Último a errar

Lei publicada pertence a práxis judiciária, e não ao legislador

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30 de março de 2006, 7h00

“O Sr. Ministro Paulo Brossard: (…) Vamos admitir que se argua contra uma autoridade – no caso o Presidente da República – a prática de crimes de responsabilidade, do primeiro ao último artigo da lei, uma pessoa isenta, que fosse examinar a argüição, chegaria à conclusão de que nenhum deles fora cometido; mas, se a maioria de 2/3 da Câmara resolver que o processo seja instaurado e para esse fim autorizar a sua formação, ele chegará ao Senado. Da mesma forma, o inverso. Suposto que um Presidente tenha cometido todos os abusos possíveis, que seja uma ilustração viva da lei de responsabilidade, no que tange aos chamados crimes de responsabilidade, e uma maioria entender de negar a evidência e dizer que tais crimes não foram cometidos, não há autoridade na face da Terra que possa reformar a decisão parlamentar, nem este Tribunal como guarda da Constituição poderá fazê-lo!O Sr. Ministro Moreira Alves: Isso V. Exa. que afirma. E se condenar à morte?” (MS 20941/STF)

Tudo pode uma CPI, em nome da autonomia política do Congresso? O tema, embora vivificado pelas circunstâncias, não é novo: há uma grita no Legislativo sobre a suposta e indevida interferência do Judiciário em questões eminentemente políticas. Tanto senadores quanto deputados argumentam que não deveriam os ministros colocar a colher nos procedimentos investigativos das Comissões Parlamentares de Inquérito. De outro lado, frente à frustração das oitivas, a opinião pública pressiona ainda mais o Judiciário, julgando os juizes.

Com as concessões de liminares em ordens de Habeas Corpus para que as testemunhas ou indiciados sejam exonerados de contribuir com provas contra si mesmo, mantendo o direito de ficarem calados, cresce a revolta dos parlamentares investigadores que não estão habituados aos estratagemas jurídicos. Sentem-se deputados e senadores tolhidos em suas atribuições, castrados da prerrogativa de inquirir mais contundentemente. Da mesma forma se dá com a anulação judiciária de procedimentos legislativos considerados como viciados.

Pois bem, inserto na Carta Política de 88 está o controle jurisdicional dos atos jurídico-administrativos do Legislativo. Embora os poderes sejam autônomos, há uma interdependência lógica que mantém o próprio sistema jurídico-político. Assim como as indicações para os cargos de ministros sofrem o placet legislativo e os crimes de responsabilidade passam pela instrução congressual, evidentemente há de se admitir o caminho inverso. Isso porque é certo o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário.

Nenhuma norma, nem decreto, nem ato administrativo poderá refugiar-se do controle judiciário que, em última hipótese, trás a tona escorreita dicção da lei. Não pode o Judiciário fazer ouvidos moucos aos reclamos das vítimas de constrangimentos ou ilegalidades por parte do Legislativo — é inarredável a missão do magistrado. Do seio legislativo emerge a legislação que, uma vez publicada, não mais pertence ao legislador passando a aninhar-se na práxis judiciária.

O que o Judiciário não poderá jamais imiscuir-se é no embate político, essencialmente considerado. Assim entende quotidianamente o Supremo Tribunal Federal pela imunidade parlamentar na expressão mais livre de opinião em Plenário ou em qualquer outro foro político. A arena política não pode suportar cabrestos — o único controle externo previsto é o voto. Contudo, quando o procedimento político gera repercussão na liberdade de um cidadão, há que se proteger direitos constitucionais de eventuais abusos. O Judiciário tem hierarquia justamente para isso — o STF poderá errar por último, na lição de Rui Barbosa.

Da mesma forma em que o STF tem garantido os direitos de livre expressão de opinião, com muito mais razão a excelsa corte abranda os excessos do Legislativo na condução de um inquérito. Aliás, com muito mais razão é o controle de atos investigativos que não são praxe na vida política. É basilar constatar-se que o intimado na condição de indiciado tem direito a advogado que atue com vigor e não sirva de mero coadjuvante.

Mais: como em qualquer foro investigativo ou mesmo judiciário, o acusado tem direito ao silêncio, sem por isso ser preso ou constrangido de nenhuma forma. Deve sempre falar por último e contrariar todas as provas produzidas, garantindo-lhe a resistência legítima a uma imputação lançada e, finalmente, acesso irrestrito aos autos (sejam ou não acobertados pelo sigilo) assiste ao interessado.

Não é afronta a um poder o controle jurisdicional sobre seus atos. O argumento agora incandescente já estava sepultado nas lições de costumeira cultura e fina ironia do já citado Rui Barbosa, festejado parlamentar: “Acaso V. Ex.as poderiam convir nessa infalibilidade que agora se arroga de poder qualquer desses ramos da administração pública, o Legislativo ou o Executivo, dizer quando erra e quando acerta o Supremo Tribunal Federal? O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade”.

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