Crime de espuma

Juiz absolve denunciado por furtar objeto de R$ 1,67

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25 de março de 2006, 7h00

Em 28 de outubro de 2002, Euclides de Araújo Valério entrou numa das lojas da rede de hipermercados Extra, em São Paulo. Escondeu sob a blusa um rolinho de espuma para pintura e saiu. “Três anos e cinco meses e uma centena e meia de páginas depois, vem o furto de um rolinho de espuma, avaliado em R$ 1,67, a ser julgado.”

A frase é do juiz Marcelo Semer, da 15ª Vara Criminal de São Paulo, na decisão em que absolveu Valério, denunciado pelo Ministério Público paulista por crime de furto previsto no artigo 155 do Código Penal e apenado com um a quatro anos de reclusão (leia abaixo a decisão). O Ministério Público ainda pode recorrer.

A discussão de três anos sobre a tentativa de furto do rolinho chegou a ser barrada pelo primeiro juiz que analisou a causa. Na ocasião, a denúncia do MP foi rejeitada. No entanto, a acusação ganhou forma de Ação Penal depois que o recurso do MP foi acolhido pelo hoje extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo.

Baseado no princípio da insignificância — segundo o qual não há crime quando não há potencial ofensivo — o juiz Semer criticou a denúncia: “Definir crime nestas circunstâncias, furto de valor irrisório, lesões ínfimas ou quase imperceptíveis aos bens jurídicos tutelados, no caso o patrimônio da vítima (que se autodenomina hipermercado), é exercitar a atuação repressiva sem lastro na preservação da dignidade humana, fim último do próprio direito penal”.

Para ele, “a despeito de corresponder formalmente a um delito patrimonial, a ação do acusado não atingiu de forma relevante a integridade do patrimônio da vítima”.

Furtar para comer

A Justiça brasileira vem aplicando cada vez mais o princípio da insignificância — ou da bagatela — para livrar de condenações e da cadeia acusados de pequenos furtos. Esta semana esteve em tela o caso da doméstica presa em novembro por furtar um pote de manteiga, avaliado em R$ 3,20. Angélica Aparecida de Souza Teodoro foi solta por determinação do ministro Paulo Gallotti, da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

Também nesta semana, a Justiça de Goiás absolveu o carregador Edmar Marques Ferreira, acusado pelo Ministério Público de tentar furtar 2,8 quilos de carne. A decisão foi tomada pelo juiz Marcelo Fleury Curado Dias, da 9ª Vara Criminal de Goiânia.

Ferreira foi preso em flagrante no dia 26 de junho de 1999, quando fazia a entrega da mercadoria na Casa de Carnes São Paulo. Na tentativa de furtar os 2,8 quilos de carne, camuflou o pedaço do produto junto ao corpo, mas foi descoberto.

A denúncia foi recebida pela Justiça em 2002. A Ação Penal já ia para a fase de inquirição de testemunhas quando o juiz solicitou o cálculo das custas do processo. Obteve a informação de que giraria em torno de R$ 300. Diante disso, resolveu absolver o acusado por entender que não valeria levar o processo em diante.

“Ora, não é coerente com a dinâmica do mundo atual, com a velocidade dos acontecimentos, que se gaste quase R$ 300 somente com os custos do processo e locomoções, sem contar o custo do inquérito policial e da perícia, para se apurar uma conduta que resultou na tentativa de subtração de menos de três quilos de carne.”

O juiz observou que o acusado era primário, com bons antecedentes e, no depoimento à Polícia, declarou que pretendia comer o pedaço de carne porque estava passando por dificuldades financeiras. “Está longe, portanto, de ser um bandido. É apenas um trabalhador que cometeu um deslize. Com certeza, os dias que passou preso, a demissão do emprego e o constrangimento do processo foram medidas mais que suficientes para lhe mostrar o erro.”

Crime e castigo

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça invariavelmente se debruçam sobre o tema e a jurisprudência de ambas as cortes aponta na direção de que não há crime quando o furto não causa danos ao patrimônio da vítima.

