Poderosos paulistas

STF não pode permitir que CNJ amplie controle de legalidade

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21 de novembro de 2006, 13h59

Um dos exemplos de como o Direito no país está se tornando a cada dia que passa instrumento de ideologias ou simplesmente de interesses pessoais é a recente decisão do CNJ de conceder liminar parcial para suspender os efeitos de uma decisão administrativa tomada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, dia 31 de agosto.

Essa decisão, embora liminar, é uma antecipação do que será o “julgamento” de mérito, posto que os conselheiros simplesmente já esgotaram todos os argumentos para justificar a concessão da medida.

Eis os fatos:

O presidente do TJ paulista, desembargador Celso Limongi, no dia 17 de julho de 2006, por meio de portaria, convocou o Tribunal Pleno do TJ-SP, formado pelo expressivo número de 360 desembargadores, para decidir sobre a aplicação do artigo 93, XI, da Constituição Federal (EC 45/04) que diz o seguinte:

“Nos tribunais com número superior a 25 julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de 11 e o máximo de 25 membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno, provendo-se metade das vagas por antigüidade e a outra metade por eleição pelo tribunal pleno”.

Dia 31 de agosto, responderam à convocação mais de dois terços dos desembargadores que declararam, por unanimidade de votos, a autonomia e a independência do Poder Judiciário paulista (artigos 99 e 125, da CF). Na mesma sessão, decidiu-se também manter o Órgão Especial já existente, mas que fosse eleita comissão de desembargadores para redigir projeto de um novo regimento interno do TJ-SP (artigo 96, inciso I, letra “b”, da CF) para definir novas competências internas, inclusive a do próprio Órgão Especial, certo que, como não poderia deixar de ser, o referido projeto seria examinado, discutido e aprovado em sessão pública do próprio Tribunal Pleno.

No dia 20 de setembro, em sessão do Órgão Especial do TJ-SP, os 25 desembargadores que o integram, mais uma vez, por unanimidade de votos e cumprindo a decisão do Tribunal Pleno, elegeram três membros do órgão para compor a comissão de reforma.

A importância histórica dessa decisão tomada foi a de ser o primeiro tribunal pleno do país a restabelecer a ordem natural das coisas colocando o órgão especial na sua condição contingencial, na exata compreensão do artigo 93, inciso XI, da CF, supra transcrito.

É necessário explicar que foi a reforma do Judiciário de 1977, levada a efeito pela ditadura militar, que impôs aos tribunais de Justiça um órgão especial composto, a exemplo da hierarquia militar, por 25 desembargadores mais antigos, detendo, como de fato deteve ao longo desses 29 anos, o poder jurisdicional e administrativo supremo do Poder Judiciário estadual. Essa imposição era natural para a época uma vez que partia de um sistema ditatorial onde a minoria comanda a maioria, ou seja, desde então se inverteu, dentro dos tribunais, o princípio que informa o Direito administrativo democrático da hierarquia entre órgãos públicos e não da hierarquia entre agentes públicos.

Esse brevíssimo relato foi feito em razão de o CNJ estar prestes a homologar a continuidade desse sistema vencido pelo tempo e cujas raízes estão fincadas no autoritarismo da ditadura militar.

Para a surpresa dos outros 348 desembargadores do TJ-SP, os 12 desembargadores mais antigos e, por isso mesmo, integrantes do Órgão Especial do TJ-SP, foram ao CNJ, em 15 de setembro, portanto, depois da decisão unânime do Tribunal Pleno de 31 de agosto e antes da decisão unânime do próprio Órgão Especial de 20 de setembro, pleitear a intervenção branca no TJ-SP para manter a supremacia jurisdicional e administrativa do Órgão Especial tal qual o regime militar criou.

O que é incompreensível nisso tudo é o fato dos 12 desembargadores nada terem objetado quando da sessão do Tribunal Pleno e depois na sessão do próprio Órgão Especial, do qual são integrantes em razão da antiguidade, quando tinham, cinco dias antes, silenciosamente protocolado a reclamação no CNJ contra o TJ-SP.

