Cegueira injusta

A história do inocente que passou oito anos atrás das grades

Autor

7 de novembro de 2006, 16h36

Cidade de São Paulo, 27 de janeiro de 1999, às 5h45. O jovem Ricardo Elias Gomes da Silva, com 19 anos, é estudante, trabalhador e rigorosamente primário, com bons antecedentes. Só ostenta uma mácula, talvez a mais grave: é pobre. É trazido de carro à sua casa pelo amigo Rubiano, com quem passara toda a madrugada assistindo aos ensaios de uma escola de samba.

Despediu-se desse amigo e entrou na sua residência, avistando e cumprimentando sua tia Edna, com quem também morava. Enquanto sua tia preparava o café, Ricardo Elias decidiu nesse tempo se dirigir ao portão da casa para fumar tranqüilamente um cigarro, sendo visto pela vizinha Marly. Nesse momento, desconhecidos que ocupavam um veículo Tempra passaram defronte da casa do rapaz, quiçá alcoolizados ou drogados, não se sabendo ao certo, tendo um deles, sem nada falar, a título gratuito, efetuado contra Ricardo Elias um disparo com arma de fogo, atingindo-o de leve no flanco esquerdo.

Desesperado, uma vez que ainda não sabia a extensão da lesão, Ricardo Elias procurou ajuda com sua tia Edna, tendo ela telefonado por três vezes ao cunhado do ferido Rogério, objetivando levá-lo de carro ao hospital mais próximo, o que aconteceu minutos depois. No hospital, Ricardo Elias, após completa identificação e fornecimento de seu endereço e telefone, foi atendido e dispensado, sendo deixado em casa pelo seu cunhado.

Temos o início do calvário de pranto, desmandos, truculências, arbitrariedades e humilhações que amargou o jovem Ricardo Elias, num inequívoco e abjeto acinte aos mais comezinhos e seculares direitos e garantias fundamentais de todo ser humano.

Por azar do destino, na mesma ocasião em que Ricardo Elias fora ferido em frente de sua casa, a 6 quilômetros dali, o guarda civil metropolitano Edson era vítima de roubo seguido de morte (latrocínio), existindo uma poça de sangue próxima do cadáver indicando tratar-se de um dos algozes, uma vez que a vítima, antes de perecer, teria reagido a tiros contra a investida. Numa sanha bestial, dando azo ao atavismo mais ignóbil, posteriormente endossado por autoridades mais graduadas, alguns confrades da GCM e da Polícia Civil, em verdadeiro concurso de pessoas, saíram à cata de todos os possíveis e imagináveis suspeitos. Prenderam, socaram e arrebentaram suspeitos e possíveis suspeitos, tudo sob a credibilidade dos cargos que ocupavam.

O covarde bando, numa medonha confraria, adredemente conluiado, envidaram diligências na redondeza, conseguindo chegar até o hospital onde Ricardo Elias fora atendido naquela manhã, localizando facilmente seu endereço. A GCM, que não tem função de Polícia Judiciária, conduzira Ricardo Elias coercitivamente ao distrito policial local, deixando-o incomunicável durante todo o dia, não lhe permitindo assim qualquer contato com advogado e muito menos com seus familiares. Depois de ter recebido um tratamento VIP (tratamento dispensado por maus policiais aos vagabundos, ignorantes e pobres), Ricardo Elias confessara, sem a presença de um curador, debaixo de bordoadas, que matara, juntamente com um outro suspeito de prenome Adauto, o guarda civil metropolitano Edson.

Concluído o inquérito, este foi distribuído para a 28ª Vara Criminal do Fórum da Barra Funda, cujo processo é o de número 115/99. Ricardo Elias foi denunciado pela prática de latrocínio, sendo citado e interrogado, esclarecendo na sua autodefesa que nada tinha a ver com os fatos que lhe eram atribuídos, informando ainda que apanhara muito na delegacia de polícia, sofrendo toda sorte de humilhação e maus tratos, o mesmo afirmando o co-réu Adauto.

A única testemunha da acusação que incriminara Ricardo Elias na polícia, Hermes, se retratou em juízo, afirmando que fora coagido a reconhecer Ricardo Elias, uma vez que os policiais lhe diziam que o rapaz já havia confessado a prática delitiva, além de ele ter outras passagens pela Polícia. As testemunhas de defesa mencionadas em outra parte, Rubiano, Edna, Marly e Rogério, foram ouvidas, reforçando a versão de Ricardo Elias.

