Lista negra

MPF entra com ação pública contra lista de inimigos da OAB-SP

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22 de novembro de 2006, 19h46

A lista de inimigos da seccional paulista da OAB pode estar com os dias contados. Depois de 12 juízes trabalhistas conseguirem liminar para tirar seus nomes do cadastro, agora o Ministério Público Federal em São Paulo acionou a Justiça para impedir a manutenção da lista, divulgada pela internet.

A lista já existe há dois anos, mas a polêmica em torno dela começou em novembro, depois que a Consultor Jurídico publicou a reportagem OAB de São Paulo faz lista de inimigos da advocacia. Desde então, a comunidade jurídica passou a divulgar as mais diversas manifestações de amor e ódio ao cadastro.

Nesta quarta-feira (22/11), o Ministério Público Federal ajuizou Ação Civil Pública contra a lista. O MPF pede liminar para que a OAB-SP seja proibida de divulgar o Cadastro das Autoridades que receberam Moção de Repúdio ou Desagravo.

Na ação, o procurador da República Márcio Schusterschitz da Silva Araújo pede também liminar para que a OAB-SP não se negue, no futuro, a fornecer a carteira da Ordem para nenhuma das pessoas que estão na lista. Estão no cadastro os nomes de 54 juízes, 21 delegados de Polícia, 17 promotores, 3 procuradores da República e 11 policiais militares, 6 escrivães. Aparece uma Câmara de Vereadores inteira, a de Mogi Guaçu, e integrantes avulsos das Câmaras de São Paulo, Mogi Mirim, Campinas e Rancharia. Segundo a OAB paulista, caso essas pessoas peçam a inscrição na Ordem para exercer a advocacia, terão o pedido negado.

Para o procurador, “é impossível juridicamente que uma autarquia corporativa crie, formule e divulgue lista de inimigos e que, ainda, a ela dê a extensão de vedar futuro acesso ao exercício de uma profissão”. De acordo com a ação, a lista publicada já causou danos às pessoas e aos órgãos públicos cujos nomes figuram no cadastro.

O Ministério Público Federal afirma que a lista de inimigos é uma sanção dupla, pois “avança sobre o nome, a honra e a vida privada das pessoas, lançando-as em um rol de condenação” e impede que o listado exerça, caso tenha interesse, a advocacia no futuro, “em uma incompatibilidade perpétua, prévia e absoluta com a profissão de advogado”.

Para o MPF, a lista de inimigos ofende o princípio da legalidade, pois a OAB não tem a autonomia necessária para impor sanções e infrações além de seus muros, o que ofende também o princípio do juiz natural, assumindo ao mesmo tempo as condições de acusador, julgador e vítima. “É essencial no afastamento do conflito de interesses que sejam separadas essas funções, notadamente a de acusador e vítima, sob pena de se constituir o exercício público da vingança privada”, afirma o procurador Araújo.

O Ministério Público Federal alega que o cadastro fere o artigo 5º, inciso III, da Constituição Federal, que prevê que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante. Ao tornar a lista pública, a OAB violaria o inciso X do mesmo artigo constitucional, ofendendo a imagem das pessoas, uma vez que a secção paulista da Ordem não pode definir sobre o bom nome e a honradez das pessoas.

Personae non gratae

A lista de inimigos da advocacia, que gerou grande revolta na comunidade jurídica, foi consolidada na sexta-feira (10/11) pela Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB paulista. São 211 casos que aparecem na lista. Para a presidente em exercício da seccional paulista, Márcia Regina Machado Melaré, a polêmica sobre o cadastro daqueles que não são bem-vindos na Ordem foi causada pelo título dado pela Consultor Jurídico — “lista de inimigos”, e não pela lista em si.

“É um processo legal, disposto em lei, garantido pelo Estatuto da Ordem dos Advogados, conferindo esse direito ao advogado, que preserva o direito do cidadão na busca da ampla defesa. Para a advocacia, o impacto da divulgação consolidada dos nomes foi positivo, porque os advogados ansiavam por essa prestação de contas de seu órgão de classe”, afirmou Márcia.

Depois que a ConJur divulgou a lista, no dia 3 de novembro, diversas entidades de classe já se manifestaram contra o cadastro, entre elas a Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação dos Juízes Federais e a Associação Nacional dos Procuradores da República.