O CNJ, por sua vez, concedeu liminar, pasme-se, para suspender apenas a parte da decisão do Tribunal Pleno que trouxe para si a competência constitucional de aprovar o novo regimento interno, atendendo assim ao que mais preocupa os 12 desembargadores mais antigos que é perder o privilégio de serem os únicos a concorrer às funções diretivas do TJ-SP. Essa preocupação está clara quando no requerimento ao CNJ sustentam, sem rebuços, que o Tribunal Pleno do TJ-SP incidiu no gravíssimo defeito de usurpação de competência (sic) do Órgão Especial, não escondendo, por outro lado, que a questão se centra na insustentável interpretação de que o Tribunal Pleno do TJ-SP não pode, “ao seu alvedrio, desencadear o processo legislativo para alteração das regras que regem a eleição de seus órgãos diretivos ou a forma de composição do órgão especial”.


Veja a que ponto o CNJ está levando as suas funções públicas: conceder uma liminar, sem pejo algum, para manter, exatamente como impôs o regime militar em 1977, o funcionamento, de fato, de um sistema hierárquico administrativo fundado no poder do mais antigo, ou seja, a manutenção de um poder oligárquico e gerontocrático dentro do TJ-SP.

Acontece que o “Grupo dos Doze” não tem legitimidade alguma para ir ao CNJ pedir a intervenção no TJ-SP.

Seria ocioso, mas no caso é necessário repetir que no âmbito do Direito Público que trata da teoria dos órgãos públicos, a pessoa do agente público se distingue do órgão público que ocupa.

O órgão público é um centro de competências, como ensina a melhor doutrina pátria e estrangeira. Nesta condição, a vontade de agir do órgão público político é a vontade outorgada pela Constituição Federal ou a atribuída em lei ao órgão público. Enfim, a vontade do agente público só tem legitimidade e validade jurídica quando ela corresponde à competência do órgão público que ocupa.

Sabe-se que o Poder Judiciário é órgão constituído e estrutural do Poder de Estado. Os tribunais de Justiça, por sua vez, são órgãos do Poder Judiciário, assim como o tribunal pleno é órgão dos tribunais. Termina essa hierarquia orgânica com o órgão público político individualizado consistente no cargo de desembargador do TJ.

Portanto, dentro dessa realidade constitucional orgânica, a existência do órgão especial, como se disse acima, é meramente contingencial, ou seja, pode ou não fazer parte da estrutura administrativa dos tribunais com mais de 25 desembargadores. Isso significa dizer que o órgão especial é um órgão delegado do Tribunal Pleno para apenas viabilizar a administração interna dos tribunais, podendo a qualquer momento, por outro lado, ser extinto pelo Tribunal Pleno caso não corresponda às expectativas jurisdicionais e administrativas que lhe são delegadas.

É esta a estrutura orgânica hierárquica democrática de Direito que diferencia a estrutura orgânica administrativa de um governo de fato.

Nos regimes democráticos de Direito, os juízes não são funcionários públicos em sentido estrito, mas agentes públicos políticos que exercem funções jurisdicionais próprias de um órgão de governo de Estado, portanto, não existindo nenhuma espécie de hierarquia entre os desembargadores de um Tribunal de Justiça enquanto órgãos do poder estatal. Mas, por outro lado, isso não significa que não exista hierarquia administrativa dentro do Judiciário. Existe, mas é uma hierarquia entre os órgãos públicos, não a supremacia do Tribunal Pleno sobre todos os demais órgãos públicos que irá terminar no último grau hierárquico que é o órgão público que concentra a competência jurisdicional e administrativa das funções de um desembargador.

Observe-se a racionalidade democrática dessa hierarquia, que é exercida a partir da vontade pública de cada órgão público individualizado e da qual resulta a vontade geral pública do órgão Tribunal Pleno. Em síntese, é uma hierarquia administrativa posta (!) pelos próprios desembargadores.

