Micros e pequenas

Especialista analisa a nova lei do Supersimples e as licitações

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23 de novembro de 2006, 15h48

A nova Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas foi aprovada nesta quarta-feira (22/11) pela Câmara dos Deputados. Trata-se do Projeto de Lei Complementar 123/04, originário da Câmara, que já havia sido votado naquela casa no dia 5 de setembro, foi recebido pelo Senado como o Projeto de Lei Complementar 100/06, aprovado no dia 8 de novembro, e agora retornou à origem para apreciação das emendas propostas pelos Senadores. Com isso, o texto aprovado será encaminhado à sanção presidencial.

Entre os vários aspectos inovadores da lei está o tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios no que se refere ao acesso ao mercado, inclusive quanto à preferência nas aquisições de bens e serviços pelos poderes públicos (artigo 1º, inciso III).

O advogado e consultor jurídico de empresas Jonas Lima, sócio de Palomares Advogados e autor do livro A defesa da empresa na licitação (Ed. LZN, 2006), trata do assunto na entrevista abaixo:

ConJur — Qual a definição estabelecida na lei para microempresas ou empresas de pequeno porte?

Jonas Lima — A sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o artigo 966 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso. No caso das microempresas, trata-se do empresário, da pessoa jurídica ou a ela equiparada, auferir, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 240 mil. No caso das empresas de pequeno porte, o empresário, a pessoa jurídica ou a ela equiparada, que auferir, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240 mil e igual ou inferior a R$ 2,4 milhões.

ConJur — Qual o fundamento para o tratamento diferenciado estabelecido na nova lei?

Jonas Lima — A lei veio exatamente para regulamentar o “tratamento favorecido” às microempresas e empresas de pequeno porte, previsto como princípio no artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal.

ConJur — Considerando que em matéria de licitações a igualdade de tratamento é princípio básico, como fica essa questão?

Jonas Lima — O direito é sistêmico e suas normas não podem ser interpretadas de forma estanque, isoladas, mas sim como integrantes de um mesmo sistema. Por essa razão, o inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal, quando estabelece a “igualdade de condições a todos os concorrentes”, além do artigo 3º da Lei 8.666/93, que impõe a “igualdade” de tratamento entre os licitantes, e o artigo 4º do Anexo I do Decreto 3.555/00 (que regulamenta o pregão), bem como o artigo 5º do Decreto 5.450/05 (que regulamenta o pregão eletrônico), precisam ser observados em face do princípio do “tratamento favorecido”, insculpido no artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal. Não se pode esquecer que a igualdade deverá ser respeitada em virtude das diferenças criadas na própria lei para as microempresas e empresas de pequeno porte, inclusive, partindo da sua definição prevista no artigo 3º. Afinal de contas, igualdade é tratar desigualmente os desiguais, compensando assim as desigualdades existentes na prática.

ConJur — Qual a parte da lei reservada à matéria de licitações?

Jonas Lima — Além de breve referência no artigo 1º, inciso III, o novo texto legal possui o Capítulo V inteiramente destinado a tratar “do acesso aos mercados”, o que contempla uma “seção única” sobre as “aquisições públicas”, contendo os artigos 42 a 49.

ConJur — Qual a primeira regra a merecer destaque?

Jonas Lima — O artigo 42 da lei, quando estabelece que nas licitações públicas a comprovação de regularidade fiscal das microempresas e empresas de pequeno porte somente será exigida para efeito de assinatura do contrato. Na prática, isso não será tão simples de aplicar como parece, porque hoje existem diversas normas procedimentais vigentes na Lei 8.666/93 (Lei Geral da Licitações), além da Lei 10.520/02 (Lei do Pregão), do Decreto 3.555/00 (Regulamento do Pregão), do Decreto 5.450 (Regulamento do Pregão Eletrônico), e muitas outras normas federais, estaduais e municipais que estabelecem um modus procedendi para a análise de documentos nas licitações (um rito a ser seguido). Existe uma ordem em cada caso, um momento certo para a comissão de licitação ou o pregoeiro e sua equipe exigirem e analisarem documentos e propostas. Exemplo: como essa regra será aplicada para o caso da concorrência, se os envelopes de todos os licitantes devem ser entregues lacrados, já no dia da sessão inicial? Será uma exceção à regra, para as microempresas e empresas de pequeno porte apresentarem os documentos de regularidade fiscal posteriormente (apenas se vencedoras, quando forem assinar o contrato)? Como se pode prosseguir em uma concorrência se a análise da regularidade fiscal, em regra, é uma questão que antecede à análise de propostas, para, enfim, se chegar ao vencedor? Esse assunto, com certeza, vai gerar muitas discussões.


