Contra a lei

Prisão não pode ser baseada só na natureza do crime, decide STJ

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24 de novembro de 2006, 10h19

A prisão não pode ser decretada apenas porque o crime praticado tem natureza hedionda. O entendimento é da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu Habeas Corpus para o policial militar Samuel da Assunção Neto. Ele foi condenado por espancar até a morte, juntamente com outros três policiais, o taxista Luís Isaac Costa do Nascimento.

“Fundar a prisão do paciente exclusivamente na natureza hedionda do crime e, não na concreta necessidade da sua prisão cautelar, contrapõe à lei e à Constituição Federal”, considerou o ministro Hamilton Carvalhido, relator do caso.

Carvalhido observou que os bons antecedentes e a desnecessidade da prisão preventiva também são suficientes para que o PM responda ao processo em liberdade.

O taxista Luís Isaac Costa do Nascimento foi morto em 17 de dezembro de 1992. Três oficiais e Samuel Neto espancaram violentamente o taxista, o colocaram dentro da mala da radiopatrulha comandada pelo capitão e o levaram para uma mata, onde ele foi assassinado com sete tiros e teve o corpo incendiado.

Samuel Neto foi condenado a 15 anos e 6 meses de reclusão por homicídio e ocultação de cadáver. O tenente Leonardo Gibson, outro envolvido no crime, também conseguiu uma liminar para aguardar o julgamento em liberdade. Apenas o ex-cabo Mário Jorge Pamplona da Silva não conseguiu ser solto porque também é acusado por assalto e formação de quadrilha.

HC 61.688

Leia a decisão

RCDESP no HABEAS CORPUS Nº 61.688 – PA (2006/0139453-7)

RELATOR : MINISTRO HAMILTON CARVALHIDO

IMPETRANTE : HILÁRIO CARVALHO MONTEIRO JUNIOR

IMPETRADO : PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL ISOLADA DO TRIBUNAL

DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARÁ

PACIENTE : SAMUEL DA ASSUNÇÃO NETO (PRESO)

DECISÃO

1. Pedido de reconsideração da decisão denegatória de medida liminar, assim fundamentada:

"1. Habeas corpus contra a Primeira Câmara Criminal Isolada do Tribunal de Justiça do Estado do Pará que, negando provimento ao apelo de Samuel da Assunção Neto, preservou-lhe a pena de 15 anos e 6 meses de reclusão, pela prática dos delitos de homicídio e ocultação de cadáver, determinando, ainda, a expedição de mandado de prisão.

A ilegalidade da expedição do mandado de prisão contra o paciente antes do trânsito em julgado da condenação, dá motivação ao writ.

Alega o impetrante que "(…) em que pese os argumentos do ilustre Relator, determinou a prisão do paciente, fundados em entendimento que não se constitui ofensa ao princípio da presunção da inocência o recolhimento à prisão de condenado antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, crer-se que referida decisão teve o condão de contrariar o que já é questão pacífica nos Tribunais Superiores, qual seja, antes de transitar em julgado decisão condenatória não haverá recolhimento à prisão de forma antecipatória para fins de cumprimento de sentença, já que esse modalidade não possui previsão legal, havendo tão somente exceção se demonstrada a necessidade do decreto preventivo provada sua cautelaridade" (fl. 4).

Sustenta, mais,que "(…) no caso em tela o paciente continua na sua luta pelo reconhecimento que não lhe fizeram justiça no julgamento popular, razão pela qual interpôs Recurso Especial em tramitação de admissibilidade pelo Tribunal de Justiça do Estado, portanto, comprovadamente sem trânsito em julgado da referida decisão condenatória, constituindo-se sua segregação provisória em inegável constrangimento ilegal, passível de concessão do Writ para restabelecer sua liberdade" (fl. 4).

Pugna, ao final, pela concessão de liminar, "(…) por extensão a decisão já proferida em writ da lavra dessa Turma, por inteligência do art. 580 do CPP" (fl. 6).

Tudo visto e examinado.


DECIDO.

Desprovida de previsão legal específica (artigos 647 a 667 do Código de Processo Penal), a liminar em sede de habeas corpu> , admitida pela doutrina e jurisprudência pátrias, reclama, por certo, a demonstração inequívoca dos requisitos cumulativos das medidas cautelares, quais sejam, o periculum in mora e o fumus boni iuris.

In casu, afora ressentir-se o feito da sentença e do próprio inteiro teor do acórdão impugnado, a providência cautelar perseguida é idêntica à tutela jurisdicional postulada, que deve ser julgada pelo colegiado, no exercício da sua competência constitucional, não havendo, ademais, como deferir-se o pedido de extensão dos efeitos das decisões proferidas nos habeas corpus nºs 56.224/PA e 30.361/PA, em favor do co-réus Leonardo Santiago Gibson Alves e Emanuel Lopes de Lima, respectivamente, por indemonstrado pelo ora paciente a identidade de situações processuais, exigida pelo artigo 580 do Código de Processo Penal.