Daí a razão de seguir a qualidade constitucional de ser o Tribunal de Justiça um órgão público colegiado, um centro de competências, uno, indivisível e com vontade independente e autônoma que é construída a partir da vontade política pública individual do desembargador.

Por conseguinte, no momento em que o Tribunal Pleno se reúne em sessão pública, é a sua vontade que será manifestada e depois de consolidada pelo acordo de vontades individuais passa a ser lei interna que obriga todos os desembargadores. É o fenômeno sócio-jurídico por meio do qual se dá a transposição da vontade individual para a vontade geral, que vem desde a Grécia antiga e passou a ser elaborada a partir do racionalismo moderno, principalmente de Rousseau e sobre o qual se assenta a legitimidade da decisão colegiada: a vontade da maioria. É este, pois, o princípio republicano e democrático: a somatória das vontades individuais constitui a vontade geral que passa a obrigar de forma cogente a todos aqueles que a constituíram, ainda que ausentes.

Não me falhando a memória, Pascal ilustra bem esse princípio na metáfora do corpo humano em que membros e órgãos trabalham pela vontade única do próprio corpo, ou seja, não haveria a possibilidade ôntica da existência da racionalidade humana se cada órgão ou membro do corpo humana resolvesse agir por vontade própria. E é exatamente por isso também que numa República Democrática de Direito nada pode haver acima da vontade geral autônoma e independente, sob pena de se instalar um governo político de fato, o governo de uma oligarquia, como é a pretensão do Grupo dos Doze e que veio encontrar apoio na liminar do CNJ.


Em conclusão, os integrantes do Grupo dos Doze não têm a mínima legitimidade para ingressar junto ao CNJ para fazer prevalecer seus interesses pessoais sobre a vontade geral do órgão público Tribunal Pleno do qual são integrantes. Sem dúvida que estão se comportando como na metáfora de Pascal: pés que querem ser o corpo. Por outro lado, essa insensatez hermenêutica está sendo sufragada pelo CNJ, pasme-se, por seis votos contra cinco.

Mas da mesma forma que o Grupo dos Doze não tem legitimidade para requerer ao CNJ, este órgão não tem competência constitucional para intervir no Tribunal de Justiça de São Paulo.

Segundo o artigo 92, inciso I-A, da Constituição Federal (EC 45/04) o CNJ é órgão do Poder Judiciário, curiosamente incluído dentro da organização estrutural do Poder Judiciário, não por meio de uma seção própria, mas por inserção na Seção II, que trata do STF, do Capítulo II, da Constituição Federal, que disciplina a organização do Poder Judiciário (artigo 103-B), deixando, por isso, entrever que o referido CNJ exerceria as funções de uma suprema corte administrativa judiciária, cujo objetivo precípuo é controlar os eventuais desvios administrativos praticados pelos tribunais de Justiça, incluindo o Superior Tribunal de Justiça (artigo 103-B, parágrafo 4º, da CF).

Mas não é bem assim. Não é preciso muito verbo para explicar o que significa o vocábulo controle, de tal sorte que essa expressão deve ser interpretada de forma absolutamente restritiva, máxime o princípio da autonomia administrativa e financeira dos tribunais de Justiça do país que o CNJ está obrigado pela Constituição Federal a zelar, conforme a redação do artigo 103-B, parágrafo 4º e inciso I, da CF.

Confira-se:

“Parágrafo 4º – Compete ao conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:

I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências”.

Zelar pela autonomia obviamente não é retirar essa autonomia, ou mesmo controlar essa autonomia, sob pena de se, em admitindo esse poder, quebrar o sistema de repartição de poderes e especialmente violentar o regime constitucional federativo que declara a independência dos órgãos públicos políticos dos poderes de Estado (artigos 1º e incisos e 2º, ambos da CF). Por certo que autonomia controlada não é autonomia, tão certo como controle não significa substituição de vontade.