12 fora

Nesta terça-feira (21/11), o juiz Ricardo de Castro Nascimento, da 3ª Vara Cível Federal de São Paulo, determinou que a OAB-SP retirasse o nome de 12 juízes trabalhistas da lista. A liminar foi parcialmente concedida em Mandado de Segurança ajuizado pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 2ª Região (Amatra II). A entidade pediu a suspensão de toda a lista e a proibição de sua divulgação. Conseguiu apenas a suspensão dos registros contra os juízes que representa.


A presidente em exercício da OAB-SP, Márcia Regina Machado Melaré, afirmou que a seccional paulista cumprirá a decisão e que o cadastro não tem a intenção de promover a “punição” de qualquer autoridade. Apenas de reconhecer a violação da prerrogativa profissional do advogado. “Todas as autoridades que figuram no Cadastro tiveram direito de defesa”, afirma.

Mas o assunto promete render ainda mais. Nesta segunda-feira (20/11), o presidente licenciado da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, afirmou que o cadastro é apenas o começo. Segundo ele, é preciso punir penal e financeiramente quem viola as prerrogativas da classe. Já há até mesmo um projeto de lei de criminalização de desrespeito às prerrogativas no Congresso Nacional.

Leia a ação

Exmo. Sr. Federal da ________ ª Vara da Seção Judiciária de São Paulo

O Ministério Público Federal, por seu Procurador que ao final assina e com base no artigo 129, II e III da Constituição Federal, e no artigo 1.º e seguintes da Lei n.º 7.347/85, vem ajuizar a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA com PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DA TUTELA em face da

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECÇÃO SÃO PAULO, pessoa jurídica de direito público interno de notório endereço;

Pelos seguintes fundamentos de fato e de direito

I.Introdução

Conforme noticiado pelos meios de imprensa, adota hoje a Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo uma lista de “inimigos” da advocacia (lista das autoridades que receberam moção de repúdio ou desagravo) com duplo caráter sancionatório, um inicial que avança sobre o nome, a honra e a vida privada das pessoas, lançando-as em um rol de condenação; outro por implicar em uma incompatibilidade perpétua, prévia e absoluta com a profissão de advogado, impedindo a que a pessoa possa no futuro, caso tenha interesse, exercer a advocacia .

Toda essa postura da Ordem dos Advogados em São Paulo traz as seguintes indagações: qual a possibilidade de um ente público, em um Estado de Direito, criar regras? Quais os limites dos poderes sancionatórios dos entes públicos? Pode um ente administrativo sancionar os membros de outros poderes? Em um regime de jurisdição única, pode um ente público aplicar o direito ao caso concreto em interesse próprio? Existem limites para a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil? Existe poder sancionatório em favor da OAB em face de não-advogados? Tem a OAB ampla disponibilidade para limitar o acesso das pessoas às atividades da advocacia? Pode a defesa das prerrogativas se destinar a impor a submissão do Estado de Direito aos interesses corporativos da advocacia? Existe a possibilidade de se estender a atividade econômica privada da advocacia e a pessoa do advogado para a condição de sobre-profissão e sobre-cidadão? Existem limites em um regime de separação de poderes e republicano às possibilidades de uma autarquia corporativa embaraçar o livre exercício das atividades legislativas, judiciárias, persecutórias e ministeriais?

I. Da lista

I.I. Da natureza sancionatória da lista

A lista de inimigos da advocacia já por seu próprio nome indica o seu caráter sancionatório, sua função retributiva em face de fatos perpretados em desrespeito ao que se tem como prerrogativas da advocacia e sobre a dignidade da função de advogado. Assim também e principalmente em face de ser acompanhada da vedação absoluta e perpétua ao exercício daquela profissão.

Sendo pena, traz para si toda a consideração sobre o regime constitucional da aplicação de sanção e sobre a previsão de infrações no ordenamento constitucional brasileiro. Aí, segundo temos, falha em todos os quesitos.

De início ofendido o princípio da legalidade e sua versão mais restritiva em matéria de direito sancionatório (CF, art. 5. º., II), qual seja, o princípio da estrita legalidade (art. 5. º., XXXIV), por não ser a Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo autarquia dotada de autônoma capacidade normativa e competente para a previsão de infrações e de sanções.

