Quebra de sigilo

Leia voto que mobilizou o STF contra abusos de CPIs

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24 de março de 2006, 20h45

“A função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.”

O entendimento é do ministro Celso de Mello, em seu voto contra quebra de sigilos bancário, fiscal e telefônico da empresa Alexander Forbes Brasil Corretora de Seguros pela CPMI dos Correios. Os argumentos tocaram os demais ministros do Supremo Tribunal Federal, que votaram por unanimidade contra a quebra de sigilos e se uniram nas críticas contra os abusos perpetrados pelas Comissões.

Para Celso de Mello, não se pode admitir que empresas tenham seu sigilo bancário quebrado sem que haja forte fundamento para isso, já que a Constituição garante a proteção à intimidade. Por isso, a quebra de sigilos com fundamentos genéricos, sem indicar fatos concretos, deve ser considerada nula.

O ministro frisou que a decisão não se traduz em transgressão do princípio de separação de poderes por parte do Supremo, porque é papel da Corte garantir a integridade e a supremacia da Constituição.

“Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético-jurídicos que não podem nem devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam (como na espécie), processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitar os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal,” argumentou o ministro.

Celso de Mello ressalva que não está contra o poder investigatório das CPIs, mas que a investigação deve se dar dentro dos limites da lei. “O poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado Democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto”.

O voto — e as críticas — do ministro Celso de Mello contra as quebras de sigilo sem fundamento das CPIs foi corroborado de pronto por todos os ministros, que aproveitaram a ocasião também para reagir aos ataques de que a Corte é alvo quando impede atos das CPIs.

No caso, a empresa Alexander Forbes corretora entrou com pedido de Mandado de Segurança contra a quebra de sigilos solicitada pela CPMI dos Correios alegando que a empresa não exerce atividade vinculada com a Alexander Forbes Resseguros, que está sendo investigada. Também argumentou que não há fundamento para que haja a quebra de sigilos.

Leia a decisão e o voto

23/03/2006 TRIBUNAL PLENO

MANDADO DE SEGURANÇA 25.668-1 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S): ALEXANDER FORBES BRASIL CORRETORA DE SEGUROS LTDA

ADVOGADO(A/S): PAULO BEZERRA DE MENEZES REIFF E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S): MARCOS JOAQUIM GONÇALVES ALVES

IMPETRADO(A/S): PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO – CPMI DOS CORREIOS

E M E N T A: COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITOQUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO, FISCAL E TELEFÔNICO – AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE FATOS CONCRETOS – FUNDAMENTAÇÃO GENÉRICAINADMISSIBILIDADE – CONTROLE JURISDICIONAL – POSSIBILIDADE – CONSEQÜENTE INVALIDAÇÃO DO ATO DE “DISCLOSURE” – INOCORRÊNCIA, EM TAL HIPÓTESE, DE TRANSGRESSÃO AO POSTULADO DA SEPARAÇÃO DE PODERES – MANDADO DE SEGURANÇA DEFERIDO.


A QUEBRA DE SIGILO – QUE SE APÓIA EM FUNDAMENTOS GENÉRICOS E QUE NÃO INDICA FATOS CONCRETOS E PRECISOS REFERENTES À PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO – CONSTITUI ATO EIVADO DE NULIDADE.

– A quebra do sigilo inerente aos registros bancários, fiscais e telefônicos, por traduzir medida de caráter excepcional, revela-se incompatível com o ordenamento constitucional, quando fundada em deliberações emanadas de CPI cujo suporte decisório apóia-se em formulações genéricas, destituídas da necessária e específica indicação de causa provável, que se qualifica como pressuposto legitimador da ruptura, por parte do Estado, da esfera de intimidade a todos garantida pela Constituição da República. Precedentes. Doutrina.

O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.

– O Supremo Tribunal Federal, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, neutralizando, desse modo, abusos cometidos por Comissão Parlamentar de Inquérito, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.

O regular exercício da função jurisdicional, nesse contexto, porque vocacionado a fazer prevalecer a autoridade da Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes. Doutrina. Precedentes.

