Morte do coronel

Carla Cepollina é inocente e caminha altiva para a liberdade

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20 de novembro de 2006, 14h18

O cidadão Ubiratan Guimarães merece respeito na morte. A cidadã Carla Cepollina merece respeito na vida. Ubiratan era coronel da reserva da Polícia Militar e deputado estadual em São Paulo. Carla é advogada formada pela Faculdade do Largo de São Francisco e doutora em administração pública diplomada pela Fundação Getúlio Vargas. Não são os títulos de ambos que lhes impõem respeito — é, isso sim, a exigência ética inerente à condição humana da mulher que está viva e a exigência ética inerente à lembrança do homem que está morto. Mais que isso: Carla e Ubiratan merecem respeito porque se amavam e namoravam. E é aí que começa a falta a atuação desrespeitosa daqueles que insistem em acusar e, sumariamente, condenar Carla Cepollina.

Ubiratan Guimarães foi assassinado em seu apartamento em São Paulo no dia 9 de setembro último. Como namorada de mais de dois anos, e como sempre fazia, Carla atravessou aquele sábado com ele, compartilhou a manhã (compromissos de campanha política), compartilhou a tarde (almoço na hípica) e compartilhou o início da noite (lazer, momento de relaxamento e de amor). O coronel Ubiratan morreu com um tiro no abdome. Pois bem, bastaram o tiro e a morte para que autoridades e parte da mídia declarassem sem o menor fundamento que Carla e Ubitaran não estavam mais namorando.

É desrespeito com Carla porque, até os últimos momentos de vida do coronel, era ela quem cuidava dele, a ponto de lhe comprar praticamente todas as coisas das quais ele necessitava — o coronel a reembolsava. Por qual motivo ele preferia assim, isso é outra história. O fato, porém, é que ela comprava com os seus cartões de crédito (Visa e American Express), guardava os comprovantes de despesas e sempre foi ressarcida. Há quem diga que isso é mentira. Bobagem. Atestam a verdade, por exemplo, uma série de notas fiscais. Uma delas: nota da Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo (farmácia, rua Benjamin Constant, número 55). Valor da nota fiscal: R$ 60,66 (nota número 000003). Valor do comprovante da via do cliente do cartão Visa: R$ 60,66 (comprovante número 493490-7011-07/09). Nessa ocasião, Carla gastou, com ela, R$ 22,76 (condicionador de cabelos tingidos, fita dental, Dove tingido 250 ml, Trisorb oftalmológico). Carla gastou, com Ubiratan, R$ 37,90 (Dorflex, gilete Mach 3, Maxiden suspensão, Therapsor creme). Outro comprovante: R$ 40,00 gastos em DVDs para a campanha política de Ubiratan (Visa, número 493490-7011-08/06).

Há uma infinidade de notas que vão da compra de uniforme para a empregada doméstica (dele) que está grávida (e mesmo grávida foi demitida, não por Carla, sem ter seus direitos trabalhistas pagos) até a compra de medicamentos para cuidar do cateterismo e do tratamento de catarata aos quais o namorado se submetera. Pois bem: Carla, a namorada, cuidava do namorado com o desvelo que até algumas esposas não têm pelos maridos. Por isso, é desrespeito e injustiça em relação a Carla quando dizem que eles não estavam mais namorando.

Falou-se do desrespeito com a ela. Mas também se desrespeita a memória do coronel ao se afirmar que o namoro terminara ou, então, que ele queria colocar um ponto final na relação. Uma indagação: seria o coronel Ubiratan o tipo de homem que, mesmo querendo pôr fim a um relacionamento, continuaria a aceitar favores da mulher que ele pretendia abandonar? Outra pergunta: o coronel continuaria a se relacionar nesse modelo tão íntimo do “você compra e depois eu ressarço” com alguém que ele não queria mais intimamente ao seu lado? Avancemos para uma terceira questão: o coronel seria homem que continuaria se relacionando com uma mulher que ele pretendia abandonar? O signatário desse artigo tem certeza que não. O coronel, segundo todos que o cercaram profissionalmente e particularmente, era um gentleman. Um cavalheiro. Não agiria assim.