ConJur — Como será essa apresentação diferenciada de documentos de regularidade fiscal?

Jonas Lima — O artigo 43 da Lei estabelece como regra básica que as microempresas e empresas de pequeno porte, quando da participação em certames licitatórios, deverão apresentar toda a documentação exigida para efeito de comprovação de regularidade fiscal, mesmo que esta apresente alguma restrição. Em seu parágrafo 1º, dispõe que havendo alguma restrição na comprovação da regularidade fiscal, será assegurado o prazo de 2 dias úteis, cujo termo inicial corresponderá ao momento em que o proponente for declarado o vencedor do certame, prorrogáveis por igual período, a critério da Administração Pública, para a regularização da documentação, pagamento ou parcelamento do débito, e emissão de eventuais certidões negativas ou positivas com efeito de certidão negativa. Esse é um privilégio que, apesar de louvável pela sua finalidade, as grandes empresas também vão querer, por analogia. Em licitação cada licitante sabe, com antecedência, quais os documentos deve apresentar, conhece as regras e sabe que deixar de atendê-las, efetivamente, causará a sua inabilitação ou a desclassificação de sua proposta. Ademais, essa regra tende a atrasar procedimentos que poderiam ser encerrados em uma mesma sessão, como os pregões presenciais e eletrônicos (embora, na prática, muitos já estejam sendo desdobrados em mais de uma sessão).

ConJur — O artigo 44 da Lei determina que nas licitações será assegurada, como critério de desempate, preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte. Como isso fica na prática?

Jonas Lima — O parágrafo 1º do referido artigo, após emenda de redação do Senado, dispõe que os empates devem ser entendidos como situações em que as propostas apresentadas pelas microempresas e empresas de pequeno porte sejam iguais ou até 10% superiores à proposta melhor classificada. Já o parágrafo 2º, ressalva que na modalidade de pregão o intervalo percentual estabelecido no parágrafo 1º será de até 5% superior ao melhor preço. Esses dispositivos devem ser interpretados em conjunto com o artigo 45, que estabelece, inclusive, que a microempresa ou empresa de pequeno porte melhor classificada “poderá” (terá a faculdade de) apresentar proposta de preço inferior àquela considerada vencedora do certame, situação em que será adjudicado o contrato em seu favor. Além disso, na hipótese da não contratação da microempresa ou empresa de pequeno porte dessa forma serão convocadas as remanescentes, na ordem classificatória, para o exercício do mesmo direito. No caso de equivalência dos valores apresentados pelas microempresas e empresas de pequeno porte que se encontrem nos intervalos estabelecidos nos parágrafos 1º e 2º do artigo 44 será realizado sorteio entre elas para que se identifique aquela que primeiro poderá apresentar melhor oferta. Na hipótese da não contratação nos termos do caput do artigo 44 o contrato será adjudicado em favor da proposta originalmente vencedora do certame. Feitas essas considerações, deve-se frisar que o disposto neste artigo somente se aplicará quando a melhor oferta inicial não tiver sido apresentada por microempresa ou empresa de pequeno porte. Por fim, conforme previsão do § 3º, no caso de pregão, a microempresa ou empresa de pequeno porte melhor classificada será convocada para apresentar nova proposta no prazo máximo de 5 minutos após o encerramento dos lances, sob pena de preclusão. Além disso, a novidade legislativa precisa ser analisada considerando também a redação do parágrafo 2º do artigo 3º e parágrafos 2º e 3º do artigo 45 da Lei nº 8.666/93, todos esses dispositivos que já dispõem sobre critérios de desempate.

ConJur — Como fica o tratamento diferenciado em matéria de empenhos?

Jonas Lima — O artigo 46 da Lei prevê que a microempresa e a empresa de pequeno porte titular de direitos creditórios decorrentes de empenhos liquidados por órgãos e entidades da União, Estados, Distrito Federal e Município, não pagos em até 30 dias contados da data de liquidação, poderão emitir cédula de crédito microempresarial. Em seu parágrafo único, registra que a cédula de crédito microempresarial é título de crédito regido, subsidiariamente, pela legislação prevista para as cédulas de crédito comercial, tendo como lastro o empenho do Poder Público, cabendo ao Poder Executivo sua regulamentação no prazo de cento e oitenta dias a contar da publicação desta Lei Complementar. Observa-se, portanto, que não se trata de uma regra de aplicação imediata, pois depende de regulamentação. Em termos gerais, é benéfica em face das dificuldades vivenciadas pelas micro e pequenas empresas, que muitas vezes não resistem a atrasos de pagamentos de faturas, por menores que sejam.


