Entrevista: Marco Antônio Zanellatto
26 de março de 2006, 7h00
Especialista em Direito do Consumidor, o procurador de Justiça Marco Antônio Zanellatto aponta o que considera a principal virtude do Código: “ele introduziu uma nova forma de julgar, semelhante a common law, onde o Direito não é legislado, mas baseado nos precedentes, na jurisprudência que o juiz cria no caso concreto”.
Nesta entrevista à Consultor Jurídico, o procurador afirma que caso o Supremo considere que nas relações bancárias só incide o Código de Defesa do Consumidor na prestação de serviços – enquanto as operações financeiras são regidas pelo Banco Central – o consumidor será o grande derrotado. “Os bancos nunca resistiram à aplicação do CDC aos serviços propriamente ditos.”
Atualmente integrando o Conselho Superior do Ministério Público, Zanellatto trabalhou por 13 anos na Promotoria de Justiça do Consumidor do Ministério Público de São Paulo e fala com propriedade do assunto. Coube a ele mover as primeiras ações civis públicas contra cláusulas consideradas abusivas dos contratos de bancos ou de compra e venda de imóveis. Tanto gostou do assunto que defende no dia 28 de março sua tese de doutorado com o tema As Condições Gerais dos Contratos: cláusulas abusivas e proteção do consumidor.
Marco Antônio Zanellatto ingressou no Ministério Público em 1982, onde foi coordenador do Centro de Apoio das Promotorias do Consumidor, depois de ter atuado como tenente da Rota, cargo do qual fala com orgulho. “A Rota é vista por muitos como um órgão violento, só que hoje a atuação policial é insuficiente para combater a criminalidade”, diz. Participaram da entrevista os jornalistas Fernando Porfírio e Rodrigo Haidar.
Leia a entrevista
ConJur — O que mudou na relação de consumo nesses 15 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor?
Marco Antônio Zanellatto — Nos últimos 15 anos, o Código contribuiu para uma mudança significativa. Antes, a relação era regida pelo Código Civil, que disciplinava as questões da época. Pelo Código Civil, dificilmente um juiz interferia no conteúdo de um contrato para mudar uma cláusula. Com o CDC, esse panorama no campo contratual mudou radicalmente, porque trouxe regras que estabelecem o controle de inclusão e do conteúdo das cláusulas nos contratos de adesão. O próprio Código classifica o que é abusivo.
ConJur — O senhor poderia citar exemplos?
Marco Antônio Zanellatto — Existe a cláusula penal compensatória prevista, por exemplo, nos contratos de compra e venda de imóveis. Ela compensa o credor em caso de inadimplência do devedor ou desistência do negócio. Antes do Código de Defesa do Consumidor, era comum esse tipo de cláusula nos contratos estabelecer a perda total das prestações pagas até ali. E todas as vezes que isso era questionado na Justiça a ação tinha como base o Código Civil. O juiz raramente reduzia o valor da cláusula penal, ou era orientado por uma norma expressa que a mantinha, sempre com o argumento de que a “cláusula é objeto de um contrato e tem de ser cumprida e respeitada”. O Código de Defesa do Consumidor mudou completamente esse conceito quando estabeleceu que são abusivas quaisquer cláusulas que se tornem excessivamente onerosas para o consumidor. E a grande virtude do Código é essa: ele introduziu uma nova forma de julgar, semelhante a common law, onde o Direito não é legislado, mas baseado nos precedentes, na jurisprudência que o juiz cria no caso concreto.
ConJur — Então o CDC introduziu normas mais abertas?
Marco Antônio Zanellatto — Exatamente. Hoje temos as chamadas cláusulas gerais, normas com conteúdos indeterminados que vão ser preenchidos pelo juiz diante das circunstâncias do caso concreto. Por exemplo: o artigo 51, inciso IV, do CDC, diz que é abusiva a cláusula considerada iníqua, contrária à boa-fé, à equidade e que acarreta desvantagem exagerada para o consumidor. E volto ao exemplo dos contratos de compra e venda de imóveis. O artigo 53 diz que “nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado”. Para contornar essa proibição, as imobiliárias passaram a estabelecer não a perda total, mas a perda de 90%, 80%. Veio a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, afirmando que nesse caso se contraria, não o artigo 53, mais sim o 51 do CDC, porque a perda acarretaria desvantagem exagerada para o consumidor. Isso dá ao juiz uma margem muito grande de decidir. Para aplicar, de fato, Justiça.