Por que então há quem afirme que eles não estavam mais namorando? A resposta é simples: para empurrar para Carla a pecha da culpa — e, nesse ponto, chega-se até a falar em vingança e em premeditação. Quem conhece Carla Cepollina sabe que ela não é mulher talhada psiquicamente (na química de seu cérebro) e nem é mulher talhada comportamentalmente (nos estímulos ambientais de sua emoção) para insistir numa relação com um homem que sinalize que não a quer mais. Carla é dona da rara inteligência bem humorada daqueles que riem de si próprios quando levam um fora. Ela não é impertinente nem é mulher dotada de temperamento de forçar a barra.

Carla Cepollina não é o tipo de mulher que diz: ou você fica comigo ou não fica com ninguém. Ela é feita de outra matéria e de outro espírito, não da matéria do ciúme, nem do espírito da possessividade. Por outro lado, o coronel, pelo que se sabe publicamente, também não era homem instável nas relações e, muito menos, mantinha casos amorosos simultaneamente. Segundo a mídia, houve um esboço de romance entre ele e uma delegada federal. Segundo o signatário desse artigo, em apuração própria, houve um concreto romance entre ele e a advogada Patrícia Piazzaroli, quando ela era muito jovem. Patrícia mora atualmente em Curitiba. Em conversa telefônica, ela contou sobre esse romance iniciado num passado longínquo. Segundo Patrícia, ela e o coronel Ubiratan Guimarães mantiveram, após o fim do namoro, uma sólida amizade, tanto que, diz Patrícia, planejaram se ver em Ilhabela no réveillon de 2005. Foi apenas plano de amigos, porque Ubiratan optou mesmo pela companhia da namorada, Carla, e foi com Carla que ele esteve em Ilhabela — com direito a fotos nas quais aparecem felizes.

Quis o destino, no formato de um projétil calibre 38, afastar Carla de Ubiratan. Desejar agora separá-los também no amor, somente para culpar Carla, é arma de calibre mais pesado. A cidadã Carla não matou o cidadão Ubiratan. A namorada Carla não matou o namorado Ubiratan. Não há contra Carla uma única prova material, há apenas a prova fácil das conjecturas. O revólver desapareceu. Carla sumiria com ele? Não. Carla não é uma psicopata que tenha passado a vida atirando em pessoas e evaporando armas — e olha que ela já tem 40 anos de idade. Quem tem o mínimo conhecimento de psiquiatria, no campo do transtorno da personalidade anti-social ou na área de transtorno do controle dos impulsos, sabe que uma pessoa não debuta na carreira de criminosa fria, calculista e perversa somente aos 40 anos de idade. Psicopatas não perseveram em nenhuma atividade.

Convém aqui lembrar: Carla Cepollina tem dois diplomas de duas das melhores, mais rigorosas e mais difíceis faculdades do Brasil — ou seja, é perseverante. Psicopatas não trabalham. Carla deu aulas em faculdade e atuou no mercado de capitais, sempre com sucesso — ou seja, ela trabalha e persevera. Psicopatas têm a afetividade embotada. Carla ama Ubiratan. Falou-se também que Carla lavou com soda cáustica a roupa que trajava naquele fatídico 9 de setembro. Mas não gastemos tempo com isso, os que defendem essa tese é que devem apresentar a roupa carcomida e esburacada pela soda.

Faço aqui uma viagem no tempo. E viajo para falar um pouco da mídia. Década de 50, Estados Unidos. Uma mulher chamada Barbara Graham (magistralmente interpretada no filme Want to Live por Susan Hayward) foi injustamente acusada de homicídio. O jornalista Edward Montgomery, do Examiner San Francisco, a julgou e a condenou à câmara de gás antes mesmo que a Justiça o fizesse. Sem provas concretas contra Barbara Graham, ele escrevia seus editoriais e chegou a confidenciar a uma colega: “ela tem tudo que interessa: é bonita, é inteligente e é mulher. Logo, é culpada”.