ConJur — Como será dada aplicação ao “tratamento diferenciado e simplificado” previsto no artigo 47?

Jonas Lima — O referido dispositivo estabelece que nas contratações públicas da União, dos Estados e dos Municípios, poderá ser concedido tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte objetivando a promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional, a ampliação da eficiência das políticas públicas, e o incentivo à inovação tecnológica, desde que previsto e regulamentado na legislação do respectivo ente. Em suma, trata-se de uma “faculdade” e que depende ainda do regulamento de cada um dos entes mencionados.

ConJur — Como ficará a questão da realização de licitações abertas exclusivamente às microempresas e empresas de pequeno porte?

Jonas Lima — O artigo 48, inciso I, da Lei estabelece que, para o cumprimento do disposto no artigo 47, a Administração Pública poderá realizar processo licitatório destinado exclusivamente à participação de microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações cujo valor seja de até R$ 80.000,00. Certamente, as grandes empresas vão se insurgir contra essa regra, para conseguir espaço nas licitações, mas as pequenas vão se impor, em sentido contrário, para manter determinadas licitações fechadas, ou seja, sem a participação das grandes. O assunto somente será pacificado quando o Judiciário for chamado a decidir e depois de muitas discussões e casos concretos. Cabe registrar, entretanto, que conforme o artigo 49, os artigos 47 e 48 não serão aplicados quando não houver previsão no edital, não houver um mínimo de três fornecedores competitivos enquadrados como microempresas ou empresas de pequeno porte sediados local ou regionalmente e capazes de cumprir as exigências estabelecidas, quando o tratamento diferenciado não for vantajoso para a Administração Pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado, ou quando a licitação for dispensável ou inexigível. Em resumo, nem sempre a regra das licitações exclusivas para microempresas e empresas de pequeno porte será aplicada.

ConJur — O que dizer sobre a previsão de que algumas licitações imponham obrigação de empresas vencedoras subcontratarem microempresas ou empresas de pequeno porte?

Jonas Lima — Com efeito, o inciso II do artigo 48 estabelece que pode ser exigido dos licitantes a subcontratação de microempresa ou de empresa de pequeno porte, desde que o percentual máximo do objeto a ser subcontratado não exceda à 30% do total licitado. Nesse caso, os empenhos e pagamentos do órgão ou entidade da Administração Pública “poderão” ser destinados diretamente às microempresas e empresas de pequeno porte subcontratadas. Mas a ressalva que precisa ser feita, quanto a esse tema, é que a subcontratação será uma faculdade a ser exercitada pela Administração e para determinadas situações isso será mesmo inviável, por exemplo, dependendo do objeto licitado e do local de prestação do serviço ou fornecimento de bens.

ConJur — Como funcionará o sistema de cotas de contratação de microempresas e empresas de pequeno porte em licitações abertas também às grandes?

Jonas Lima — Isso está previsto no inciso III do artigo 48 da Lei, onde consta a possibilidade de que se estabeleça cota de até 25% do objeto para a contratação de microempresas e empresas de pequeno porte, em certames para a aquisição de bens e serviços de natureza divisível. Deve-se atentar para o fato de que essa é mais uma faculdade e não uma obrigação. A iniciativa é louvável e transmite perfeitamente a mensagem da Lei ou seja, de incentivar o “acesso ao mercado” para essas empresas. Isso é dar oportunidade às menores, mas deve-se lembrar que no momento em que as microempresas e as empresas de pequeno porte saírem dessas condições (com o seu natural crescimento), é evidente que deverão competir com as outras não abrangidas pela Lei.

ConJur — Qual o limite da Administração para se utilizar das faculdades previstas nos incisos do artigo 48, que beneficiam as microempresas e empresas de pequeno porte?

Jonas Lima — O parágrafo 1º do citado artigo estabelece que esse limite é de 25% do total licitado em cada ano civil.

ConJur — Quais as considerações gerais sobre a Lei?

Jonas Lima — Trata-se de uma lei que vem com intento bastante positivo, materializando, efetivamente, o princípio do “tratamento favorecido” às microempresas e empresas de pequeno porte, conforme previsão do artigo 170, inciso IX, da Constituição Federal. Entretanto, há muito o que discutir sobre a sua aplicabilidade na íntegra (pelo menos no que diz respeito à matéria de licitações), em virtude dos problemas práticos aqui comentados.

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