Em diversas ocasiões, a 6ª Turma do STJ mandou trancar Ação Penal ou libertar denunciados por pequenos furtos. Ano passado, por exemplo, a turma aplicou o princípio da bagatela para trancar ação contra um rapaz processado pelo furto de quatro frascos de desodorante em um supermercado. O preço somado dos produtos era de R$ 9,96. A mesma turma também concedeu Habeas Corpus para livrar da cadeia dois condenados pelo furto de seis frangos, avaliados em R$ 21.

Há quase dois anos, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar em Habeas Corpus para determinar a suspensão da condenação de oito meses de reclusão imposta a um rapaz que furtou uma fita de vídeo-game avaliada em R$ 25.

Celso de Mello começou a fundamentar sua decisão com uma pergunta: “Revela-se aplicável, ou não, o princípio da insignificância, quando se tratar de delito de furto que teve por objeto bem avaliado em apenas R$ 25?” Para, ao final, decidir que a condenação do rapaz é ausente de justa causa.


Na ocasião, o ministro ressaltou que o STF, quando se trata de crime que envolve tráfico de entorpecentes, “tem assinalado que a pequena quantidade de substância tóxica apreendida em poder do agente não afeta nem exclui o relevo jurídico-penal do comportamento transgressor do ordenamento jurídico, por entender inaplicável, em tais casos, o princípio da insignificância”.

Leia a decisão do juiz Marcelo Semer, de São Paulo

VISTOS.

EUCLIDES DE ARAÚJO VALÉRIO, qualificado nos autos, foi denunciado como incurso nas sanções do art. 155, caput, c.c. art. 14, inciso II, ambos do Código Penal, porque no dia 28 de outubro de 2002, por volta de 21h40, do interior do Hipermercado Extra, localizado na avenida Condessa Robiano, 5500, nesta Capital, teria tentado subtrair, para si, um rolinho de espuma para pintura, avaliado em R$ 1,67, não conseguindo consumar o delito, por circunstâncias alheias à sua vontade, flagrado durante a execução.

Segundo a denúncia, o acusado teria adentrado no estabelecimento e, no setor de materiais para construção se apossado de um rolo de pintura, colocando-o em sua cintura por debaixo da camiseta. Dirigiu-se à saída da referida loja, portando o produto, sem pagar, quando abordado por funcionários do estabelecimento.

Rejeitada a denúncia por falta de justa causa, foi ela recebida aos 06/11/03 em recurso em sentido estrito julgado pela 15ª Câmara do Tacrim. Ao réu foi concedida e depois revogada, pelo descumprimento, a suspensão condicional do processo. Ficando revel, foi apresentada defesa prévia por defensor público. Durante a instrução, ouviu-se apenas uma testemunha. Em alegações finais, o representante do Ministério Público requereu a procedência da ação penal, provadas materialidade e autoria do delito de furto, na forma privilegiada. A Defensoria Pública pleiteou a absolvição por atipicidade (princípio da insignificância).

É o relatório.

DECIDO.

A ação penal é improcedente.

Três anos e cinco meses e uma centena e meia de páginas depois, vem o furto de um rolinho de espuma, avaliado em R$ 1,67, a ser julgado.

É bem verdade que o MM. Juiz de Direito Marcelo Coutinho Gordo buscou interromper a persecução penal desde o início, alertando para a insignificância do bem subtraído, rejeitando a denúncia por falta de justa causa. Mas o Ministério Público guerreou pela continuação do feito. A d. promotora de Justiça Cláudia Moreira França Prataviera, subscritora da inicial, irresignada com a sua rejeição, interpôs recurso em sentido estrito, não porque o valor do bem não fosse ínfimo, o que admitiu, mas visando coibir a conduta espúria do acusado (fls. 43/5). A Colenda 15ª Câmara do extinto Tacrim, por votação unânime acolheu o recurso do MP, porque, no dizer do acórdão relatado pelo Juiz Fernando Matallo, o princípio da insignificância ou bagatela não foi recepcionado em nosso ordenamento jurídico.

Ouso discordar.

Nem chega a ser novidade a aplicação do princípio da insignificância no direito penal, tanto nos tribunais estaduais, como nos superiores (Nº E. STJ, cita-se por exemplo, os HCs 23904, 41638, 34895, 41115, em que a ação penal foi trancada pelo mesmo motivo).

O entendimento de que o princípio não foi recepcionado no ordenamento pátrio porque não explicitado, com todo o respeito por seus defensores, não merece prestígio.