Ademais, ofendido o princípio do juiz natural e do devido processo legal na medida em que essencialmente fundidos no mesmo ente as atribuições de acusador, julgador e vítima. É essencial no afastamento do conflito de interesses que sejam separadas essas funções, notadamente a de acusador e vítima, sob pena de se constituir o exercício público da vingança privada

I.II. A inconstitucionalidade das sanções em si

Afora a inconstitucionalidade trazida pela ausência de competência legislativa por parte da OAB e pela quebra do princípio do devido processo legal em sua essência, as sanções conforme postas já são também em si inconstitucionais pela ofensa de uma ampla gama de dispositivos constitucionais.

Inicialmente, a lista como posta e publicada faz as vezes de instrumento de desforra, não fosse assim não haveria sequer razão para a fusão dos nomes de todas as pessoas nela, sua publicação e sua consideração como essência da defesa da advocacia pela defenestração das pessoas a ela ofensivas. Nessa linha de se ter que a natureza da desforra e o uso do nome das pessoas punidas em uma “lista negra” impõe a função de degradar e assim baixar o status das pessoas consideradas ao menos em face dos profissionais da advocacia. Assim infringido o artigo 5.o., inciso III, da Constituição Federal.


A publicidade dos nomes é, por outro lado, ofensiva à imagem das pessoas, definitivamente vinculadas ao cometimento de uma infração e ligadas em seu nome ao martírio corporativo – art. 5.o., X. Certamente aqui de se ter que não é a Ordem dos Advogados árbitro para definir acerca do bom nome e da honradez das pessoas, notadamente os não advogados1.

Ainda, veda a Constituição as penas de caráter perpétuo, como o é a absoluta proibição para a qualquer tempo exercer, o incluído na lista de inimigos, a atividade econômica de advogado.

Especificamente quanto à proibição do exercício da advocacia apontamos as seguintes inconstitucionalidades.

A regra pela Constituição Federal é a liberdade do exercício profissional e a exceção à restrição. Dentro dessas restrições temos notadamente as chamadas profissões regulamentadas sobre as quais criou-se a praxe legislativa de as colocar sobre a tutela de uma autarquia corporativa cuja finalidade é exatamente a de controlar a inscrição do profissional habilitado para o exercício daquela profissão e, já no curso do exercício profissional, se for o caso, punir o mau profissional com a inabilitação.

Os requisitos para a habilitação, por outro lado, são requisitos legais e compatíveis com o sistema constitucional, ou seja, por exemplo, não discriminatórios, não ofensivos à ordem econômica pela reserva do mercado, razoáveis, proporcionais, etc.

Esses requisitos para a advocacia são aqueles dados pelo Estatuto da Advocacia, art. 8.o., dentre os quais não se inclui qualquer requisito de “nunca haver aparecido em uma lista a ser conformada pela própria Ordem dos Advogados do Brasil com os nomes das pessoas que de qualquer maneira tenham atentado contra as prerrogativas da profissão de advogado”.

Por outro lado, não sendo advogados as pessoas constantes da lista não são sequer submetidas ao processo ético-disciplinar que permite a pena de inabilitação.

Ou seja, a pena criada de não se poder advogar não se conforma nem com os requisitos exigidos para inscrever-se nos quadros da Ordem nem com as consequências trazidas pelo mau exercício da advocacia. Em conclusão, é uma pena criada inteiramente dentro da autarquia com base em atribuições e poderes de que não dispõe.

De se ter assim que ofende a garantia ao livre exercício de qualquer emprego ou profissão o rol das pessoas montado ilegitimamente pela Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo.

Em conclusão, a restrição à livre iniciativa para o exercício da profissão de advogado não tem a extensão de sujeição à vontade arbitrária da autarquia corporativa que deve se vincular aos limites legais. A regulamentação legal de uma profissão não a torna da titularidade da autarquia, nem implica a subordinação da pessoa humana a tudo que quiser e bem quiser o ente administrativo.

I.III. O princípio da especialidade e considerações sobre a autoridade competente

Dizendo a Constituição que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, cumpre definir se é a OAB autarquia competente para processar e punir não-advogados.

Inicialmente, devem ser já afastados dessa pretensão punitiva em proveito próprio da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo os membros da Magistratura e do Ministério Público, os quais estão no exercício de suas funções por determinação constitucional, desvinculados de qualquer procedimento sancionatório administrativo de natureza correicional ou de censura que não aqueles permitidos pelo tratamento constitucional das respectivas instituições, na defesa da autonomia e independência das mesmas (art. 93, VIII, 95, 96, 99, 103-B, § 4. º., 127, 128, notadamente o § 5.º. e 130-A, § 2.º.).

