Adeus à Corte

Ministro Nelson Jobim se despede do Supremo Tribunal Federal

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29 de março de 2006, 21h23

“O tapete azul do Senado não é o tapete vermelho do Supremo.” Essa foi uma das frases usadas pelo presidente do STF, ministro Nelson Jobim, ao se defender, na sua despedida da Corte nesta quarta-feira (29/3), das recentes críticas de que o Supremo Tribunal Federal teria invadido as competências do Legislativo ao regulamentar a atuação das CPIs.

Na sua despedida, Jobim frisou que o Legislativo e o Judiciário não se confundem e que o STF só se manifesta sobre questões do Legislativo quando é provocado, como aconteceu com as Comissões Parlamentares de Inquérito. Jobim deixa o tribunal até o final desta semana.

Em seu discurso, Jobim disse que “se algum dos senhores vai ao Supremo tentando prosseguir o debate político derrotado, terá de se submeter a um juízo diverso que o juízo político da conveniência e do momento e se submeter ao juízo da legalidade e da constitucionalidade. Essa é a tensão existente. Não peçam, porque trairão a memória republicana, que o Supremo tenha outro paradigma que não a Constituição”.

Jobim também falou da necessidade de uma regulamentação das CPIs, para que as disputas legislativas não sejam prolongadas no Judiciário.

Veja a íntegra do discurso

Exmº Sr. Senador Renan Calheiros, Presidente do Senado e do Congresso Nacional; Exmº Sr. Aldo Rebelo, Presidente da Câmara dos Deputados; eminente Ministra Ellen Gracie; Ministro Vantuil Abdala; eminente Ministro Walton Rodrigues, representante do TCU; caro Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. Roberto Busato, creio que esta homenagem, meus caros colegas, membros do Supremo Tribunal Federal, meus caros Senadores, minhas senhoras, meus senhores, não é uma homenagem à pessoa individual e, sim, ao Tribunal.

Mostra, isso sim, o reconhecimento do Senado Federal ao Tribunal Maior do País, a Corte constitucional brasileira.

Creio, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srªs e Srs. Deputados, que as palavras que aqui ouvimos eu as recebo com humildade.

Humildade daquele que tentou acertar, que cometeu erros. Mas só comete erros quem faz; quem não faz, não comete erros: critica. O que precisamos ter presente, meu caro Presidente, é que, no exercício da Presidência do Supremo Tribunal e tendo em vista a minha experiência parlamentar, fiz o diálogo constante com esta Casa. Saí do Supremo para vir a esta Casa exatamente debater, democraticamente, com as Srªs e os Srs. Senadores a forma pela qual poderíamos construir e iniciar um processo efetivo de reforma do Judiciário brasileiro. É evidente que a muitos não interessava esse processo porque iria atingir certas situações do passado, mas a circunstância mostra que, historicamente, estávamos certos.

O processo iniciou – meramente iniciou. O eminente Senador Edison Lobão, Presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, juntamente com o Senador José Jorge, Relator, foram extraordinários na compreensão daquilo que é vital no processo legislativo: ninguém é relator de si mesmo. E toda vez que alguém pretende, no processo legislativo, produzir resultados através das suas intuições e dos seus desejos acaba se dando mal, porque o processo legislativo é a união, o conjunto de derrotas individuais, na construção de uma vitória coletiva. É essa experiência que me levou e trouxe da Câmara dos Deputados.

Lembro-me, e aqui faço uma referência especial ao início desta caminhada toda, a qual debito exclusivamente ao Senador Pedro Simon, de que foi o Pedro que, naquela forma que todos conhecem de circular, de falar, de que foi o Pedro que resolveu me empurrar para a vida pública, em 1986.

Estava lá também o então Deputado César Schirmer*, que havia sido meu aluno na Faculdade de Direito de Santa Maria e que também ajudou no sentido de que eu pudesse ingressar.