Liminar indeferida.

2. Solicitem-se informações pormenorizadas ao Juízo da Comarca de Santa Izabel do Pará e ao Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Pará, a serem prestadas com a maior brevidade possível.

3. Com a resposta, ao MPF.

4. Publique-se."

Alega o requerente que "(…) o paciente trilha o mesmo percurso processual do co-réu LEONARDO SANTIAGO GIBSON ALVES, seguramente há identidade de situações processuais, uma vez que denunciados, pronunciados, condenados, não se observa qualquer decisão diferenciada em sua situações pelo que se apresentou acima, razão mais do que suficiente para o deferimento da extensão pretendida no writ originário, razão pela qual, pugna-se pela admissibilidade do presente pedido de reconsideração, conseqüentemente concessão de medida liminar nos moldes adotado no HC 56.224/PA" .(fl. 29)

Informações às fls. 161/165 dos autos.

Tudo visto e examinado.

DECIDO.

Foi já julgado pela Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça o Habeas Corpus nº 56.224/PA, impetrado em favor de Leonardo Santiago Gibson Alves, co-réu na ação penal a que responde o paciente, cuja ordem restou concedida, em acórdão assim ementado:

"HABEAS CORPUS . DIREITO PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO. EXAURIMENTO DA INSTÂNCIA RECURSAL ORDINÁRIA. EXPEDIÇÃO DE MANDADO DE PRISÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM CONCEDIDA.

1. A excepcionalidade da prisão cautelar, no sistema de direito positivo pátrio, é necessária conseqüência da presunção de não-culpabilidade, insculpida como garantia individual na Constituição da República, somente se a admitindo nos casos legais de sua necessidade, quando certas a autoria e a existência do crime (Código de Processo Penal, artigo 312).

2. Tal necessidade, por certo, sem ofensa aos princípios regentes do Estado Democrático e Social de Direito, pode ser presumida em lei ou na própria Constituição, admitindo, ou não, prova em contrário, segundo se cuide de presunção júris tantum , como nos casos de inafiançabilidade de que trata o artigo 323 do Código de Processo Penal, ou de presunção iuris et de iure, como no caso do inciso II do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos.

3. A inafiançabilidade do delito é, pois, expressão legal, no sistema normativo processual penal em vigor, de custódia cautelar de necessidade presumida, cuja desconstituição, quando admitida, como o é nos casos de necessidade presumida júris tantum , reclama prova efetiva da desnecessidade da medida, a demonstrar seguras a ordem pública, a instrução criminal e a aplicação da lei penal, sendo desenganadamente do réu o ônus de sua produção (Código de Processo Penal, artigo 310, parágrafo único).

4. Por certo, não oferecendo o auto de prisão em flagrante senão a notícia que lhe é própria, vale dizer, do crime flagrante que determinou a prisão do agente, não se há de exigir do juiz que demonstre a necessidade da preservação da constrição cautelar, até porque presumido em lei.


5. Como no magistério de Weber Martins Batista, “Para ser mais exato, o juiz não precisa verificar se a prisão é necessária, pois essa necessidade se presume juris tantum: o que deve fazer é examinar se ela não é desnecessária, ou seja, se há prova em contrário, mostrando que, no caso, inexiste o periculum in mora.” (in Liberdade Provisória, 2ª edição, página 74, Forense, Rio).

6. Daí por que a liberdade provisória de que cuida o artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal, no caso, pois, de prisão em flagrante, está subordinada à certeza da inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, decorrente dos elementos existentes nos autos ou de prova da parte onerada, bastante para afastar a presunção legal de necessidade da custódia.

7. A Lei nº 8.072/90, que deu cumprimento ao inciso XLIII do artigo 5º da Constituição da República fez, de seu lado, insuscetíveis de "fiança e liberdade provisória" os crimes

hediondos, a prática de tortura, o tráfico de entorpecentes e o terrorismo, estabelecendo caso de prisão cautelar de necessidade presumida iuris et de iure, na hipótese de prisão decorrente de flagrante delito.

8. Mostra-se, assim, incompatível com a Lei e com a Constituição Federal a interpretação que, à luz do disposto no artigo 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal, conclui pela admissibilidade, no caso de qualquer desses crimes, da conversão da prisão cautelar decorrente de flagrante delito em liberdade provisória.

9. Hipóteses legais diversas são as dos artigos 393, inciso I, combinado com o artigo 594, e 408, parágrafo 2º, todos do Código de Processo Penal, que positivam constrições cautelares de necessidade presumida juris tantum, nas quais, em se cuidando de réu primário e de bons antecedentes, que respondeu ao processo da ação penal em liberdade, a necessidade de sua custódia deve emergir dos elementos existentes nos autos e ser demonstrada cumpridamente pelo Juiz.