O afastamento da OAB enquanto autoridade competente, no entanto, é mais amplo. A OAB é uma Ordem DOS Advogados em um sentido de que não compete a ela sair de seu âmbito de atuação de controle da atividade de advocacia para avançar sobre as prerrogativas correicionais dos diversos órgãos públicos e se fazer, ademais, de árbitro das iniciativas dos diversos ocupantes de cargos públicos e agentes políticos quanto à sua adequação ao atingimento da coisa pública.

As autarquias corporativas, como o próprio nome indica, são autarquias vinculadas a determinado meio profissional, não pessoas públicas com a capacidade genérica própria das pessoas jurídicas centrais, como a União, os Estados e os Municípios. A natureza eletiva própria dessas autarquias deixa isso bem claro. O princípio da especialidade aponta exclusivamente nessa direção. O princípio da separação dos poderes não permite a formação paralela de um Estado corporativo com poderes exorbitantes para fazer calar ou punir pessoas não vinculadas à profissão. O princípio republicano impõe a coisa pública e não a coisa corporativa e o texto constitucional é uno e não duplo, um para o geral da população e outro, ilhado no artigo 133 da Constituição Federal, para o advgado, sobre-cidadão.


Diz o princípio da especialidade, segundo os ensinamentos de Caio Tácito:

“não são as autarquias uma duplicata, ou reprodução das atividades ordinárias da Administração. Atendem a objetivos determinados, visando à realização de serviços especiais, para cuja execução torna necessária a descentralização administrativa. Surge daí outra característica das autarquias, consistente na especificação de sua atividade, nos moldes determinados na lei institucional. A especialização dos fins é outro dos elementos essenciais dessas pessoas administrativas” (Temas de Direito Público, Estudos e Pareceres, 1.o. Volume, Editora Renovar, p. 648)

A especialidade da Ordem dos Advogados já foi esclarecida nos seguintes termos por Themistocles Brandão Cavalcanti:

“caracterizam-se as funções da Ordem como de natureza especificamente estatal, pois que visa fiscalizar o exercício da profissão de Advogado, impôr penalidades e verificar as condições de capacidade e validade dos diplomas expedidos pelos institutos de ensino” (Curso de Direito Administrativo, 4.a. Edição)

Por outro lado, quanto ao princípio republicano, ensina a hoje Ministra do STF Carmen Lúcia:

“A República é o símbolo jurídico, tornado norma impositiva de um sistema de convivência política segundo o Direito, no qual a coisa do povo é exercida, efetiva, imediata e permanentemente segundo o seu interesse, não se podendo consagrar, nesse exercício peculiaridadesdecorrentes de condição pessoal específica e de privilégios,preferências ou preconceitos

(…)

Basicamente, são princípios constitucionais inerentes à República Democrática brasileira: a dignidade da pessoa humana, a igualdade dos indivíduos e a responsabilidade pública” (República e Federação no Brasil, Traços constitucionais da organização política brasileira, Editora Del Rey, p. 93 e 94)

Pelos princípios republicano e da especialidade, temos que a OAB fica circunscrita a dois extremos: de um lado não pode transbordar de sua finalidade específica e estrita de controle da advocacia. De outro lado, o controle da advocacia não pode se converter em uma advocacia ilimitada da própria advocacia, buscando sobrepô-la ao regime de legalidade e excedendo-se em protegê-la com a faculdade de embaraçar o livre exercício dos demais entes públicos.

I.IV. Do regime administrativista

A Ordem dos Advogados do Brasil é uma autarquia é como tal está sujeita aos princípios do direito público, próprios de todas as instituições públicas brasileiras. Submetida assim ao princípio da legalidade, por ele não pode criar sanções e definir infrações. Pelo princípio da impessoalidade não pode ser julgadora e acusadora nos processos em que tem por ofendidos as próprias prerrogativas da autarquia e daqueles que nela se inscrevem e votam. Em razão do princípio da moralidade não pode a OAB se destinar a buscar robustecer as prerrogativas dos advogados pela diminuição da liberdade de iniciativa das demais instituições públicas e dos ocupantes de cargos nelas.

