Calote crônico

Com projeto de precatórios, governo nunca pagará ninguém

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24 de março de 2006, 7h00

O ministro Nelson Jobim, presidente do Supremo Tribunal Federal, concluiu que as ordens emitidas pelo Poder Judiciário ao Poder Executivo (União, estados e municípios) para pagamento de suas dividas definitivas apuradas em longos processos nunca foram, não o são e nunca serão cumpridas regularmente.

Sua excelência entende que jamais o Poder Judiciário exercerá coerção para o Poder Executivo pagar regular e corretamente seus funcionários, respeitar contratos e direito de propriedade, evitar confiscos tributários inconstitucionais, etc.. O estoque de calote público é bilionário.

Qual a brilhante solução arquitetada no já chamado Projeto 007? Ele dá licença para matar direitos de terceiros? A idéia é colocar um limite ao pagamento das dívidas, calculado sobre algum item da receita ou despesa pública (os credores e advogados não conhecem detalhes ou textos, somente o que apareceu na mídia, pois sua excelência limitou e privilegiou a interlocução até hoje somente aos inadimplentes). É a teoria econômica do trás para a frente.

A mesma lógica incompetente, consistente com a adoração da mediocridade, está sendo aplicada na educação: ao invés de melhorar o ensino público, possibilitando que estudantes negros e pobres cheguem competitivamente ao vestibular, vamos estabelecer quotas nas universidades.

Mas voltando aos precatórios e fazendo uma analogia com uma pessoa física, teríamos o seguinte: suas dividas judiciais ficariam limitadas mês a mês somente a x% do seu salário! Você poderia, então, deixar de pagar ou atrasar seu aluguel, cartão de crédito, prestação da casa própria, etc., porque, não importando o volume de sua divida, nunca, jamais, você pagaria mais do que este x%! Maravilhoso, não? Uma empresa (dentro da mesma lógica do calote crônico), jamais pagaria mais do que y% de suas dividas judiciais, logo seus fornecedores, bancos, impostos, etc., seriam pagos mês a mês somente dentro daquele limite!

É fácil presumir que, aprovado no Congresso este texto misterioso, o poder público nunca mais pagará corretamente ninguém, tornando seu calote uma doença crônica, um refis permanente, sem data de validade.

Mas não é tudo: do x% sobre as receitas ou despesas públicas, apenas 30% seriam usados paga pagar integralmente credores, e sem respeito à ordem cronológica. O saldo de 70% seria utilizado em leilões reversos, onde o infeliz credor que oferecesse maior desconto, receberia, passando na frente da ordem cronológica.

Lembra as concordatas antigas, onde o comerciante de má fé conseguia o favor do moratório e ia (via terceiros) comprando os créditos pouco a pouco por um valor vil.

O 007 viola os direitos básicos da cidadania, coisa julgada, direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos e representará a certidão definitiva de óbito do Poder Judiciário, onde 80% dos processos hoje têm o poder público como autor ou réu.

O Poder Judiciário se tornará, então, uma linha auxiliar do Poder Executivo, rolando e procrastinando indefinidamente suas dívidas, num moto eterno digno de Sísifo.

O Poder Executivo investe no mito da “dívida é impagável”.Ora, já ouvimos isto durante décadas sobre a dívida externa, que acaba de ser liquidada e antecipadamente (FMI, títulos Bradies, etc.).

Se for para se vincular um número para pagamento de precatórios, sugiro um percentual dos juros pagos mensalmente aos bancos. Estes, aliás, poderiam muito bem ser obrigados a refinanciar por 30 anos este percentual, que seria entregue em cash ao credores (somente em janeiro de 2006, o Tesouro pagou R$ 17,9 bilhões em juros da dívida pública não judicial; em 12 meses foram 162,8 bilhões). É muito bom ser credor não judicial do poder público brasileiro.

