Verticalização partidária

Leia a íntegra do voto de Carlos Britto sobre a verticalização

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30 de março de 2006, 7h00

Em seu voto a favor da verticalização das coligações partidárias para as próximas eleições, o ministro Carlos Britto, do Supremo Tribunal Federal, coloca a importância do artigo 16 da Constituição [A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após a sua promulgação] para propiciar aos juízes melhores condições para desempenhar as suas atividades e, aos eleitores, melhor conhecimento de causa para poder votar.

Afirma em seu voto, “do ângulo do Poder Judiciário, esse princípio da anterioridade — que termina sendo a garantia de um devido processo legal eleitoral (…) — significa uma fuga do improviso no conhecimento e aplicação das regras balizadoras de litígios propriamente jurisdicionais, sabido que toda disputa eleitoral de compleição verdadeiramente geral se caracteriza pelo seu fortíssimo teor de contenciosidade”.

Em relação ao eleitor argumenta: “aí é de se presumir que ele precisa mesmo se movimentar no espaço de uma legislação processual mais duradoura, para poder votar com maior conhecimento de causa”.

O julgamento da ação contra a aplicação imediata da Emenda Constitucional 52 foi feito na última quarta-feira (22/3). Por nove votos a dois, os ministros decidiram que a emenda que pôs fim à verticalização só passa a produzir efeito a partir de março de 2007 — um ano depois da sua promulgação.

Leia a íntegra do voto

TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.685

V O T O

O SR. MINISTRO CARLOS BRITTO – Senhor Presidente, como visto, trata-se de um tema delicado. Uma pecinha de cristal. Vou enfrentá-lo, ainda que sinteticamente, na perspectiva de uma visão constitucional de conjunto.

2. Começo por dizer que o art. 16 da Constituição de 1988, em sua redação originária, tinha a seguinte legenda: “Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação.”

3. Sem nenhum vacilo de interpretação, percebe-se que o dispositivo condicionava ao transcurso de um ano completo o vigor das leis que viessem a modificar o processo eleitoral. Isto, naturalmente, para obrigar a descoincidência entre o ano de alteração das regras do jogo eleitoral e o ano de realização da eleição em si. Logo, e em última análise, o que veiculava o texto normativo era a proibição de uma lei vir a alterar as normas presidentes de uma eleição geral no próprio ano em que tal eleição devesse ocorrer.

4. As razões-de-ser da norma constitucional eram também de fácil apreensão. O que se pretendia era, de uma parte, estabilizar pelo período mínimo de um ano a legislação de índole processual-eleitoral. De outra parte, o que se buscava era prevenir o risco do açodamento e até mesmo do casuísmo legislativo.

5. Explico. Sendo a eleição para cargos eminentemente políticos um momento do processo eleitoral que tem tudo a ver com a concreção de excelsos valores constitucionais (soberania popular, pluralismo político, elegibilidade, Justiça Eleitoral, Federação e o princípio mesmo da separação dos Poderes), envolvendo, além do mais, protagonistas públicos e privados que a própria Constituição Federal se encarregou de nominar e prestigiar de modo exponencial (eleitores, candidatos, partidos políticos, magistrados), era preciso assegurar a estes protagonistas e àqueles valores um certo período de fixidez legislativa. Um espaço de tempo imune a alterações nos quadros normativos da pugna eleitoral, até porque a modificação de tais regras no próprio ano de implemento de uma eleição geral fica bem mais exposta a riscos – volta-se a dizer – de precipitação e casuísmo. Precipitação e casuísmo, no sentido de que, na efervescência emocional de um ano já destinado à realização de um pleito geral, as leis tendem a se orientar por critérios que passam ao largo de uma maturada reflexão. Critérios muito próximos daqueles chamados de ocasião. Que são critérios ad hoc, oportunísticos, porquanto ditados por um propósito bem mais de direcionar o resultado de uma determinada eleição do que mesmo racionalizar todo e qualquer embate eleitoral de caráter federativo. O que sói redundar em conspurcação dos postulados éticos, isonômicos e de segurança que a Constituição mesma exige como auréola de todo embate eleitoral de caráter político-geral.

6. É certo que essa redação originária não permaneceu intocada. Desde 15 de setembro de 1993 que o dispositivo mudou de roupagem vernacular, por efeito da publicação da Emenda Constitucional nº 4. Eis o novo texto normativo do mesmo artigo 16: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorrer até um ano da data de sua vigência”.