De se ver aqui que são inconfundíveis duas coisas. A primeira, a dignidade constitucional da profissão de advogado e os méritos que lhe dá a Constituição — artigo 133 — com uma segunda, os limites jurídicos próprios de todo e qualquer ente público. Uma não tem o condão de afastar a outra e nem há qualquer oposição entre ser importante para o regime constitucional e estar vinculado aos termos da legalidade e da juridicidade.

A legalidade aqui — e sempre — quer dizer então exatamente limites. A autarquia deve atuar nos limites do regime constitucional: não deve criar penas, não deve se propor a perseguir seus interesses secundários quando não coincidam com o interesse público definido na regra de direito, não deve estender os termos de sua justificação legal para pessoas fora de sua abrangência, não deve embaraçar o livre exercício das funções públicas, não deve buscar a desforra, não deve preocupar em se armar com instrumentos que a lei não dá, não deve ser órgão de coerção ao arrepio da lei, nem deve esperar poder construir a verdade e o certo dos Poderes da República e da Administração Pública.

Como ensina Hely Lopes Meirelles:

“Nos Estados de Direito como o nosso, a Administração Pública deve obediência à lei em todas as suas manifestações. Até mesmo nas chamadas atividades discricionárias o administrador público fica sujeito às prescrições legais quanto à competência, finalidade e forma, só se movendo com liberdade na estreita faixa da conveniência e oportunidade administrativas.

O poder administrativo concedido à autoridade pública tem limites certos e forma legal de utilização. Não é carta branca para arbítrios, violências, perseguições ou favoritismos governamentais. Qualquer ato de autoridade, para ser irrepreensível, deve conformar-se com a lei, com a moral da instituição e com o interesse público. Sem esses requisitos o ato administrativo expõe-se a nulidade” (Direito Administrativo Brasileiro, Malheiros Editores, 21.a. edição, p. 93/94


I.V. Da separação de poderes

Diz a Constituição logo em sua base: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (art. 2.º.)

Desse dispositivo se extraem algumas conclusões. De início a conclusão de não haver um poder corporativo autônomo e controlador dos demais. Fundamentalmente, porém, diz o dispositivo que se deve velar no manejo do sistema jurídico no País pela independência dos Poderes e assim de maneira que um não possa constranger o outro.

Da lista de inimigos da OAB se vê, então, por exemplo, agentes políticos dos diversos poderes, constrangidos pela sua atuação conforme a finalidade de suas funções2. Nessa linha, de se ver que lançando mão a autarquia corporativa de um instrumento de constrangimento ao desembaraçado exercício dos Poderes da República, de maneira a amarrar por uma deslegitimada prevenção genérica, novos comportamentos contrários aos interesses muitas vezes econômicos da advocacia, traz o efeito de impedir a independência e plena atuação dos Poderes e o exercício pleno de suas atribuições. Pior até quando assim procedendo avança sobre o cidadão comum na referência – aquele não ocupante de qualquer posição em qualquer dos Poderes, mas fonte de todo o poder (art. 1, par. unico, da Constituicão), e legítimo destinatário da correta atuação de todos eles. Aí se tem afrontado o próprio artigo 5.o. da Constituição e a própria condição de cidadania da pessoa (art. 1.º., II e III).

Importa assim dizer que não cabe no desenho constitucional dos Poderes, nem nos limites da noção de República, a segmentação das possibilidades em favor das corporações, tampouco entregar-lhes o poder de punir membros de Poderes constituídos e os demais cidadãos, porque punir quer dizer principalmente conformar o comportamento, e não se pode admitir que uma profissão, com interesses econômicos, corporativos, limitados dentro do espectro da cidadania, tenha a atribuição de conformar o comportamento dos Poderes da República e da pessoa humana — cidadão — quando não considerado o estrito limite do exercício profissional a cuja fiscalização, e somente a isso, está predisposta a Ordem.

I.VI. A ausência de finalidade admitida em lei

Como todo ato administrativo, a lista de inimigos da OAB deve estar vinculada a uma finalidade admitida em lei e conforme ao interesse público, que com o fim legal, na verdade, se confunde, pois se o agente realiza a finalidade da lei atinge, ipso jure, o interesse público, ao passo que, se se desvia da finalidade legal, deixa de atingir, ipso jure, o interesse público, ainda que a finalidade perseguida seja “justa e moralizada”, para falar com o mestre Seabra Fagundes.

Em um regime republicano e democrático, vinculado ao império da lei em um sentido substancial, os entes públicos apenas encontram legitimidade para suas posturas e atos quando venham eles atingir um fim público imposto pela lei.