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Nelson Jobim, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em deferir o mandado de segurança, nos termos do voto do Relator. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Ausente, justificadamente, a Senhora Ministra Ellen Gracie.

Brasília, 23 de março de 2006.

CELSO DE MELLO – RELATOR

Leia a íntegra da decisão

23/03/2006 TRIBUNAL PLENO

MANDADO DE SEGURANÇA 25.668-1 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

IMPETRANTE(S): ALEXANDER FORBES BRASIL CORRETORA DE SEGUROS LTDA

ADVOGADO(A/S): PAULO BEZERRA DE MENEZES REIFF E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S): MARCOS JOAQUIM GONÇALVES ALVES

IMPETRADO(A/S): PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO – CPMI DOS CORREIOS

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): O eminente Procurador-Geral da República, Dr. ANTONIO FERNANDO BARROS E SILVA DE SOUZA, ao manifestar-se nestes autos, assim resumiu e apreciou a presente impetração (fls. 397/401):

MANDADO DE SEGURANÇA. SUPOSTA SUPRESSÃO DE DIREITOS DO IMPETRANTE POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO, FISCAL E TELEFÔNICO. ALEGADA NULIDADE DO ATO COATOR, POR AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. INEXISTÊNCIA, NA HIPÓTESE, DE ADEQUADO LASTRO PARA A DECISÃO. ENVOLVIMENTO DE EMPRESAS DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. INVESTIGAÇÃO NO IRB-BRASIL. ATIVIDADE DE RESSEGURO. NEGOCIAÇÕES POSTAS EM SUSPEITA POR SINDICÂNCIA INTERNA. ATUAÇÃO DE EMPRESA DO GRUPO QUE LIDA, COM EXCLUSIVIDADE, NO MERCADO DE RESSEGURO. QUEBRA DOS DADOS TAMBÉM DA ENTIDADE QUE SE DEDICA APENAS A SEGUROS, DE NATUREZA MAIS USUAL. NÃO SE INDICA NA DECISÃO EVIDÊNCIA DE ENVOLVIMENTO, ATÉ O INSTANTE, DA IMPETRANTE NA CONDUÇÃO DOS NEGÓCIOS DA EMPRESA DE RESSEGURO. CARÁTER EXCEPCIONAL DA ORDEM DE QUEBRA DE SIGILOS A EXIGIR UMA MÍNIMA FUNDAMENTAÇÃO.


PARECER PELA CONCESSÃO DA ORDEM.

1. Cuida-se de mandado de segurança impetrado por Alexander Forbes Brasil Corretora Ltda. em que é impugnado ato da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI dos Correios.

2. A impetrante abre suas alegações informando que a referida Comissão Parlamentar, reunida em sessão, aprovou requerimento que resultou na quebra de seus sigilos bancário, fiscal e telefônico. Contudo, a justificar o pedido de decretação da nulidade dessa decisão, alega que houve equívoco na condução dos trabalhos de investigação. Nesse sentido, e enfocando a vertente que apura denúncias de irregularidades no IRB–Brasil RE, a impetração anuncia que, apesar de compor o mesmo grupo econômico que detém o controle da empresa ALEXANDER FORBES RESSEGUROS, não guarda ela nenhuma relação direta com a operação de resseguros. Expõe que ‘…Alexander Forbes CORRETORA, conjuntamente com a Alexander Forbes RESSEGUROS, são subsidiárias da ALEXANDER FORBES GROUP e operam em segmentos de mercado absolutamente distintos no Brasil’ – fls. 4. Partindo dessa distinção, a impetrante argumenta que os esforços de investigação da CPMI estão mal direcionados – chega-se a mencionar possível equívoco dos parlamentares em face da similitude de nomenclaturas -, bastando para tanto considerar que suas atividades não teriam qualquer relação com as operações efetuadas pelo IRB – Brasil Resseguros S/A. A decisão se constituiria em ato de arbítrio, portanto, pois sem fundamento idôneo a justificar o afastamento dos sigilos dos dados da impetrante, de regra resguardados pela ordem constitucional.