Em face, pois, da obrigatoriedade do CNJ em “zelar pela autonomia do Poder Judiciário”, não pode este órgão subtrair a vontade geral autônoma e independente do Tribunal Pleno do TJ-SP para substituí-la pela vontade do CNJ, posto que a sua competência constitucional é de controle de “legalidade dos atos administrativos normativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário” e não de controlar a constitucionalidade dos atos administrativos públicos políticos expedidos pelos tribunais de Justiça substituindo a vontade geral e política destes.

A função pública competente para declarar a inconstitucionalidade de ato administrativo normativo expedido pelo Tribunal Pleno dos tribunais de Justiça é privativa do órgão jurisdicional supremo da nação, ou seja, do Supremo Tribunal Federal, na exata dicção do artigo 102, inciso I, letra “a”, da Constituição Federal.

É bem por isso que a Constituição Federal foi rigorosa ao dizer que compete ao CNJ a correção de ilegalidade do ato administrativo e não de inconstitucionalidade de ato administrativo normativo do Poder Judiciário porque, caso contrário, estaríamos frente a um poder administrativo supraconstitucional, acima até mesmo do próprio Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, no caso presente e de acordo com o artigo 96, inciso I, letra “a”, da Constituição Federal, “compete privativamente aos tribunais eleger seus órgãos diretivos e elaborar seus regimentos internos (omissis) dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”.

Esse preceito cuida exemplarmente do que seja a autonomia administrativa e independência jurisdicional dos tribunais de Justiça, de tal sorte que seria uma gritante antinomia jurídico-constitucional se se permitisse que o CNJ viesse a controlar a própria autonomia e independência dos tribunais de Justiça, interpretando a norma constitucional segundo os seus interesses políticos administrativos que, no caso, não são os mesmos da vontade geral do TJ-SP.

Por conseguinte, o CNJ, para invalidar a decisão do Tribunal Pleno do TJ-SP que chamou para si a competência constitucional de aprovar o novo regimento interno, só poderia começar a partir de interpretação dos preceitos constitucionais e esse poder o conselho não tem.

O que os doze desembargadores requerentes, como os próprios conselheiros que se auto-atribuem essa competência constitucional, não querem enxergar é a realidade de que não estão controlando ilegalidade alguma cometida pelo Tribunal Pleno do TJ-SP, mas apenas e tão somente substituindo inconstitucionalmente a vontade geral autônoma e independente do Tribunal Pleno estadual, portanto, a vontade do próprio Estado federado, pela vontade casuística e de fato de seis conselheiros.

Por conseguinte, representa um perigo iminente para a democracia brasileira o STF permitir que o CNJ amplie o significado do vocábulo controle de legalidade para: a) controle da constitucionalidade dos atos administrativos públicos normativos internos dos tribunais de Justiça; e b) substitua a vontade política geral de uma unidade autônoma e independente da federação pela vontade política de um órgão impedido de realizar tal substituição.

Estamos, pois, diante de uma absoluta impropriedade hermenêutica do CNJ ao entender que o contingencial (órgão especial) prevaleça sobre o necessário (tribunal pleno), ou seja, uma interpretação que, além de ser antinômica, viola o princípio constitucional da prevalência, numa sociedade democrática, da vontade geral pública sobre a particular.

O CNJ, afinal, exorbita ao assumir a condição de intérprete de normas constitucionais, usurpando função jurisdicional privativa do STF, concedendo liminar para 12 desembargadores paulistas que carecem absolutamente de legitimidade para requerer a anulação de uma vontade geral do Tribunal Pleno do TJ-SP que eles próprios anuíram.

A meu ver, não há como se deixar de considerar ofensiva aos artigos 92, inciso VII; 93, inciso XI; artigo 96, inciso I, especialmente à letra “a”; 99, 102, inciso I, letra “a”; 103, e incisos e parágrafo 1º; artigo 103-B, parágrafo 4º, incisos I e II; e finalmente ao artigo 125, todos da Constituição Federal, a decisão do CNJ em exame que concedeu liminar para suspender os efeitos de decisão legítima do Tribunal Pleno do TJ-SP.

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