De certo, não é uma subjetiva retribuição um fim público legitimamente admitido, mas também já não é o fim de se sancionar não apenas fora das hipóteses legais mas também na persecução de um interesse secundário da Administração, aqui representado no interesse em fazer que temam os órgãos públicos ao advogado e que tenham medo da autarquia que os congrega.

Dessa forma, o sequestro da possibilidade de formulação de um juízo ainda que eventualmente contrário ao interesse de um advogado, não é interesse legítimo albergado por qualquer norma legal.

Não é um fim legal o de punir para conformar, notadamente quando se trata de instituições e órgãos fora do poder de conformação dos interesses corporativos.

I.VII. A lista e os requisitos do ato administrativo

Tradicionalmente, o ato administrativo é pensado com cinco requisitos. O primeiro deles é a competência. Dentro desse requisito, certamente não é a Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo ente competente ou com qualquer tipo de atribuição para sancionar pessoas estranhas àquelas lá inscritas. A Constituição não permite esse extravasamento de seu poder nem a lei, nem sequer seu Estatuto, trazem essas atribuições ou tal liberdade (dever-poder) de punir.

É também requisito do ato administrativo a finalidade “é o resultado que a Administração quer alcançar com a prática do ato” (…) “é o legislador que define a finalidade que o ato deve alcançar, não havendo liberdade de opção para a autoridade administrativa” (…) “seja infringida a finalidade legal do ato (em sentido estrito), seja desatendido o seu fim de interesse público (sentido amplo), o ato será ilegal, por desvio de poder” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, Editora Atlas, 11.a. ed., p. 195/196).


Dentro desse requisito, cumpre perguntar: qual resultado pretende a OAB atingir com suas sanções aos não advogados? Qual o substrato legal para esse resultado? E, em face dessas perguntas, cumpre reconhecer que a finalidade é proteger uma ilegítima super dimensão das prerrogativas e conformar ilegalmente as atividades dos demais órgãos aos interesses da advocacia. Não há, por outro lado, essas ou outras, qualquer finalidade de interesse público e ainda estritamente prevista pela legislação a ser obtida com uma lista de inimigos.

Outro requisito do ato administrativo é o conteúdo, que é “o efeito jurídico imediato que o ato produz” (Maria Sylvia, p. 191). Nesse, o efeito jurídico imediato é uma sanção sem previsão legal e, evidentemente, ilícita.

Mais um requisito é o motivo do ato. Esse é “o pressuposto de fato e de direito que serve de fundamento ao ato administrativo” (Maria Sylvia, p. 195). Para esse, idêntico problema de ilicitude aparece: o pressuposto de fato não corresponde à hipótese normativa de nenhuma regra ou princípio válido no ordenamento jurídico brasileiro.

Por fim, tem-se a forma do ato, viciada por um procedimento administrativo criado no parcial interesse de uma autarquia que se faz de vítima, julgador e acusador – sem se esquecer que se faz também do próprio legislador.

Por essas razões de se ter que nula qualquer lista com conotação de repúdio ou censura atribuídos pela Ordem dos Advogados do Brasil a pessoas que não sejam advogados, no estrito interesse secundário da corporação organizada em autarquia, por infrações não previstas em lei, em sanção sem qualquer base normativa e através de procedimento administrativo em essencial parcialidade.

II. Conclusão

Pelo exposto, de se ter impossível juridicamente que a autarquia corporativa crie, formule e divulgue lista de inimigos e que, ainda, a ela dê a extensão de vedar futuro acesso ao exercício de uma profissão.

III. Da necessidade de antecipação da tutela

De forma a atender aos modernos institutos de processo civil, tendentes a inibir o dano, temos por presentes os requisitos determinados pelo Código de Processo Civil para a antecipação da tutela.

O fumus boni iuris decorre dos argumentos acima expedidos.

Presente também o perigo da demora.

A atividade aqui imputada a Ordem dos Advogados do Brasil se revela já presentemente danosa.

Não podem restar desatendidos até o final da relação processual os interesses que impõem a conformação da atividade administrativa, notadamente da atividade administrativa sancionadora, a envolver as liberdades públicas e o correto caminhar da atividade administrativa.

Atual e necessitando afastamento os embaraços à normal atividades dos órgãos públicos com nomes presentes na lista ou com receito de aí figurar.