Portanto, aquele desafio, aquela ousadia de Simon acabou produzindo a minha possibilidade de entrar na vida pública e circular. Circular para aprender. Aprender fundamentalmente com Ulysses Guimarães, no sentido de mostrar que a construção do País é sempre uma visão de futuro e não uma retaliação com o passado, sempre na perspectiva de que a política se constrói no debate e de que a política é exatamente a administração do dissenso e não a construção exclusiva do consenso. É o respeito no dissenso a regra do processo democrático. É exatamente pelo dissenso que nós construímos o futuro, e não é pelo mero acordo ou pelo consenso que se produza na racionalidade exclusiva da Academia, mas pelo dissenso que se produza exatamente nas tensões claras e nítidas dos cantores do País que aqui se representam.

É por isso, meu caro Senador e Presidente José Sarney, que creio que nós precisamos meditar muito nitidamente e lembrar que, em muitos casos, diversos casos, principalmente a partir de 1988, a incompreensão, a distensão, o tensionamento político acaba não se encerrando dentro das Casas políticas, porque, às vezes e muitas vezes, alguns políticos tentam levar e prosseguir o seu debate de derrotados dentro das Casas judiciais. Se o Supremo veio a tomar decisões em relação a esta Casa política, foi exatamente porque algum político lá foi chamar o Supremo para assim fazê-lo.


Não agimos de ofício, Sr. Presidente. Agimos provocados, e, quando provocados, temos de resolver, temos de enfrentar o problema.É exatamente aí que temos de pensar, meditar claramente naquilo que o Presidente Sarney referiu. Precisa a classe política, o Congresso Nacional, lembrar que o local da solução dos seus conflitos é exatamente a casa política. E aqui vem um problema grave, porque, se o paradigma da solução do conflito político é o entendimento, a conveniência, o paradigma da solução dos conflitos judiciários é a legalidade. Se a solução da legalidade não convém a certas situações políticas, não se cobre isso do Supremo, porque o nosso compromisso é com a Constituição e com a legalidade. Se algum dos senhores vai ao Supremo tentando prosseguir o debate político derrotado, terá de se submeter a um juízo diverso que o juízo político da conveniência e do momento e se submeter ao juízo da legalidade e da constitucionalidade. Essa é a tensão existente.

Não peçam, não peçam porque trairão a memória republicana, que o Supremo tenha outro paradigma que não a Constituição. Os republicanos resolveram isso em 1891; instituíram esse tribunal para esse fim e é exatamente este o critério que temos, que é o critério que dá garantia a todos, porque aqueles que podem ser vitoriosos no momento podem ser derrotados no futuro. As regras da Constitucionalidade, as regras da legalidade, são exatamente a construção e o compromisso do Tribunal.

Meu caro Pedro Simon, quando V. Exª referiu as questões relativas a Comissões Parlamentares de Inquérito e as decisões do Tribunal, suspendendo algumas, negando outras, está exatamente a linha do conflito entre a conveniência política e a legalidade.

Imagine só, Pedro, imagine só V. Exª sendo convocado para depor perante o Juiz de Direito da Comarca de Santa Maria em processo relativo a terceiros que não têm nada a ver com o objeto da denúncia! É a denúncia que constrói o limite, são os desenhos do conflito que estabelecem as pertinências e as compatibilidades. É por isso, Pedro, e é por isso, Pedro, que o Ministro Cézar Peluso*, ao determinar a suspensão ou a não-audiência daquele cidadão, fez uma mera comparação entre o fato que conhecia e que dizia que conhecia, porque público já era, considerando as matérias do jornal, e o objeto de uma ação parlamentar. Não havendo compatibilidade entre isso, sair disso é ir além daquilo que se estabeleceu como sendo objeto.

Lembro que foi exatamente, Simon, este Tribunal que assegurou instalação de CPI que V. Exª pretendia instalar. E foi V. Exª que foi ao Tribunal junto com outros parlamentares pretender a instalação da CPI. E o que fez o Supremo? O Supremo não examinou conveniências políticas de instalação de CPIs. O Supremo não examinou a conveniência favorável a esta ou aquela posição política. O Supremo somente decidiu da necessidade de prosseguir-se num direito constitucional de instalação.