3. Aportando ao Supremo Tribunal Federal, de pronto foi examinado o pedido de cautela. Restou deferido no despacho de fls. 213-218, considerando-se, naquele instante, que não estariam devidamente relacionados os fatos concretos e precisos que indicariam a necessidade da excepcional diligência.

4. Requisitadas informações à autoridade indicada coatora, estão juntadas às fls. 265-273.

5. Nesse estado chegam os autos à Procuradoria-Geral da República.

6. Não se pode obscurecer os contornos fáticos que tracejam a questão trazida nos autos. É objeto de investigação pelas autoridades públicas competentes o funcionamento do Instituto de Resseguros do Brasil – IRB Brasil Resseguros S/A. Sindicância interna, trazida inclusive por cópia pela impetrante – fls. 52-104 -, evidencia o favorecimento indevido de três corretoras de resseguros: Acordia/Assurê, Cooper Gay e Alexander Forbes.

7. Em termos singelos, a referida sindicância identifica procedimentos que escapam às práticas assentadas, em aparente benefício das citadas empresas, agraciadas com nomeações generosas em distribuições de riscos entre as corretoras integrantes do mercado de retrocessão. Dirigentes do IRB, ao arrepio das negociações passadas e aos anseios explicitados pelos segurados, fizeram uso do monopólio detido na atividade de resseguro para indicar, sem evidência de respaldo técnico e econômico necessário, certas corretoras para determinados negócios. Está dito no relatório da Comissão de Sindicância – fls. 75:

No caso da corretagem de resseguro (…) há um ingrediente que não pode ser menosprezado: é o IRB-Brasil RE que, com sua potestade de indicar o ‘broker’, determina qual (is) agente (s) irá (ão) participar de um determinado negócio.


Mesmo em tal Mercado, altamente dirigido, o surgimento de novos ‘broker’s’ com conquista de parcela significativa da totalidade dos negócios não seria de se estranhar se a indicação pelo IRB- -Brasil Re seguisse uma lógica razoável, baseada em critérios objetivos e legítimos.

0 que se viu, todavia, é que as indicações eram precedidas de despachos desprovidos de fundamentação, o que inculca que os atributos específicos das eleitas não eram, a princípio, levados em conta.’ (ênfases acrescidas.)

8. O relatório expressa o estranhamento de se terem prestigiado corretoras de pouco tempo no mercado, desde logo incumbidas das corretagens em pé de igualdade com outros agentes. Haveria indícios de orquestração de manobras para o favorecimento de algumas entidades, dentre elas ALEXANDER FORBES, que, especificamente, teria recebido indicação para corretagem de resseguros para Tam Linhas Aéreas – fls. 76-78 – e Usiminas – fls. 79.

9. As considerações traçadas no relatório são consistentes, e demandarão exame detido nas esferas apropriadas. Fato é que há envolvimento da empresa ALEXANDER FORBES em negociações realizada sob o comando do IRB sob investigação.

10. A distinção que nos traz a impetrante diz, contudo, sob uma nuança: há duas sociedades distintas, uma corretora de seguros, outra especializada no mercado de resseguro, ainda que ambas integrem grupo econômico. Essa ilação não pode ser tomada em termos simplistas. A autonomia societária de cada uma das entidades não representa imediato isolamento de comando. Nem evidencia a completa isenção de Alexander Forbes Corretora nos negócios de Alexander Forbes Resseguros.

11. Veja-se, nessa linha, os dados que nos são comunicados pelo Ministério da Fazenda, por sua Secretaria de Acompanhamento Econômico, quando se levou a exame naquela esfera o ato de concentração das empresas Alexander Forbes 10200 Ltda. e RE Participações e Consultoria Ltda., com o qual se instituiu a ‘joint venture’ que resultou na constituição de Alexander Forbes Resseguros do Brasil Ltda.

12. Merece destaque que Alexander Forbes 10200, sociedade constituída de acordo com as leis inglesas – fls. 37 -, é possivelmente a controladora de Alexander Forbes Resseguros (detém 50,1% de participação do capital social), como é também, comprovadamente, a sócia largamente preponderante na avaliação do capital social de Alexander Forbes Brasil Corretora de Seguros, possuindo 15.499.996 (quinze milhões, quatrocentos e noventa e nove mil, novecentos e noventa e seis) quotas, contra apenas 4 (quatro) dos outros três sócios – fls. 39.