Imperioso ademais impedir o transbordamento da atividade administrativa durante todo o caminhar desse processo.

De se ter, inclusive, que o atingimento à honra se mostra faticamente irreversível.

As reações negativas trazidas ademais pela publicação da lista e o extravasamento das funções da OAB-SP implicam na necessidade da imediata recomposição do Estado de Direito.

Há, pois, imediata necessidade de se reverter a negativa de direitos em favor da cidadania e do normal andamento das atividades administrativas.

Dessa forma, não se quer recusar a garantia inibitória dada pelo artigo 461 e 273 do CPC e pelo artigo 84 do CDC, este instrumentalizando especificamente a tutela dos interesses difusos e coletivos.

Sobre a tutela inibitória e sua aptidão para impedir a continuidade de uma situação negadora do direito ensinam Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart:

“A tutela inibitória é essencialmente preventiva, pois é sempre voltada para o futuro, destinando-se a impedir a prática de um ilícito, sua repetição ou continuação. Trata-se de uma forma de tutela jurisdicional imprescindível dentro da sociedade contemporânea, em que multiplicam-se os exemplos de direitos que não podem ser adequadamente tutelados pela velha fórmula do equivalente pecuniário. A tutela inibitória, em outras palavras, é absolutamente necessária para a proteção dos chamados novos direitos. (…) A tutela inibitória não visa apenas a impedir um fazer, ou seja, um ilícito comissivo, mas destina-se a combater qualquer espécie de ilícito, seja ele comissivo ou omissivo. O ilícito, conforme a espécie de obrigação violada, pode ser comissivo ou omissivo, o que abre a oportunidade, por conseqüência, a uma tutela inibitória negativa – que imponha um não fazer – ou uma tutela inibitória positiva – que imponha um fazer”3

De se confirmar por todas essas razões, então, a necessidade de imediata inibição do dano.

V. Pedido

Pelo exposto, nos termos do art. 282, IV, do CPC, é a presente para requerer:

a) a antecipação da tutela para se suspender a eficácia e divulgação do cadastro das autoridades que receberam moção de repúdio ou desagravo elaborado e divulgado pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo;

b) a antecipação da tutela para se condenar a OAB-SP na obrigação de não fazer consistente em não publicar lista, rol, relação ou cadastro associado com imputado desrespeito às prerrogativas, faculdades, liberdades ou direitos dos advogados que contenha a indicação de qualquer pessoa que não seja advogado;

c) a antecipação da tutela para se condenar a OAB-SP na obrigação de não fazer consistente em não negar a inscrição em seus quadros ou impedir o exercício da advocacia em razão de condenação ou conclusão de culpa em qualquer procedimento ou ato administrativo da autarquia representado por moções de repúdio ou desagravo ou qualquer tipo de censura em razão de imputado desrespeito às prerrogativas, faculdades, liberdades ou direitos dos advogados;

d) a citação da ré e, ao final,

e) seja declarada a nulidade do Cadastro das Autoridades que receberam Moção de Repúdio ou Desagravo elaborada e divulgada pela Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo;

f) que seja condenada a OAB-SP na obrigação de não fazer consistente em não publicar lista, rol, relação ou cadastro associado com imputado desrespeito às prerrogativas, faculdades, liberdades ou direitos dos advogados com a indicação de qualquer pessoa que não seja advogado;

g) que seja condenada a OAB-SP na obrigação de não fazer consistente em não negar a inscrição em seus quadros ou impedir o exercício da advocacia em razão de condenação ou conclusão de culpa em qualquer procedimento ou ato administrativo da autarquia representado por moções de repúdio ou desagravo ou qualquer tipo de censura em razão de imputado desrespeito às prerrogativas, faculdades, liberdades ou direitos dos advogados.

Provará o alegado por todos os meios em direito admitidos.

Dá-se a causa o valor de R$ 1.000,00.

São Paulo, 22 de novembro de 2006.

Márcio Schusterschitz da Silva Araújo

Procurador da República

Notas de Rodapé

1 — De se observar que o ponto é trazido apenas enquanto causa de pedir para a nulidade da lista composta pela OAB sem já se avançar aqui nas possíveis pretensões individuais das pessoas ofendidas em sua honra em face da autarquia federal.

2 — Ademais, não fosse assim, não é a OAB a arena para a consideração de tanto.

3 — Manual do Processo de Conhecimento, Editora Revista dos Tribunais, p. 454 e 456.

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