É esta a regra, é este o tipo de entendimento. E o problema grave que foi referido na Tribuna é que nós precisamos – e os senhores precisam – exatamente disciplinar as regras das CPIs, estabelecendo uma legislação que defina o que não pode e o que pode fazer e os limites do “poder fazer”. Por quê? Porque está o Supremo, desde a CPI do Governo Collor, a construir aquilo que pertence a uma doutrina da CPI. Estamos construindo no caso concreto, que é o único lugar onde podemos construir.

Portanto, é dever dos senhores, enquanto a CPI que se transformou a partir do Governo Collor não mais em um instrumento de mera perquirição de situações objetivas para instruir a legislação constitucional e a elaboração de leis, mas se transformou em um instrumento também de exame e de investigação, definir – é o momento – de este debate iniciar. É o momento de este debate iniciar e compreender que não há conflito entre os Poderes; há, isso sim, o exame de determinadas condutas vis-à-vis à Constituição, condutas que podem ser do cidadão, que podem ser de Casas Legislativas, que podem ser da sociedade.

Sr. Presidente do Senado Federal e Sr. Presidente da Câmara dos Deputados, é fundamental que os senhores possam construir regramentos não em cima do caso concreto, porque nós sabemos, perfeitamente, que, ao se criarem regramentos em cima do conflito concreto, as decisões são tomadas da perspectiva daquilo que se quer no caso concreto. Precisamos afastar os casos concretos e iniciar um debate nacional para saber até onde podemos ir e até onde não devemos ir.

Fiquem sabendo, claramente, que o Supremo, na Presidência de Ellen Gracie, saberá exatamente contribuir para esse debate, porque longe já se foi o tempo em que a Magistratura nacional não queria circular por dentro desta Casa; longe está o momento do distanciamento absoluto do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores de Brasília, como também na Magistratura nacional, de circular por dentro das Casas Legislativas. Nós sabemos que se circulava aqui exclusivamente para se conseguir mudança nos orçamentos dos Tribunais, exclusivamente isso. Não se circulava aqui para o debate da funcionalidade do sistema judiciário.


Tive oportunidade de vir aqui diuturnamente incomodar Senadores e Deputados por telefone, com documentos, com debates, com reuniões, como se referiu o Senador Agripino, porque este é o local para a construção de regras. E as regras se constroem dentro das relações de humildade e de transparência, mas fundamentalmente de compromissos com o futuro.

Não quero me alongar, Sr. Presidente. Faço um apelo aos Srs. Senadores, aos Srs. Deputados, aos homens políticos deste País: lembrem-se de que aqueles que não têm condição de esgotar e superar as suas dissidências e as suas dificuldades e que apelam para terceiros não merecem consideração; merecem, isto sim, lembrar que estão renunciando àquilo que a República lhes impôs: solucionar problemas dentro das Casas legislativas, sem a necessidade absoluta de intervenções de outras Casas que têm outros paradigmas do processo decisório que não o paradigma político da conveniência e da construção do futuro.

Faço esse apelo porque lembro-me de que – Pertence examinava isso muito atentamente –, quando, por exemplo, nas ações diretas de inconstitucionalidade, aqueles que perderam a ação e perderam o debate político promovem as ações diretas, mas não promovem ações políticas porque querem resultado, mas querem o prosseguimento do debate político.

O tapete azul do Senado não é o tapete vermelho do Supremo. Eles não se confundem. Portanto, aquilo que é da competência exclusiva desta Casa e desta cor, que a mim não é simpática porque sou do Rio Grande. É-me simpática a outra cor. Esta é a cor para o Madeira e outros. Estou falando do Grêmio e do Internacional. Não obstante isso, no Tribunal, sempre haverá a construção de tudo isso.

Meu caro Presidente, agradeço a outorga desta grã-cruz. Peço licença a todos para parafrasear Ulysses. Estou saindo do Supremo, mas, como disse o velho Ulysses, não vou morrer de pijama. Ah, não vou! Mesmo porque, se eu resolvesse fazer isso, a Adriane me corria de casa porque eu ia incomodar muito.