13. Ou seja, o centro de comando das operações e decisões societárias do grupo no Brasil – a matriz é sediada na África do Sul – não deixa de ser o constituído por Alexander Forbes 10200.

14. Tudo isso é dito para demonstrar que não se pode afastar de pronto a corretora de toda e qualquer atuação da empresa de resseguro que compõe o grupo Alexander Forbes. As investigações levadas a cabo sobre o IRB podem desaguar numa análise mais apurada também da corretora do grupo, sem dúvida.


15. Mas tais observações não são fortes o suficiente para afastar as razões centrais deduzidas na peça inicial.

16. É fato incontestável a deficiência do requerimento de quebra de sigilo, faltando-lhe mínima fundamentação. Refere-se, de forma simplificada, a suposto envolvimento da Corretora Alexander Forbes do Brasil no caso de possível favorecimento de ‘brokers’ – fls. 115 -, em referência clara à investigação realizada sobre a condução do IRB. Do que se tem notícia, contudo, é do dito envolvimento da A. F. Resseguro. Não se aponta, de maneira concreta, qualquer passo ou conduta que pudesse ligar a corretora, ora impetrante, à condução da empresa de resseguro. Movimento inicial deveria ser endereçado à esta entidade, para, após as devidas avaliações do quadro instalado no caso em apreço, volver-se a investigação à corretora. Tenha-se viva a idéia de que os sigilos da entidade de resseguro foram também requeridos – fls. 118. Em síntese, o requerimento de quebra não indica mínimos elementos que pudessem envolver a impetrante nos negócios tomados pela Alexander Forbes Resseguro.

17. No mesmo sentido, veja-se que as informações são extremamente genéricas, sem tomar o cuidado de identificar uma possível situação que exigisse a quebra dos sigilos da impetrante. Poderiam ter desenhado um lastro fático como o acima ilustrado, dando conta do entroncamento das empresas envolvidas, mas, contudo, o que se tem é uma decisão singela, sem maiores expressões. A autoridade pública, portanto, deixou de fundamentar seu ato, em ofensa a direito da impetrante, que há de ser resguardada contra abuso no manejo de instrumento tão contundente.

18. Em desfecho, a concessão da ordem parece se impor, mas, diga-se, em face da deficiência da fundamentação do pronunciamento da CPMI, o que não representa, no outro vértice, a isenção plena da impetrante aos poderes de investigação, pois a conformação societária das empresas envolvidas (corretora e entidade de resseguro) enseja o controle de ambas por uma única sociedade, circunstância que as aproxima em demasia.

19. Ante exposto, o Ministério Público Federal opina pela concessão da ordem.” (grifei)

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – (Relator): Entendo assistir plena razão ao eminente Procurador-Geral da República, eis que a decisão do órgão parlamentar ora apontado como coator, que decretou a quebra de sigilo dos registros bancários, fiscais e telefônicos da impetrante, não se reveste da necessária fundamentação legitimadora dessa medida excepcional questionada na presente sede mandamental.

A empresa impetrante, ao postular a invalidação da deliberação em causa, alega que a CPMI dos Correios – ao assim procedertransgrediu o ordenamento positivo, lesando garantias de índole constitucional, notadamente aquela que tem por suporte a cláusula do “due process of law” (CF, art. 5º, LV).

Sustenta-se, ainda, na presente impetração, que o ato ora impugnado reveste-se de insuperáveis vícios que lhe infirmam a validade jurídico-constitucional, eis que – segundo alega a impetrante – a mencionada decisão da CPMI dos Correios (a) foi proferidaem face de terceiro que não possui nenhuma relação com o IRB”, (b) emanou de “Poder incompetente, porquanto tal competência é exclusiva do Judiciárioe (c) apresenta-se desprovidade fundamentação, em arrepio ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal” (fls. 26).


