Briga dos valores

Juízes não deveriam querer carro zero e outros brindes

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24 de novembro de 2006, 14h57

O grandioso congresso da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entre anúncio de sorteios de vários prêmios — incluindo um carro zero — divulgou o resultado de pesquisa que colheu impressões de cerca de 25% dos magistrados brasileiros, a mesma que foi objeto de duras críticas das associações de juízes trabalhistas do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul.

A suposta opinião da magistratura brasileira aponta caminhos perigosos. Em um momento de evidente crise de paradigma, em que se trava luta por vezes inglória contra a supremacia das leis de mercado sobre os direitos constitucionais fundamentais, a AMB divulga pesquisa apontando que as leis trabalhistas constituem entrave ao “crescimento do emprego formal”. A pergunta, tal como formulada, já orienta a resposta, evidenciando um trabalho ideologicamente comprometido com o resultado perseguido e, enfim, obtido. Divulga-se, pois, que devem ser criados “critérios mais flexíveis para a demissão de funcionários públicos”.

A quem servem tais proposições? Qual o sentido de perguntas assim formuladas?

A incoerência do método adotado na pesquisa bem se revela no fato de que mais de 70% dos juízes consultados são contrários à retirada dos direitos trabalhistas do texto constitucional. Paradoxalmente, 64% desses mesmos juízes entendem que a legislação trabalhista é um entrave ao desenvolvimento do país. Como é possível a ocorrência de respostas tão contraditórias?

A pesquisa sugere, de modo unilateral e dissociado do movimento massivo de consolidação das garantias constitucionais, a possibilidade de inadmissível flexibilização das normas trabalhistas, na contramão da história do Direito do Trabalho.

No recente Congresso Ibero-americano de Direito Constitucional, realizado na mesma Curitiba, dias antes, profissionais das mais diferentes áreas reafirmaram a necessidade de garantir e tornar eficazes as normas constitucionais, notadamente aquelas que asseguram direitos sociais básicos. É chocante, a partir disso, o fato de que justamente uma associação de juízes suscite dúvidas a propósito da necessidade evidente de que os direitos trabalhistas permaneçam consagrados em nosso pacto social.

Como salientou o professor Canotilho, durante a palestra de abertura do evento da AMB, o juiz é instrumento essencial da democracia, compreendida como sistema de garantia da efetividade dos direitos fundamentais, dentre os quais merecem destaque aqueles que, como os direitos trabalhistas, asseguram o chamado mínimo existencial.

Em lugar de defender o papel político da magistratura, como instrumento da democracia, a pesquisa lança dúvidas quanto à indispensável intervenção estatal nas relações de trabalho. E o faz justamente em um momento histórico em que o direito civil caminha, a passos largos, para a sua constitucionalização. O faz em um evento em que Joaquim Herrera Flores e J.J. Gomes Canotilho são chamados a falar da importância da Constituição Federal como garantia de um Estado Democrático de Direito.

Desconsiderando essa premissa, a AMB divulga resultado de pesquisa que só tende a servir de instrumento para fragilizar ainda mais os direitos trabalhistas fundamentais. Não obstante o fato de que apenas 25% dos juízes responderam aos questionamentos, ainda que concorrendo a sorteio de pacotes de viagens, não houve cortes na pesquisa que pudessem indicar o pensamento dos juízes de acordo com as suas áreas de atuação.

As conseqüências da pesquisa divulgada não podem ser mensuradas, sobretudo no contexto de reformas em que estamos submersos. O fato é que a pesquisa presta-se ao papel de instigadora de mais um ataque contra os direitos trabalhistas. Afinal, se parte dos juízes brasileiros (incluídos 213 trabalhistas, num universo de 3,5 mil) acredita que a legislação trabalhista é causa para o aumento do trabalho informal, quem pode ser contra?

Ora, não é razoável que a magistratura brasileira se divida num momento em que a sua união é fundamental. Não é admissível que questionamentos acerca de elementos essenciais ao Direito do Trabalho, em nome de um pretenso exercício de democracia, sejam lançados de modo temerário, por meio de pesquisa fundada em questionamentos capciosos, onde a simplificação é arma para gerar dúvidas quando se deveriam reafirmar certezas.

Se o desenvolvimento é uma questão de justiça — como sugere o título do encontro da AMB — é preciso lembrar que somente se pode falar em desenvolvimento justo quando compreendemos o homem como destinatário e razão de ser do sistema jurídico. Não o homem individualmente considerado, mas o ser humano em sua relação com seus pares. Isso implica compromisso social com o qual o direito do trabalho está intimamente ligado.

Um pretenso desenvolvimento fundado na precarização dos direitos trabalhistas serve apenas ao mercado, cujas regras de regulação, hoje em dia, são tão ou mais valorizadas do que as regras afetas à relação de trabalho. E de nada adianta florear a realidade com prêmios valiosos. De nada adianta convidar palestrantes do calibre de Canotilho, se na contramão do que o ilustre professor português sustentou da tribuna, a magistratura, por meio das ações de suas associações, negam a mensagem do próprio discurso. Constituição Federal não é carta de intenções. Direito do Trabalho não é resíduo descartado pelo mercado. Juízes não querem, ou pelo menos não deveriam querer, brindes, pacotes turísticos, carro zero ou geladeira nova. Querem respeito aos direitos fundamentais do trabalho e à Constituição Federal que os abriga.

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