ConJur — Tudo indica que o Supremo caminha para considerar que nas relações bancárias só incide o Código de Defesa do Consumidor na prestação de serviços, enquanto as operações financeiras são regidas pelo Banco Central. O que o senhor acha dessa saída?
Marco Antônio Zanellatto — Esse tipo divisão não deveria proceder. Na verdade, quando os bancos perceberam que o Código começou a ser aplicado para os serviços e para as operações financeiras, moveram essa Ação Direta de Inconstitucionalidade para reduzir a incidência do CDC. O objetivo é declarar inconstitucional o artigo 3º, parágrafo 2º. Só que a regra é clara e não há como fugir.
ConJur — Ainda assim, se o Supremo decidir nesse sentido, haveria uma vitória parcial para o consumidor?
Marco Antônio Zanellatto — Ao contrário, haveria sim uma grande derrota. Os bancos nunca resistiram à aplicação do CDC aos serviços propriamente ditos, mas afirmam que a lei não alcançaria as operações de crédito. A Febraban [Federação Brasileira dos Bancos] sempre sustentou isso. É uma tese antiga.
ConJur — Como é que os bancos se adaptaram às regras do Código de Defesa do Consumidor?
Marco Antônio Zanellatto — Apesar de ainda existirem, as práticas abusivas diminuíram bastante. Antes do CDC, alguns contratos tinham cláusulas conhecidas como “de mandato”. Nesse caso, o devedor (ou consumidor) dava uma procuração para o credor. Com o documento, o banco poderia sacar uma nota promissória em nome do consumidor. Veja que absurdo! Não se dá uma procuração para alguém atuar contra você, contra os seus interesses. Hoje, essa cláusula não existe mais. Os bancos também melhoraram no aspecto formal do contrato, além de terem deixado mais clara e objetiva as informações sobre serviços.
ConJur — A ConJur fez uma entrevista com o diretor jurídico da Febraban, Johan Albino Ribeiro. Ele afirmou que a facilidade do acesso à Justiça fez com que o consumidor prefira recorrer ao Judiciário ao invés de negociar para resolver seu problema na esfera administrativa. O que o senhor acha disso?
Marco Antônio Zanellatto — Com o devido respeito, isso não procede. O consumidor só recorre à Justiça depois de esgotar todos os meios. Quando o cliente quer negociar uma dívida, o banco exige que ele se torne inadimplente, para só depois resolver a questão. Mesmo que o consumidor queira renegociar uma dívida ele não consegue porque as instituições bancárias aumentam os juros e o número de prestações. Se para ele já estava difícil antes, imagina com todas essas condições.
ConJur — A Justiça ainda é tímida para estabelecer indenizações para os consumidores vítimas de dano moral?
Marco Antônio Zanellatto — Para responder a essa questão nós temos de comparar o Brasil com os Estados Unidos. Lá, as indenizações são sempre desproporcionais. Já no Brasil, as indenizações são insuficientes. Hoje, há um temor dos tribunais, principalmente do STJ, de acontecer no Brasil o que aconteceu nos Estados Unidos. Só que esse temor é exagerado. As indenizações por dano moral fixadas em nosso país, na maioria dos casos, não cumprem a finalidade de dar uma satisfação para quem sofreu o dano. O valor tem de ser fixado em um montante que intimide a empresa e compense a vítima.
ConJur — Quem mais desrespeita o consumidor?
Marco Antônio Zanellatto — Temos setores tradicionais: as empresas de plano de saúde, os bancos, as imobiliárias.
ConJur — E no serviço público?