10. Esta Corte Superior de Justiça, por outro lado, à luz da disciplina constitucional da liberdade, vem mitigando os termos estritos dos artigos 393, inciso I, combinado com o artigo 594, e 408, parágrafo 2º, todos do Código de Processo Penal, para estender a presunção juris tantum da desnecessidade da constrição cautelar, que milita em favor do réu primário e de bons antecedentes a todo aquele que, solto, responde ao processo da ação penal e que assim deve permanecer mesmo após o decreto condenatório, ressalvadas as hipóteses de presença dos pressupostos e motivos da custódia cautelar elencadas no artigo 312 do Código de Processo Penal, suficientemente demonstrados pelo Juiz.

11. Por imperativo lógico e decorrência da inafastável incompatibilidade da execução provisória da resposta penal com a garantia constitucional da presunção de não-culpabilidade, esse entendimento há de projetar a sua eficácia também na instância excepcional, posição que passo a adotar doravante, embora já estivesse presente, faz muito, como tenho declinado sucessivas vezes, na minha compreensão da essência de um sistema processual penal ajustado aos imperativos do Estado de Direito.

12. Havia, contudo, como há ainda, o óbice do enunciado nº 267 da Súmula deste Superior Tribunal de Justiça, de observância obrigatória pelos seus Ministros, que afasto, porque vencido sistematicamente na Sexta Turma e porque inviabilizados, no âmbito da Terceira Seção, os instrumentos regimentais de uniformização de jurisprudência, mostrando-se evidente uma espécie de cultivo da divergência, estranha, por certo, à função constitucional desta Corte Superior, mas de razão evidente em tempos de transformação, como os que estamos a viver.

13. Uma tal situação, porque se consolidou, compreendida objetivamente como deve ser, impõe o entendimento que passo a aplicar em minhas decisões, enquanto expressa evolução do sistema processual penal e, por isso, deve se transformar, pelo menos, em predominante.

14. Em resumo, nos casos de presunção juris tantum da desnecessidade da custódia cautelar, quais sejam, de réu solto, primário e de bons antecedentes, como na Lei, ou de réu que responde, solto, ao processo da ação penal, ainda que de maus antecedentes e reincidente, como na jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, a sua prisão, até o trânsito em julgado de sua condenação, somente será legal e conforme a Constituição da República, se demonstrada a sua necessidade pelo Juiz.


15. De um modo geral, conclua-se, em remate, em não se fazendo presentes os motivos legais da prisão preventiva, que reclamam demonstração efetiva e concreta, prevalece o princípio da presunção de não-culpabilidade, até o trânsito em julgado da sentença condenatória.

16. Tal compreensão, fundada na incompatibilidade da execução provisória da resposta penal com a presunção de não-culpabilidade insculpida na Constituição da República, afora harmonizar-se com as exigências do Estado Social e Democrático de Direito, em nada desserve ou prejudica a defesa da sociedade, devendo e podendo, como pode e deve o magistrado, de qualquer grau da jurisdição, decretar a prisão do réu no curso do processo da ação penal, já esteja ou não condenado, ainda que na instância recursal ordinária ou excepcional, sempre que se fizer presente motivo legal de prisão preventiva, sem deslembrar, sempre e sempre, que tal decisão excepcional deve ser efetiva e concretamente fundamentada, à luz dos fatos da vida, do concreto homem-autor e do fato-crime cometido, não lhe servindo, para tanto, opiniões pessoais e considerações de ordem genérica, ainda que tisnadas de gravidade.

17. Com efeito, a toda evidência, a fundamentação das decisões do Poder Judiciário, tal como resulta da letra do inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, é condição absoluta de sua validade e, portanto, pressuposto da sua eficácia, substanciando-se na definição suficiente dos fatos e do direito que a sustentam, de modo a certificar a realização da hipótese de incidência da norma e os efeitos dela resultantes.

18. Tal fundamentação, repise-se, deve ser deduzida em relação necessária com as questões de direito e de fato postas na pretensão e na sua resistência, dentro dos limites do pedido, não se confundindo, de modo algum, com a simples reprodução de expressões ou termos legais, postos em relação não raramente com fatos e juízos abstratos, inidôneos à incidência da norma invocada.

19. E em se tratando de prisão preventiva, a regra com incidência é a do artigo 312 do Código de Processo Penal, em cujo texto são elencados, além de seus pressupostos, os motivos que a autorizam.

20. Fundando-se a prisão do paciente exclusivamente na natureza hedionda do crime e no fato do exaurimento da instância recursal ordinária e, não, na concreta necessidade da sua prisão cautelar, contrapõe-se à lei e à Constituição Federal, de rigor a concessão do habeas corpus para superação do constrangimento ilegal.

21. Ordem concedida."

Caracterizada a hipótese do artigo 580 do Código de Processo Penal, ante a natureza objetiva dos motivos do decisum, cuja extensão é pretendida, reconsidero a decisão de fls. 249/250, para acolher o pleito cautelar e, em conseqüência, assegurar a liberdade do paciente, até o julgamento do presente writ.

2. Comunique-se.

3. Em mesa para julgamento.

4. Publique-se.

Brasília, 13 de novembro de 2006.

Ministro Hamilton Carvalhido, Relator

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