Os princípios, por seu alto grau de abstração, não necessitam da explicitação legal que dele se exigiu no v. acórdão. Os princípios, como ensina Fábio Konder Comparato, estão no ápice da pirâmide normativa, são eles que não podem ser infringidos pelas leis, e não o reverso.

Imaginar ser possível suprimir a liberdade de qualquer indivíduo por algo que não lesione nem exponha a perigo o bem jurídico, é utilizar o direito penal para algo a que não foi concebido.

A dignidade humana, que é desprezada nas hipóteses como a dos presentes autos, é mais do que princípio constitucional — é fundamento da República (art. 1º, inciso III, da Carta Magna). Não é possível, como decorrência da prevalência da dignidade humana, que a liberdade do indivíduo possa ser sacrificada por insignificâncias como essas. Definir crime nestas circunstâncias, furto de valor irrisório, lesões ínfimas ou quase imperceptíveis aos bens jurídicos tutelados, no caso o patrimônio da vítima (que se autodenomina hipermercado), é exercitar a atuação repressiva sem lastro na preservação da dignidade humana, fim último do próprio direito penal.

Só o mais aferrado positivismo jurídico é que nos permitiria chegar a essa conclusão, como se fora o ordenamento a peça de uma engrenagem mecânica, não derivado das necessidades do homem e em seu sentido interpretado.

É verdade que as provas dos autos são frágeis contra o acusado, não confesso e não reconhecido pessoalmente –em juízo, sob o crivo do contraditório, ademais, apenas uma testemunha foi ouvida.


Mas o fundamento da absolvição dá-se, antes, pela atipicidade da conduta, pois não a sendo típica, não há como impingir-se punição, nem mesmo iniciar a persecução penal.

Trata-se aqui da inafastável aplicação do princípio da insignificância, segundo o qual a ação não é materialmente típica, ainda que formalmente corresponda à descrição legal, por falta de potencial ofensivo a atingir, de maneira minimamente significante, o bem jurídico protegido pela norma penal. Nem há que se discutir quanto à insignificância do valor, avaliado à época dos fatos em irrisórios R$ 1,67, máxime em se tratando de vítima de tão grande aporte financeiro.

Assim, o juízo de tipicidade, para que tenha efetiva significância, e não atinja fatos que devam ser estranhos ao Direito penal, por sua aceitação pela sociedade ou dano social irrelevante, deve entender o tipo em sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo (Carlos Vico Mañas, “O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no Direito penal”, Ed. Saraiva, SP, 1994, p. 53).

No caso em tela, a despeito de corresponder formalmente a um delito patrimonial, a ação do acusado não atingiu de forma relevante a integridade do patrimônio da vítima. Como excludente de tipicidade que é, o princípio da insignificância opera a descriminalização de condutas cujo potencial ofensivo não atinja o bem jurídico, objeto último da tutela pena.

Ademais, nem a existência atual de crimes de menor potencial ofensivo — e de outros como o furto que admitem formas de exclusão do processo — atinge o status jurídico que já adquiriu na ciência penal moderna o princípio da insignificância. A especificação legal descreve os tipos — de forma abstrata — que sejam de menor potencial ofensivo, não excluindo a possibilidade de que condutas concretas correspondentes a esses tipos — ou a outros, como no caso em comento — não tragam qualquer lesão apreciável ao bem jurídico em proteção.

Ao contrário, ao prever a criação de tipos de menor potencial ofensivo a Constituição da República incorpora o princípio da ofensividade, rejeitando o âmbito do Direito penal a condutas que não tenham nem sequer um mínimo de ofensividade. A atividade penal é de tal monta grave, causando em última instância a privação da liberdade, que não pode ser utilizada sem que exista um bem jurídico sendo lesionado.

Tem-se, pois, que a conduta em tese imputada ao acusado não é típica, pela excludente do princípio da insignificância.

Assim, de rigor é a prolação de decreto absolutório.

ISTO POSTO, julgo a ação penal IMPROCEDENTE para ABSOLVER EUCLIDES DE ARAÚJO VALÉRIO da imputação que lhe move a Justiça Pública, nos termos do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

P.R.I.C.

São Paulo, 20 de março de 2006

Marcelo Semer

Juiz de Direito

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