A defesa juntou em abono da prova testemunhal conta telefônica estampando as três ligações que Edna fizera ao celular da testemunha Rogério, no mesmo horário e dia em que a vítima era morta a 6 quilômetros de sua casa, noticiando-lhe o ferimento de Ricardo Elias e solicitando socorro ao sobrinho. A defesa também providenciou exame de tipagem sanguínea em Ricardo Elias, cujo resultado foi o do tipo O, discrepando assim da tipagem sanguínea da poça de sangue encontrada em sentido oposto ao cadáver da vítima, cujo tipo era A.

Não obstante todo esse quadro probatório francamente incontestável a favor do acusado, deliberou-se atirar tudo isso para debaixo do tapete sujo da sala de audiências, sendo o jovem acusado condenado à pena de 20 anos de reclusão, no regime prisional integralmente fechado. Recorremos. Argüimos em preliminar do recurso a nulidade do processo, uma vez que o juiz monocrático indeferiu a realização de uma perícia visando aquilatar a distância entre o local dos fatos e a casa do acusado e, quanto ao mérito, pedimos a absolvição de Ricardo Elias.

No tribunal, perdemos o recurso. Não desistimos. Impetramos ordem de Habeas Corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, o qual concedeu a ordem para tão-somente anular o processo em razão da não realização da perícia requerida, mantendo, apesar disso, o acusado preso.

Não desanimamos. Ingressamos com recurso ordinário perante o Supremo Tribunal Federal, visando exclusivamente a soltura do acusado, eis que o processo tinha sido considerado manifestamente nulo pelo STJ. Novamente perdemos.

Realizada a perícia em primeira instância, o mesmo juiz singular repetiu a sua decisão condenatória. Recorremos, aduzindo mais uma vez em preliminar a nulidade do processo, certo que desta vez a defesa não foi intimada para se manifestar em alegações finais e, no tocante ao mérito, insistimos na absolvição do cliente. De novo no tribunal, perdemos o recurso por dois a um, ensejando o recurso de embargos infringentes, os quais foram julgados no dia 23 de agosto de 2006, acolhendo em definitivo a pretensão defensiva para absolver Ricardo Elias. O co-réu Adauto não teve a mesma sorte, uma vez que morreu na cadeia, quiçá mercê do guincho de chacota que fizeram de sua reputação.

Para dizer o mínimo, Ricardo Elias teve sua honradez perfidamente mergulhada no lodo do charco, levado que fora de forma truculenta, impiedosa e injusta ao fétido, podre e falido sistema prisional que causa náusea e degeneração até no mais energúmeno ser.

Ele foi devolvido agora à família, na condição de inocente, depois de passar quase oito anos cautelarmente preso numa pocilga estatal, esquálido, caquético, tuberculoso, amargo, desesperançoso com a vida e cheio de cacoetes carcerários. Quem irá agora resgatar em prol de Ricardo Elias parte de seus anos dourados transformados em anos enlameados pela incúria estatal?

Dir-se-á que o caso comporta uma ação reparatória. É verdade. Entrementes, as coisas jamais retornarão ao seu status quo, pois que não há quantia compensatória que devolva ao cidadão injustiçado a morte de quase oito anos de sua vida e, a julgar pelo tempo que demorou o processo criminal, o efetivo ressarcimento dos danos materiais e morais experimentados por Ricardo Elias viriam, com muita boa sorte, dentro de uns 15 anos, desde que também acesa uma vela para o seu santo favorito.

A verdade é a conformidade entre o fato real e a idéia que o espírito faz dele. Acrescento que a miopia existente no espírito de alguns julgadores jamais lhes permitirá chegar a essa verdade, certo que o óbvio só é óbvio para mentes preparadas e não apenas concursadas. A eles, meus veementes e virulentos protestos contra esse estado de coisas.

Façamos uma oração ao piedoso Deus para que nunca permita que nós nos tornemos insensíveis a essas atrocidades, sem prejuízo da oração aos moços em que o inolvidável Rui Barbosa dizia que “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!