conforme o tipo societário adotado, a atividade econômica a ser desenvolvida, o porte econômico do negócio e o regime de tributação”. Tudo isso sob o critério subjetivo da autoridade fiscal.

Ora, os “requisitos específicos” devem ser fixados em lei. Ainda vigora o artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, que diz que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

O tal decreto não pode, portanto, legitimar eventual negativa de inscrição porque um empresário, na opinião subjetiva da autoridade, não preencha algum requisito ou tenha de ter determinado porte econômico. Menos ainda que, para abrir uma empresa, tenha de adotar este ou aquele tipo societário, eis que as normas do Registro de Comércio são definidas por lei federal, não pela Secretaria da Fazenda.

Já o inciso II do citado artigo quer submeter a concessão da inscrição à “apresentação de documentos, além de outros previstos na legislação, conforme a atividade econômica”.

Ora, dentro do princípio da legalidade, previsto na Constituição, não é possível exigir documentos que não estejam previstos em lei.

Nesse inciso II, o decreto exige comprovação de “capacidade econômico-financeira”, o que permite que a inscrição seja negada, por exemplo, a quem tenha, no passado, tido um título protestado ou o nome no SCPC ou na Serasa.

E o inciso IV ainda condiciona o deferimento da inscrição à “prestação, por qualquer meio, de informações julgadas necessárias à apreciação do pedido”. Isso coloca a abertura de uma empresa, definitivamente, sujeita a um “julgamento” do fiscal de plantão!

O governador deu ao fisco estadual, por meio deste decreto, poder de vida e morte sobre o empreendedor paulista. Daqui por diante, qualquer pessoa só poderá abrir uma empresa em São Paulo se a Secretaria da Fazenda assim o permitir!

Se ela exigir informações que pelos seus critérios não definidos em lei forem julgadas necessárias e o contribuinte não as fornecer adequadamente, adeus empresa!

E não é só! O parágrafo 1º do mesmo artigo 21 autoriza o fisco a exigir “prestação de garantia ao cumprimento das obrigações tributárias” se o empresário tiver “antecedentes fiscais” que o desabonem ou “débito fiscal”.

Com esse dispositivo, o fisco paulista ignora todas as normas de direito vigentes, inclusive as Súmulas 70 e 547, esta última que se transcreve para maior clareza:

“Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.

Até mesmo uma suposta “resistência visando a impedir a ação fiscalizadora” seria motivo, segundo o decreto, para negar a inscrição estadual!

Isso para não falar na anterior “condenação por crime de sonegação fiscal”, com o que se pretende criar a pena eterna, a punição perpétua!

Ora, o Estado já dispõe de inúmeros mecanismos adequados à defesa de seus interesses e direitos, desde a lei de execução fiscal, que viabiliza bloqueio de contas bancárias, até a própria ação criminal que já coloca sonegadores na cadeia. Mas, é claro, tudo há de ser feito nos termos das garantias constitucionais.

Essa mudança no regulamento do ICMS é uma sucessão de arbitrariedades, um enorme amontoado de abusos. O que mais nos surpreende é que tenha sido assinado por um governador que é advogado e professor de Direito Constitucional!

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