Ao longo do calvário de Barbara no corredor da morte, enquanto aguardava a execução por quase uma década, Montgomery percebeu o seu equívoco e passou a defendê-la em seus artigos. Tarde demais. Barbara foi executada. Não é diferente o que parte da mídia vem fazendo com Carla Cepollina: Montgomery só ouvia fontes policiais, o mesmo ocorreu no caso de Carla. Dizem que as provas estão no inquérito e no processo, e que não podem ser reveladas porque tudo tramita em segredo de Justiça. Mas se não sabemos das provas, como acusá-la? Carla é inocente, mesmo porque a presunção da inocência é cláusula pétrea da Constituição do Brasil. Não há provas. E a verdade é que não haverá porque se está acusando uma mulher inocente.

Sempre que personalidades policiais morrem em situações suspeitas e a própria polícia despreza procedimentos básicos, paira o fantasma da dúvida e inocentes podem pagar o pato — um duro pato. Quando o delegado Sérgio Fleury morreu no feriado de 1º de maio de 1979, no mar de Ilhabela, ao passar de um iate para outro, não se fez a necropsia do corpo. Temia-se encontrar álcool em seu sangue e isso desmoralizaria um dos símbolos da repressão política da época, além de poder prejudicar a família num eventual resgate de seguro. Passou-se então a falar em envenenamento, passou-se a falar que o pobre marinheiro, que mergulhara nas águas geladas para tentar salvá-lo, seria o responsável pela morte. Investiguei durante três anos, como jornalista, esse caso (isso já na década de 90). Conversei com todos que estiveram com Fleury segundos antes de ele cair na água e morrer. Conversei com todos que presenciaram a sua queda. Foi assim, e somente pela queda, que ele morreu.

No caso de Carla Cepollina, não fizeram exame de resíduo de pólvora em suas mãos (ela se ofereceu duas vezes). Não o fizeram pelo temor do resultado negativo — o que implicaria investigar em outras direções, e o coronel Ubiratan era um homem controverso demais: na questão dos 111 presos do massacre do Carandiru, na questão de funcionários que ele foi obrigado a demitir, pelo fato de ser policial e político polêmico. Conversei com pessoas do prédio em que o coronel morava. Um zelador me contou que ele não depôs à polícia, mas que outro zelador comentou que se “embananou” e se “confundiu todo” no horário de saída de Carla do prédio do namorado — afirmou inicialmente que foi por volta das 22h30. Detalhe: Carla (comprovadamente por vídeo) estava na garagem de seu edifício às 21h06. Esse zelador depois voltou atrás e disse que Carla saíra do prédio de Ubiratan entre 20h e 20h30.

A questão de horários merece atenção. As autoridades estimaram o horário da morte do coronel entre 19h e 20h20. É uma janela de tempo escancarada que não diz absolutamente nada. Ao mesmo tempo, tiveram a precisão (precisão?) de cravar seis minutos de um lado e um minuto do outro: entre 19h06 e 20h21. Quem consegue fixar minutos dessa forma não consegue diminuir a enorme janela de período de tempo de 1h20? Outro ponto. O coronel Ubiratan não subia em palanques com o temor de atentados e vivia cercado de armas em seu apartamento. Como um homem, preocupado assim com a própria segurança, deixaria aberta a porta de entrada da cozinha (porta de serviço)? Todos no prédio me confirmaram que essa porta estava aberta quando a polícia chegou. E nela não há impressões digitais de Carla.

Carla Cepollina tinha de ser investigada, e isso é óbvio. Mas não somente ela, e isso também é óbvio. Barbara Graham pediu para ser submetida ao detector de mentiras (maior avanço tecnológico na década de 50, espécie de DNA da época), mas lhe negaram esse direito. Carla Cepollina pediu (duas vezes) para ser submetida a exame residuográfico de pólvora, mas não lhe fizeram a vontade. Barbara caminhou altiva para a morte e hoje os EUA reconhecem que executaram uma inocente porque as investigações que a condenaram foram frágeis e não exaustivas. Carla caminha altiva para a liberdade e para a reparação de sua execração pública porque é inocente. Caminhará altiva como ela sempre foi, e com o pescoço ereto. Altivez e pescoço que lhe permitem usar a gola rolê que ela tanto gosta, sem que pareça uma tartaruga ninja. Aliás, Carla não esconde a cabeça. Motivo: a inocência não se porta como tartarugas.

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