O fato verdadeiro é que sempre me expus. Cobrem-me erros, mas não me cobrem omissões. Não há reticências. Há, isto sim, exposições. Temperamento? Talvez. Mas há um ponto também que eu deixaria claro: se me expus, sempre aceitei com absoluta tranqüilidade e, às vezes, com humor. É fundamental, na construção da vida pública, o humor, de forma tal que possa receber as críticas, compreendendo o objeto das críticas e, inclusive, as acusações mais agudas para que não percamos tempo com o passado que quer se enquistar e possamos construir este País.

Presidente Sarney, agradeço a sua amizade, o seu reconhecimento e a possibilidade de tê-lo como amigo. A construção das personalidades se dá exatamente pelos desafios que enfrentam. Sabemos quem somos sendo no mundo, e não fazendo afirmações sobre o que poderíamos fazer. A História vai lembrar de nós pelo que fizemos, repito. Com relação ao que nós fizemos e deixamos de fazer a História nem pensará; ela vai nos julgar pelo que fizemos e também, eventualmente, pela covardia que tivemos.

A conciliação fundamental nessa atividade são duas: de um lado, a coragem, de outro, a cautela na construção da segurança que possa dar-lhes a coragem.

É bom ter presente o velho ensinamento do Dr. Ulysses de que, em política, até a guerra é combinada, até a raiva é ajustada e definidos os seus espaços. Aliás, caro Senador Antonio Carlos, exatamente como aquilo que fazíamos com o Luisinho. Com Luís Eduardo Magalhães era exatamente assim: telefonávamos e acertávamos o cenário do Plenário. Dizia Luiz: “Pode ir tranqüilo. Não vamos criar problema; ou, Jobim, esse assunto vai ser ferro e ferro baiano, a la Antonio Carlos”. E era ferro mesmo, mas sabíamos o que estávamos fazendo, o desempenho do papel que tínhamos.

Não havia ódios. Não havia, absolutamente, ódios, porque a atividade política não é um local de ódios. O ódio não constrói. O que constrói é exatamente a exposição no momento para superar os equívocos do passado.

Agradeço penhoradamente, caros Presidentes do Senado e da Câmara. Agradeço a todos os oradores que aqui falaram e também à minha classe de advogados. Peço licença para referir os advogado na figura do eminente Dr. Célio Silva, um histórico advogado de Brasília que sabe realmente como circular na sua atividade profissional.

Meu caro Ministro Rafael Mayer, com quem recebíamos eu, como amanuense, à época da Constituinte, recados de Ulysses: “Olha, o Rafael mandou este bilhete. Toma conta” . Era exatamente o Presidente de então, o Ministro amigo de então, que exatamente contribuía para a elaboração dos trabalhos.

Nada é individual; tudo é coletivo, como coletivo é o nosso tribunal. O nosso Tribunal é de uma riqueza imensa, liderados hoje pelo eminente decano, o Ministro Sepúlveda Pertence, que tem a qualidade de se expor com a sabedoria mineira de ocultar. Sabará é exatamente a linha de construção do nosso Sepúlveda Pertence, extraordinariamente competente, e é o símbolo, hoje, do nosso Tribunal. É o símbolo do nosso Tribunal que se renova. E tudo mundo fica inquieto pela renovação. Mas a renovação é a história.

Eu disse na posse do eminente Ministro Levandowski*: lá está o Brasil. Temos negros ou afrodescendentes, italianos, “pêlos duros”, como Gilmar – “pêlo duro” é uma expressão para o brasileiro, no Rio Grande –; polacos, como Levandowski; poetas, como Britto*; eruditos extensos, como Celso; aguerridos contrários, como Marco Aurélio. Enfim, temos o País. E a renovação de um tribunal nada mais é do que a demonstração de que os indivíduos não valem, mas que valem exatamente as composições e as construções que o futuro nos dá.

Muito obrigado. Peço escusa a todos, mas agradeço fundamentalmente ao Senador Pedro Simon, que viabilizou que aqui eu chegasse e daqui saísse. Muito obrigado, Pedro. Muito obrigado a todos.

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