Programa de rato

Record tem de indenizar família exposta no programa do Ratinho

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31 de março de 2006, 7h00

A Justiça paulista condenou a TV Record a pagar indenização para cada um dos integrantes de uma família exposta no extinto programa apresentado por Carlos Massa, o Ratinho. Pai, avô e tias de uma menina que procurou o programa para se submeter ao teste de paternidade devem receber 250 salários mínimos, ou R$ 75 mil, cada um.

O programa foi ao ar em abril de 1998. Segundo trechos transcritos no processo, uma adolescente recorreu à emissora para se submeter ao teste de paternidade, alegando ser filha do autor da ação. A Record apresentou o resultado do teste, confirmando que o autor da ação era mesmo o pai, e afirmou que este se negava a assumir a paternidade.

No entanto, ficou comprovado que dias antes de o programa ir ao ar, o pai da menina já havia entrado com petição na Justiça para reconhecer a paternidade e pagar pensão alimentícia. Por isso, a família alegou que a reportagem divulgou fatos irreais e, assim, ofendeu a reputação e a integridade dos envolvidos.

Além do pai da menina, o avô foi citado como se tivesse se colocado contra a mãe da criança. O programa também sugeriu que uma das tias da adolescente, promotora de Justiça, estava usando de estratégias jurídicas para impedir o reconhecimento da paternidade. A outra tia, segundo o programa, foi mencionada como sendo a porta-voz da recusa do avô.

O relator, desembargador Enio Santarelli Zuliani, da 4ª Câmara de Direito Privado, entendeu que houve abuso da reportagem da emissora, que se tornou ilícita ao relatar “algo irreal e comprometer a honra dos envolvidos”. O desembargador lembrou que, embora a censura seja proibida, o abuso do exercício do direito de informar não pode ser admitido, “porque existem patrimônio e reservas morais”.

“Não se permite, a pretexto de se comunciar com a massa, expor a vida de pessoas ao apetite das vulgaridades ou de comentários que não são de interesse popular ou público. Histórias familiares são biografias que integram direitos da personalidade”, afirmou.

Ele entendeu que a indenização fixada pela primeira instância em R$ 6,5 mil para o pai e R$ 13 mil para o avô e para uma das irmãs (cada um) era muito baixa em comparação com o lucro obtido pela emissora. “Ora, se a empresa de televisão explora, com intenção, fatos íntimos, sem a diligênica normal, para aumentar o índice do ibope e melhorar sua carteira de anunciantes, é justo que a indenização leve em consideração esse motivo do ilícito.”

Da decisão, ainda cabe recurso.

Leia a íntegra do voto do relator

VOTO Nº: 9526

APEL.Nº: 372.548-4/4

COMARCA: SÃO PAULO

Relator Des. ÊNIO SANTARELLI ZULIANI (4ª Câmara Direito Privado)

APTE. : MUSTAFA MOHAMAD EL HAGE e OUTROS

APDO. : RÁDIO E TELEVISÃO RECORD S/A. e OUTRO

Programa televisivo – Conhecido apresentador que explora o drama das famílias que recorrem ao exame DNA para descoberta da paternidade e que, em determinada reportagem, anuncia que os familiares recusam a assunção da paternidade confirmada pelo exame, quando, em verdade, o pai, dias antes, protocolizara pedido judicial para reconhecer a filha e lhe pagar alimentos – Culpa manifesta que depõe contra os predicamentos da dignidade humana dos envolvidos, do nome e reputação dos membros da família citada – Provimento do recurso dos autores para majorar o quantum por dano moral, negando-se provimento ao recurso da TV Record.

Vistos.

Os recursos que serão agora examinados decorrem do julgamento de ação que se promoveu em decorrência de reportagem do programa televisivo “Ratinho Livre”, exibido pela RV Record, no dia 22.4.1998, oportunidade em que foi comentada a situação de Patrícia Priscila Simões, que seria filha natural de Ali Mustafá El Hage. É interessante observar que no dia 6.4.1998, Ali Mustafá requeria em Juízo, com base em exame de DNA, o reconhecimento de Patrícia, como filha, comprometendo-se a pagar alimentos [fl. 290/288], tendo sido o pedido aceito e homologado em audiência realizada no dia 26.6.1998 [fl. 301].