7. O texto já é outro, portanto, mas serviente do mesmo e dúplice objetivo: assegurar um mínimo de estabilidade legislativa em tema de processo eleitoral e assim prevenir açodamentos e casuísmos. Noutros termos, o primitivo artigo 16 não foi dessubstancializado; menos ainda revogado, pois teve reforçada a sua densidade normativa. Reforço de carga protetiva que é francamente admissível às Emendas Constitucionais que se disponham a regular matéria que já ostente o galardão de cláusula pétrea. Seja uma cláusula pétrea material explícita, seja uma cláusula pétrea


material implícita (que é o caso desse art. 16, a meu aviso).

8. Com efeito, o que fez a Emenda nº 4 foi, em essência, distinguir entre vigor e eficácia da lei. Quero dizer: a vigência da lei que alterar o processo eleitoral é a própria data da publicação dessa lei modificadora. Porém a respectiva eficácia não pode se dar para a eleição que ocorrer até um ano daquela vigência. Logo, vigência imediata, sem dúvida, mas eficácia protraída para o pleito que vier a se factualizar somente depois de passado um ano.

9. Trata-se, então, de uma forçada vacatio legis operacional. Um interregno eficacial do tipo exógeno, porque imposto pela Constituição à lei. De fora para dentro, e não de dentro para fora. Interregno compulsório, esse, a se traduzir na idéia central de que eleição é coisa séria demais pra ser legislativamente versada na undécima hora. A Constituição como que a dizer, metaforicamente: “devagar com o andor que o santo é de barro”. Daí que essa obrigatória vacância legal se caracterize como verdadeiro princípio de anualidade ou de anterioridade ânua, em matéria eleitoral.

10. Há mais o que dizer, porque esse mesmo compulsório interregno já já passa a se inscrever, tecnicamente, nos quadros de um devido processo legal eleitoral. Um devido processo legal eleitoral que vai balizar, dogmaticamente, a atuação dos citados protagonistas e a própria configuração dos princípios federativo e da separação dos Poderes.

11. Veja-se que, do ângulo do próprio legislador, o comando constitucional não é daqueles que se expressam nas ordinárias fórmulas do “conforme a lei”, “nos termos da lei”, “segundo dispuser a lei”, “a lei disporá” e assim avante. Não é isso. Aqui, no art. 16 da Constituição, o que se faz não é desembaraçar a função legislativa, mas, isto sim, impor-lhe constrição. Contingenciamento. Proibição, até, no mencionado plano da eficácia que não seja pós-anual. Logo, trata-se de uma outra tipologia de comando constitucional, de que fazem parte as emblemáticas regras de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”, “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu” (incisos XXXV, XXXVI e XL, respectivamente, do art. 5º da CF). Tipologia que, em centrado obséquio ao proto-princípio da segurança jurídica, relativiza a aptidão que tem o Congresso Nacional para “dispor sobre todas as matérias de competência da União” (art. 48, caput, da Magna Carta de 1988). Contribuindo, com isso, para a configuração do princípio da “separação dos Poderes”. Para traçar os contornos desse princípio que o inciso III do § 4º do art. 60 clausula como pétreo (donde a sua insusceptibilidade de conspurcação, menos ainda de revogação, ainda que que se faça uso de emenda constitucional).

12. Já do ângulo do Poder Judiciário, esse princípio da anterioridade – que termina sendo a garantia de um devido processo legal eleitoral – significa propiciar aos juízes, juntas e tribunais eleitorais melhores condições para o desempenho das respectivas atividades, inclusive as de caráter consultivo. Mais ainda, significa uma fuga do improviso no conhecimento e aplicação das regras balizadoras de litígios propriamente jurisdicionais, sabido que toda disputa eleitoral de compleição verdadeiramente geral se caracteriza pelo seu fortíssimo teor de contenciosidade. Pela sua potencialidade lesiva da “normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico” ou do “abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (§ 9º do art. 14). Logo, está-se diante de comando constitucional que protege a Magistratura contra, justamente, a legislação eleitoral de inopino. Assim entendida a que não respeita o encarecido princípio da anualidade.