Que tal investidores estrangeiros de longo prazo financiarem o poder público em longo prazo, sem tributação (como acaba de ser feito para títulos financeiros comuns), cujos recursos seriam “carimbados” para pagamento de precatórios?

Aliás, alguns analistas já dizem que a atual administração federal liquidou a dívida externa, para acalmar os estrangeiros, enquanto planeja uma “reestruturação” (moratória) da dívida interna, na qual, então os precatórios talvez tenham vez.

Muitos prefeitos dizem que precatórios interessam “somente aos advogados, que querem receber seus honorários”. Incrível mesmo estes profissionais, que vivem de seu trabalho, desejarem ser pagos, após tantos anos em juízo Esta argumentação de alcaides e alguns governadores lembra o batedor de carteira que, acossado pela multidão e pela Polícia, começa a gritar “ladrão, ladrão” para desviar a atenção de todos e fugir.

Mas existe solução possível para as dívidas judiciais públicas? Sim, o começo do fim é trazer os números para os balanços públicos, pois hoje (mesmo com a Lei de Responsabilidade Fiscal), vivem embaixo do tapete, nos armários decadentes de administrações de má fé. Precatórios têm a mesma dignidade contábil do caixa dois, mensalão, contratos fajutos de publicidade e outras patologias burocráticas. Audiências compulsórias de conciliação poderiam resolver inúmeras questões sobre números, atualização, juros, etc..

Seja como for, conhecendo-se os números, pode-se desenvolver até uma nova moratória para o estoque passado (de constitucionalidade duvidosa), com sanções rígidas, incluindo seqüestro de rendas, sanções civis, eleitorais e penais aos agentes públicos.

Compensação limitada com tributos correntes e integral com dívida ativa é outra alternativa bastante razoável e eficiente. Proibir a compensação de precatórios com impostos lembra a história do jogador crônico, que emitiu os cheques sem fundo para pagamento de dívidas. Posteriormente, em outro jogo, foi vencedor, e o derrotado quis pagá-lo com tais cheques sem fundo. O jogador, indignado, recusou, dizendo, que jamais aceitaria cheques de um devedor inadimplente.

Pode-se até pensar em compensação tributária com precatórios, mas comprometendo-se as empresas a destinar o valor de x% do valor compensando em novos investimentos que gerariam emprego, impostos e riqueza de alguns anos. Os bens públicos não essenciais devem sim se tornar passíveis de penhora, como acontece em todo o mundo.

O problema é difícil mas, como a dívida externa já mencionada, tem alternativas para solução. Os estados e municípios reclamam do torniquete financeiro que a União exerce sobre suas contas, exigindo até 17% de suas receitas para pagamento de dívidas com o governo central. Porque não destinar um ponto percentual ao pagamento de precatórios em atraso?

No caso das desapropriações ambientais, os ativos desapropriados poderiam ser securitizados, enviando-se a conta ao primeiro mundo, e os recursos levantados parcialmente utilizados para pagamento aos proprietários e o saldo para a efetiva preservação, coisa que o poder público tampouco faz.

Os credores e seus advogados estão preparados e dispostos para uma discussão serena, objetiva, prática, trazendo à mesa inclusive profissionais de crédito e reestruturação financeira.

Inaceitável é a condução do tema pelo ministro Nelson Jobim (e agora pelo senador Renan Calheiros, presidente do Senado) na calada da noite, somente com os devedores, insinuando mais uma violência legislativa, que certamente não terá acolhido no Supremo Tribunal Federal.

Stalin dizia que jamais haveria uma revolução popular na Alemanha, pois seria necessário pisar em jardins e gramados. Será que a cultura brasileira de “bom mocismo” e passividade impedirão mais uma vez uma reação à altura desta barbaridade? Entendo que não, e um trabalho decisivo é inadiável inclusive para o reerguimento moral e prático do Poder Judiciário.

Roberto Campos dizia que o Brasil sofre de diarréia legislativa crônica. Nada mais atual.

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