Consta do laudo subscrito pela eminente Advogada, Dra. Eliane Y. Abrão, todas as falas e diálogos do referido programa, o que se deu em virtude da transcrição extraída da fita original fornecida pela TV Record [fl. 44 do apenso].

A ação foi promovida por Ali, seu pai Mustafá e suas irmãs Bachira e Amira. Os autores se sentiram ofendidos pela publicação de um assunto de família, cuja divulgação, no entender deles, ocorreu para menoscabar e ofender a reputação e a integridade de todos os autores, que foram citados pelo apresentador Carlos Massa, conhecido por “Ratinho”. Os autores também reclamam da devassa que se fez ao local de suas residências, em São Paulo, mostrada ao público como “fortaleza”. Também afirmaram que a imitação do sotaque dos libaneses foi mais um mecanismo para agravar a ofensa.


Observa-se que a contestação da RÁDIO RECORD S.A. pautou pela excludente da responsabilidade civil com o fundamento na verdade que foi transmitida. Alega que foi concedida oportunidade para que os envolvidos apresentassem suas versões, o que confirma a boa-fé profissional. Deve ser citado que a contestante, ao recorrer, utiliza o nome RÁDIO E TELEVISÃO RECORD S.A. [fl. 544].

A r. sentença julgou a ação improcedente em relação a Amira, com o argumento de que seu nome foi referido sem qualquer juízo de valor durante os colóquios gravados. Porém, os pedidos foram acolhidos em relação a Ali, com indenização de R$ 6.500,00 e Musatafá e Bachira, com indenizações de R$ 13.000,00, para cada qual.

As partes recorrem e insistem em suas pretensões.

É o relatório.

Pretende a apelante convencer o Tribunal sobre a magnitude da informação veiculada em programa de cunho popular, porque a mensagem buscava proteger os interesses da menina que almejava o reconhecimento da paternidade. Para esse fim, são citados os arts. 3º, 4º e 5º, da Lei 8069/90 [Estatuto da Criança e do Adolescente] e a própria oração do apresentador “Ratinho”, que chegou a explicar que o objetivo da divulgação do fato [exame DNA confirmando a paternidade biológica] buscava contornar o problema da morosidade da Justiça [fl. 49 do apenso].

Todavia, como explicar essas versões diante do documento de fl. 290? Recorde-se que à fl. 290 foi anexado cópia da petição que Ali Mustafá protocolizou, no Foro de Penha de França, reconhecendo a paternidade da filha, empenhando-se a pagar alimentos. O protocolo acusa a data de 6.4.1998, sendo que o programa do “Ratinho” foi ao ar em 22.4.1998. A televisão não poderia contribuir para resolver a lide, porque o pai já se dispunha, antes disso, a assumir a paternidade e pagar alimentos. E que morosidade da Justiça é essa que o apresentador se refere, se não existiu ação de investigação de paternidade, mas, sim, reconhecimento de paternidade que se resolveu dois meses depois, com acordo entre os interessados?

É forçoso concluir, diante da anterioridade do pedido judicial, que não existe, fora o interesse meramente econômico da empresa de radiodifusão, outra razão que explicasse a invasão da privatividade da família “El Hage”. Aliás, a preocupação em ganhar pontos no Ibope, ficou bem definida na manifestação de “Ratinho”, ao se referir ao índice da concorrente [TV Globo], conforme se verifica de fl. 45 do apenso; resulta, portanto, ser política da empresa explorar o drama e a miséria do ser humano na televisão para, com isso, atrair a atenção dos telespectadores, o que, sem dúvida, representa uma ousada estratégia de marketing para conquista de clientela aficionada por baixarias e reportagens de duvidoso senso ético.