Marco Antônio Zanellatto — No serviço público, o grande questionamento é sobre a qualidade do serviço prestado depois das privatizações. Telefonia, por exemplo, é uma grande vilã.
ConJur — Mas também em números proporcionais? A telefonia não acaba aparecendo como grande vilã porque é o setor que tem maior número de clientes?
Marco Antônio Zanellatto — Essa é uma das justificativas, mas não é a única. Também há desrespeito.
ConJur — E o serviço público não privatizado, como o INSS, por exemplo?
Marco Antônio Zanellatto — Neste caso não incide o CDC. Isso porque existem os serviços públicos prestados para toda a coletividade, sem contraprestação direta; e o serviço prestado de forma individualizada, no qual a empresa cobra pelo seu consumo, como água, energia elétrica, gás. O Código só se aplica para os serviços prestados de forma individualizada. Há inclusive jurisprudência sobre isso. Mas isso não significa que não pode ser tomada uma medida contra o órgão que presta um mau serviço. O Ministério Público pode mover ações coletivas, só que a jurisprudência tem sido favorável ao governo.
ConJur — O que o Ministério Público tem feito para punir as empresas que não respeitam o Código de Defesa do Consumidor?
Marco Antônio Zanellatto — Isso depende muito também da atuação dos órgãos de defesa do consumidor. No campo administrativo, a atuação do Estado ainda é muito tímida. Se fosse uma atuação mais forte, mais eficiente, muitos casos nem gerariam a necessidade de recorrer ao Judiciário. O Ministério Público atua muito no vácuo disso. O ideal são as sanções administrativas, porque elas são aplicadas rapidamente. Como isso ocorre pouco, as empresas, consumidores, entidades que representam consumidores, representam ao Ministério Público para tomar providências. O MP resolve muitos casos promovendo acordo entre as partes. Quando não há possibilidade, o órgão move ações coletivas e costuma colher bons resultados.
ConJur — Existe muito lobby das empresas sobre o sistema Judiciário?
Marco Antônio Zanellatto — Sim. O lobby impressiona o Poder Judiciário, que acaba decidindo contra o consumidor.
ConJur — E o Ministério Público, também não sente esse peso?
Marco Antônio Zanellatto — O Ministério Público, na verdade, é muito pouco suscetível a essa pressão. A instituição normalmente procura atuar para proteger o consumidor, pensando também nos interesses da empresa. Com os termos de ajustamento de conduta, procuramos conciliar a proteção do consumidor com o exercício da liberdade das atividades empresariais.
ConJur — A publicidade tem respeitado o Código de Defesa do Consumidor?
Marco Antônio Zanellatto — Hoje mais do que ontem, embora ainda existam muitas propagandas enganosas. No campo da responsabilidade civil, também houve uma melhora significativa. Se um produto é defeituoso e causa dano ao consumidor, o cliente pode mover ação contra a empresa sem necessidade de provar culpa. As empresas passaram a ter mais cuidado também na fabricação de produtos para evitar que eles entrem no mercado com defeitos. O CDC trouxe normas de reforço à Ação Civil Pública, que permite que o consumidor seja protegido no campo coletivo.
ConJur — O senhor considera que distribui mais Justiça agora, como procurador, ou antes, quando era tenente da Rota [Grupo ostensivo da Polícia paulista]?
Marco Antônio Zanellatto — São duas coisas diferentes. Mas quando eu era tenente na Rota, contribuía muito para o combate da criminalidade comum. Como procurador de Justiça, também tenho contribuído no combate à criminalidade, mas nesse caso dos chamados crimes contra as relações de consumo. Considero que como procurador de Justiça tenho sido muito mais útil do que no passado. A área que realmente motiva mais os promotores para trabalhar e que dá um retorno social mais visível é a dos interesses difusos e coletivos. Me orgulho de ter trabalhado na Rota e sempre atuei na legalidade. A Rota sempre foi vista por muitos como um órgão violento, só que hoje a atuação policial é insuficiente para combater a criminalidade.
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