13. Se nos transportarmos para os domínios de atuação dos partidos políticos, a que juízo técnico chegaremos? Ao juízo de que o princípio da anterioridade anua habilita as agremiações partidárias a costurar alianças de bem maior densidade doutrinária. A tecer coligações que façam o programático preponderar sobre o meramente pragmático. A autenticidade ideológica a suplantar a tentação do eleitorerismo, pois muito mais importante do que exigir fidelidade partidária aos respectivos filiados é cada partido ser fiel a si mesmo. E não se pode esquecer que partido político é a personalização jurídica de uma corrente de opinião pública. É a encarnação jurídico-institucional de uma doutrina eminentemente política, traduzida num particularizado modo de conceber e praticar o governo da pólis. É, enfim, o partido político, um centro subjetivado de correntes sociais que professam a mesma filosofia política, nos quadrantes desse “fundamento” da República a que se apôs o nome de “pluralismo político” (inciso V do art. 1º da CF)). Mas filosofia que diga respeito a toda a coletividade nacional, e não apenas a essa ou aquela circunscrição estadual ou municipal; resultando dessa necessária amplitude nacional de cada doutrina política o próprio caráter nacional dos partidos (inciso I do art. 17). E o fato é que a opção constitucional pela estabilidade ânua do processo eleitoral é bem mais serviente desse conjunto de valores em que os


grêmios partidários gravitam. É algo bem mais previsível – e portanto mais seguro e autêntico – para quem pretenda se filiar ou prosseguir partidariamente filiado. O mesmo acontecendo, claro, com todos aqueles que pretendam se candidatar ou se recandidatar a cargo eletivo1.

14. Quanto ao eleitor, eleitor-soberano, acresça-se (inciso I e parágrafo único do art. 1º, combinadamente com a cabeça do art. 14 da Constituição), aí é de se presumir que ele precisa mesmo se movimentar no espaço de uma legislação processual mais duradoura, para poder votar com maior conhecimento de causa. Maior conhecimento de causa dessa legislação mesma e, por conseqüência, das possíveis combinações partidárias como estratégia de luta eleitoral. Ninguém mais do que o eleitor comum assimila com dificuldade uma estonteante mudança nos quadros da legislação eleitoral e das coligações partidárias. Ninguém mais do que ele precisa da garantia de um devido processo legal eleitoral, pela fundamental consideração de que a investidura nos cargos de governo não se dá sem a pia batismal do voto popular. Um voto que será tanto mais constitucionalmente desejável quanto atencioso para com o vínculo orgânico entre o candidato e o seu partido. Mesmo sendo os partidos políticos pessoas jurídicas de direito privado, o certo é que o exercício da soberania popular quase sempre passa por eles, na medida em que por intermédio deles é que se remarca uma das vertentes da Democracia Indireta ou Representativa.

15. Enfim, esse devido processo legal eleitoral, particularizada dimensão da garantia genérica do “devido processo legal” de que trata o inciso LIV do art. 5º da Constituição, é matéria que também me parece clausulada como pétrea, a teor do inciso IV do § 4º do citado artigo 60 da Constituição-cidadã. E não se fale que tal proposição é inconciliável com a liberdade de que desfruta os partidos políticos para eventualmente se coligar a partir da concreta realidade de cada circunscrição eleitoral, porque tal coligação não é o centrado alvo do art. 16 da Magna Carta. O que se proíbe nesse estratégico dispositivo é coincidência entre o ano da mudança do processo eleitoral e o ano de qualquer das eleições brasileiras. Somente por fazer parte desse processo é que as alianças partidárias são atingidas. Mas atingida pro-temporamente, insista-se, em homenagem aos valores todos de que vimos cuidando2. E parece-me claro que essa proibição pro-tempore é, também ela, tracejadora dos contornos do princípio federativo. Configurativo desse princípio, na exata medida em que também o é a norma que se extrai do § 1º do artigo 27 da nossa Constituição, que manda aplicar as regras constitucionais sobre sistema eleitoral aos deputados estaduais.

16. Com esses fundamentos e mais os que foram aqui aportados pelos votos que me precederam, notadamente o da eminente Relatora, proponho “interpretação conforme” ao art. 2º da Emenda nº 52 para deixar claro que essa emenda não se aplica às eleições gerais do corrente ano de 2006.

17. É como voto.

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