Argumenta-se que nada proibia a reportagem, o que é verdadeiro, porque felizmente se garante, na Constituição Federal, liberdade de expressão e de opiniões, valor que alberga a legitimidade de se abordar comportamentos sociais para elogiá-los ou criticá-los [art. 220, caput, da CF], sendo vedado qualquer modalidade de censura [§ 2º, do art. 220, da CF]. Contudo, não se admite o abuso que se comete pelo exercício do direito de informar, porque existem patrimônios e valores demarcados com reservas morais. Não se permite, a pretexto de se comunicar com a massa, expor a vida de pessoas ao apetite das vulgaridades ou de comentários que não são de interesse popular ou público, como o de estar alguém reconhecendo, como filha, uma moça de dezesseis anos.

Histórias familiares são biografias que integram direitos da personalidade. O nome, a credibilidade, a reputação, são modelos de dignidade das pessoas, que não são obrigadas a revelar, em público, seus erros. A reportagem da TV, em horário nobre, se tornou ilícita quando transmitiu para milhares de pessoas, a versão de que o pai recusava a paternidade da menina, após o resultado do DNA, quando, na verdade, ocorria o inverso nos trâmites judiciários. Ali Mustafá ingressou, quinze dias antes, com ação para assumir, voluntariamente, a paternidade, quando se propôs pagar um salário mínimo por mês, de pensão.

O pior, no entanto, está na maneira como o assunto foi trabalhado pela emissora e o ícone televisivo. O apresentador “Ratinho”, conhecido pela sua truculência e seus modos rudes de um típico justiceiro que se esconde na suposta defesa de um inocente, avança sobre o ponto vulnerável do opoente, não permitindo que os destinatários da notícia formem, em relação aos envolvidos, outro juízo de valor que não o pior ou mais vil dos conceitos. Quem se expõe a uma reportagem dessa índole sofre, na prática, uma condenação social pesada e inapelável. Como explicar para os milhões de telespectadores que assistiram ao programa noturno de 22.4.1998, que o pai de Patrícia, procurou a Justiça para reconhecer a paternidade, no dia 6.4.1998?


Não fosse somente isso, o fato é que outras circunstâncias, que são próprias do modelo de atuação do profissional “Ratinho”, agravam a situação jurídica da empresa que, ao contratá-lo como âncora do programa, lhe deu liberdade para agir na mídia com o seu jeito de explorar os indivíduos e seus problemas. Os familiares de Ali Mustafá foram envolvidos de forma gratuita na reportagem que não deveria ir ao ar, como o foi, porque tudo o que se disse sobre a recusa de assunção de paternidade contrariava o que de realidade se sucedia no foro de Penha de França. O avô da moça foi referido como sendo contra o nascimento da criança e o reconhecimento da paternidade, sendo que nada existe para confirmar esse modelo comportamental. A irmã Bachira foi referida como sendo porta-voz da recusa, enquanto Amira, como Promotora de Justiça, estaria atuando na linha da defesa jurídica contra a paternidade.

Realmente, ocorreu abuso. Há ilicitude, pelo comportamento culposo [imprudência], no relatar algo irreal e que compromete a reputação dos envolvidos. Uma coisa é discutir a paternidade, enquanto se realiza o DNA; outra, bem diversa, é recusar a paternidade após a certeza conferida pelo exame. A família “El Hage” foi apresentada com perfil de recusa a assunção da paternidade, o que permitiu as brincadeiras de mau gosto sobre o sotaque dos libaneses. A falta de diligência do setor de produção do programa e do apresentador não se explica, sabido que o documento público provaria que o pai procurava reconhecer, oficialmente, a paternidade. Ocorreu, portanto, ofensa à dignidade dos envolvidos, com lesão de honra, reputação, credibilidade, privatividade e ao nome.

A responsabilidade da ré, na forma do art. 49, da Lei 5250/67, arts. 5º, V e X, da CF e 159, do CC, de 1916, é incontroversa. A r. sentença, muito bem fundamentada, somente não será integralmente prestigiada, porque, respeitada a convicção de seu ilustre prolator, apresenta dois pontos vulneráveis.

