A culpa é do mordomo

Imprensa e Justiça Eleitoral viram palmatória da eleição

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3 de novembro de 2006, 18h49

Embriagados pela farra eleitoral, derrotados e vitoriosos na disputa presidencial engalfinharam-se em uma discussão bêbada. O palco são os blogs — os nanicos que se agigantaram ultimamente. Os antagonistas são jornalistas e petistas, que se revezam no papel ora de vítimas ora de acusadores (Leia os textos relacionados sob este artigo).

A Justiça Eleitoral, depois de um bom tempo na linha de tiro, fez rodízio com a Polícia Federal, com institutos de pesquisa e agora com a grande imprensa. Como nos momentos de grande paixão, importa pouco a lógica ou a racionalidade. O importante é martirizar e atacar.

De repente, os contendores da disputa — Lula e Alckmin — passam para segundo plano. Bom mesmo é discutir se a PF trabalhou para o PT e se o TSE, com a imprensa, tentou impedir a vitória de Lula.

Dois fatos em especial, à véspera do segundo turno, alimentaram a aflição dos neopetistas nominados por Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo (nos textos abaixo relacionados): a divulgação das fotos do dinheiro não contabilizado com correligionários do presidente-candidato e as entrevistas do presidente do TSE, ministro Marco Aurélio. Claro: esses fatos turbinados pela grande imprensa.

Do outro lado do ringue, o inconformismo com a prevaricação da Polícia Federal, em malabarismos para investigar seus patrões — e com o uso escancarado que o instituto da busca da reeleição em posse do cargo permite. Naturalmente, para quem não queria um segundo mandato, incomodou muito a inabalável popularidade de Lula, calçada pelos avanços econômicos — ao que se diz: no topo e na base da pirâmide social.

Os fatos

Como se vê, a adjetivação no relato de fatos tem o saboroso poder de induzir. Mas, a bem da verdade, o que foi que aconteceu? Agora que a eleição se decidiu, talvez ofenda menos reafirmar o que já foi dito:

O governo comprou o apoio de dezenas de parlamentares com o chamado “mensalão”. Com a morte de Celso Daniel, desvendou-se uma fieira de casos de malversações e licitações viciadas em prefeituras. Algo parecido com o que se descobriria depois com o chamado escândalo dos “sanguessugas”. Foi uma sucessão prodigiosa de espetáculos, de Waldomiro Diniz às CPIs dos Bingos e dos Correios, com o afastamento de parlamentares, caciques partidários e atores mais ou menos periféricos. Chega-se à antevéspera das eleições com os episódios conhecidos de todos: uma montanha de dinheiro seria usada com o alegado objetivo de fulminar a candidatura alheia.

Afirma-se que, para prejudicar Lula, a grande imprensa amplificou fatos. Insistiu demais na exposição dos crimes eleitorais constatados. É quando o presidente do TSE vira alvo também ao comentar os crimes eleitorais dos quais jamais alguém duvidou que fossem crimes eleitorais. Mas, pelo que se depreendeu das críticas, um juiz não poderia tocar no assunto. Marco Aurélio, indagado, disse considerar a gravidade do fato maior que a do caso Watergate. Não antecipou juízo de valor sobre sua autoria. Constatou a existência do crime. Pagou caro por isso.

O papel do TSE

Aí é que começa o paradoxo — não em face do momento, mas perante a história recente da imprensa brasileira. Pôde-se testemunhar jornalistas conhecidos revoltados porque uma fonte, uma autoridade pública — no caso, o presidente do TSE —, em entrevista, respondeu a perguntas de jornalistas. Paradoxo, é pouco, já que não se pode entrevistar cadeiras ou mesas. Repórteres só podem entrevistar fontes.

O juiz eleitoral, por sua vez, depositário dos comandos legais que lhes são ditados pelo Parlamento, manifesta-se na defesa das normas pelas quais deve zelar. Acresça-se a isso, o fato de que a justiça eleitoral, diferentemente do seu ramo principal, não processa litígios entre particulares. Cabe a ela o papel de garantir o equilíbrio na disputa. E mediar a competição entre “A” e “B” não é seu principal papel. Além da colisão de interesses entre os concorrentes, há também o conflito dos objetivos das estuturas político-partidárias com a lei. Afinal, o TSE não está aí para proteger, principalmente, um candidato em relação a outro: mas para defender a legitimidade do processo e o interesse público.

A Justiça Eleitoral, pelas suas peculiaridades e pelo imediatismo que dela se exige, pode e deve interferir no processo. Faz parte de seu papel balizador. Cabe a ela orientar a visão das normas. Tanto mais que se o tribunal central não compartilha seus referenciais, a aplicação da lei não terá a uniformidade nacional que garante a igualdade na disputa. Representar a Justiça em meio a essa balbúrdia é uma aventura.

A visibilidade e a exposição buscada por Marco Aurélio ofendeu o time cujo jogador fez gol com a mão e não queria que o juiz apitasse a falta, nem muito menos a penalidade correspondente. Não. O correto seria fazer que ninguém viu. Nada se apurou nem se vai apurar, porque isso significaria o tal “golpe”.

O grupo de jornalistas-petistas que a partir deste ano passou a achar que algumas notícias não devem ser noticiadas pôde se escorar no fato de que houve, realmente, exagero em alguns casos — como bem descreve Luís Nassif no texto linkado ao pé deste. O mesmíssimo exagero que eles (nós) sempre praticaram (praticamos) diante de escândalos iguaizinhos a esses. Mudou o Natal ou mudamos nós? Quem pode decifrar o enigma? Se é que há enigma.

São muitas as verdades. Umas tristes, outras engraçadas. Entre as tristes está a de que a população tomou conhecimento de que foram cometidos crimes eleitorais. Como disse o ministro aposentado do STF, Paulo Brossard, houve motivos em abundância para a cassação do registro da candidatura do candidato-presidente. Mas, ainda assim, quem teria peito de fazer valer a lei, contra a vontade de 60 milhões de brasileiros — se todo poder emana do povo e em seu nome é exercido?

Desde quando sete juízes reunidos em uma sala teriam o poder de substituir-se à maioria do eleitorado brasileiro só porque a lei diz que certos crimes eleitorais levam à cassação de registros ou de diplomas?

Lula foi melhor candidato que Alckmin e provavelmente poderá desincumbir-se melhor como presidente que o tucano, que sequer conseguiu reunir em torno de si seus correligionários. A maior parte de seus votos não foi para ele. Foi contra Lula. E Lula venceu.

A verdade engraçada vai ser lembrar, no futuro, que em certo momento da vida do país houve jornalistas revoltados contra a publicação de notícias autênticas, fortes e verdadeiras. E mais: enfurecidos porque um entrevistado respondeu perguntas que eles mesmos fizeram.

Na semana que se seguiu ao encerramento do segundo turno, na grande imprensa, o assunto principal é a operação padrão dos controladores de vôo. Os blogs estacionaram na discussão estéril da influência (ou fracasso) da imprensa no resultado eleitoral. Bobagens como as circunstâncias em que o delegado Edmilson Bruno repassou à imprensa as fotos do dinheiro apreendido com petistas ainda rendem bate-bocas. Sobre o que fará o presidente Lula em seu segundo mandato, pouco se fala. Ou, como na antiga aula de aritmética, na grande equação do momento nacional, noves fora, nada.

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