O primeiro diz respeito a exclusão da autora Amira, que atua como Promotora de Justiça no Estado de São Paulo. Embora não tenha o entrevistador centrado atenção nessa irmã do pai de Patrícia, o fato é que seu nome foi ventilado, de forma a sugerir associação dela com estratégias jurídicas de não reconhecimento de paternidade. Ora, não caberia fazer referência a uma irmã Promotora em assunto dessa ordem, notadamente quando a reportagem é equivocada, manifestamente imprudente. Tudo o que se referiu sobre a recusa da paternidade não procede, porque dias antes o pai da menina ajuizava ação de reconhecimento voluntário da paternidade.

Há o depoimento prestado pelo ilustre Juiz de Direito que atuava na Comarca em que Amira exercia suas funções institucionais [fl. 379], esclarecendo a perturbação que a reportagem trouxe para o cotidiano da Promotora de Justiça. Existe, pois, nexo causal entre a inverdade exposta e a situação pessoal da irmã que não deveria ter seu nome e sua profissão mencionados.

O valor da indenização não foi corretamente mensurado. Como já informado no intróito do voto, a especulação financeira foi o único objetivo que conduziu a equipe do apresentador “Ratinho” a explorar o fenômeno “paternidade recusada”. A transposição dessa vertente social para os cenários televisivos se deu graças ao resultado do exame DNA, que é infalível para prova da herança genética. O programa do “Ratinho” usou do exame DNA para despertar interesse da população sobre o assunto pessoal de envolvidos, o que estimulou a empresa de radiodifusão a oficializar a divulgação de fatos, com dramatização do tipo picante, permeando, em alguns casos, cenas de bate boca entre os envolvidos. O povo, como se estivesse sedento pelo inusitado, aguardava, ansioso, o resultado do DNA, sempre anunciado com uma aura de mistério.

Essas referências são lançadas para demonstrar que os autores sofreram danos morais em virtude de um programa imprudente e que foi ao ar com o objetivo de auferir lucros. Isso é importante para mensurar a questão da gravidade da culpa, que é padrão a ser observado no arbitramento das indenizações. Ora, se a empresa de televisão explora, com intenção, fatos íntimos, sem a diligência normal, para aumentar o índice do Ibope e melhorar sua carteira de anunciantes, é justo que a indenização leve em consideração esse motivo do ilícito, o que recomenda dimensionar, de forma significativa, a expressão financeira correspondente.

Os valores fixados são ínfimos diante dessa argumentação. O autor Ali Mustafá, que foi o mais atingido pela inverdade noticiada, recebeu R$ 6.500,00, o que é simbólico diante do valor de mercado do horário vendido pela TV Record em horário nobre, que são comercializados por “segundos” de minuto. Essa certeza atrai um outro ingrediente do justo arbitramento e que diz respeito à capacidade econômica do lesante, porquanto quantias módicas, para litigantes abastados, nada significam no sentido de tirar o propósito da ré de afrontar valores familiares e da moral das pessoas. Para dissuadir o ofensor recalcitrante somente impondo exemplares indenizações.

Por fim, tem-se que a repercussão do fato lesivo foi grandiosa, devido ao nível de audiência do programa do “Ratinho”. Os autores manejaram medida cautelar para que a TV não mais falasse sobre o assunto, o que demonstra o grau de nocividade que o episódio acarretou para o cotidiano dessas pessoas. Poder-se-á concluir que milhares de pessoas tomaram conhecimento de um ato falho que a família não cometeu, qual seja, o de negar a paternidade após o resultado do exame DNA, pelo que a indenização deve levar em conta essa situação. As quantias fixadas não compensam a dor sofrida em toda a sua extensão, pelo que é muito mais adequado fixar, para cada um dos autores, a quantia correspondente a 200 salários mínimos.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso da Rádio e Televisão Record e dá-se provimento ao recurso dos autores, para condenar a ré a pagar a todos os autores a indenização que se fixa, para cada um, em valor igual a 200 [duzentos] salários mínimos. Em conseqüência, fica a ré condenada nas custas e honorários, que são fixados em 20% do valor atualizado da condenação, na forma do art. 20, § 4º, do CPC, inclusive porque foram ajuizadas medidas cautelares vitoriosas. Os juros correm da citação, como observado.

ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

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