Tal como corretamente assinalou o eminente Procurador-Geral da República, em seu douto parecer, tem razão a ora impetrante no ponto em que sustenta, com inteira procedência, a nulidade do ato que lhe ordenou a quebra de sigilo. É que a deliberação estatal impugnada pela impetrante não se apóia em fundamentação suficiente e idônea, apta a legitimar a adoção, pela Comissão Parlamentar de Inquérito ora apontada como coatora, de medida que se mostra impregnada de caráter tão extraordinário, como o é a que resulta da quebra de sigilo bancário, fiscal e telefônico.

Essa circunstância que venho de referir, bastante por si mesma, revela-se suficiente para ensejar, por si só, independentemente do exame das demais alegações deduzidas pela ora impetrante, a invalidação do ato de quebra emanado da CPMI dos Correios.

Na realidade, Senhor Presidente, a análise do pleito mandamental em questão (fls. 02/27), de um lado, e o exame das razões que motivaram a decretação da quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico da impetrante (fls. 115), de outro, demonstram a evidente falta de fundamentação subjacente à efetivação, no caso, da medida excepcional da “disclosure”.

Reconheço, por isso mesmo, que o ato ora apontado como coator, ante a clara ausência de motivação de que se ressente, não se ajusta aos padrões mínimos fixados pela jurisprudência constitucional desta Suprema Corte.

Para se constatar esse déficit de fundamentação, suficiente para comprometer a própria validade do ato de quebra de sigilo, basta ler a justificação que a CPMI dos Correios adotou para viabilizar o acesso aos registros bancários, fiscais e telefônicos da empresa ora impetrante, assim a ela se referindo (fls. 115):

Por estar envolvida, direta ou indiretamente, no caso de possível favorecimento a ‘Brokers’, conforme Relatório Preliminar nº 1 CPMI dos Correios – Subrelatoria do IRB.” (grifei)

O exame dessa fundamentação – que é genérica e insuficiente – permite reconhecer, na deliberação que nela se apoiou, uma evidente transgressão ao mandamento constitucional que impõe, aos atos de “disclosure”, a necessária observância, por parte de qualquer órgão estatal (como uma CPI, p. ex.), do dever de motivar a adoção de medida tão extraordinária como a que ora se impugna nesta sede mandamental.

É preciso advertir que a quebra de sigilo não se pode converter em instrumento de devassa indiscriminada dos dados – bancários, fiscais e/ou telefônicos – postos sob a esfera de proteção da cláusula constitucional que resguarda a intimidade, inclusive aquela de caráter financeiro, que se mostra inerente às pessoas em geral.

Não se pode desconsiderar, no exame dessa questão, que a cláusula de sigilo que protege os registros bancários, fiscais e telefônicos reflete uma expressiva projeção da garantia fundamental da intimidade – da intimidade financeira das pessoas, em particular -, que não deve ser exposta, enquanto valor constitucional que é (VÂNIA SICILIANO AIETA, “A Garantia da Intimidade como Direito Fundamental”, p. 143/147, 1999, Lumen Juris), a intervenções estatais ou a intrusões do Poder Público, quando desvestidas de causa provável ou destituídas de base jurídica idônea.


Tenho por inquestionável, por isso mesmo, que a norma constitucional que outorgapoderes de investigação próprios das autoridades judiciais” a uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CF, art. 58, § 3º) traz, quanto a esta, o reconhecimento da necessidade de que os seus poderes somente devam ser exercidos de maneira compatível com a natureza do regime e com respeito (indeclinável) aos princípios consagrados na Constituição da República.

A deliberação parlamentar questionada nesta sede mandamental, contudo – ao aprovar o Requerimento nº 1219/2005 (fls. 115 e 283) -, apoiou-se em genérica formulação desvestida de qualquer fundamentação idônea, incidindo, por tal específica razão, na censura que esta Suprema Corte proclamou em situações assemelhadas, com apoio em precedentes firmados por seu E. Plenário, como resulta claro de julgamento consubstanciado em acórdão assim ementado:

COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITOQUEBRA DE SIGILOAUSÊNCIA DE INDICAÇÃO CONCRETA DE CAUSA PROVÁVEL – NULIDADE DA DELIBERAÇÃO PARLAMENTAR – MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO.

A QUEBRA DE SIGILO NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE DEVASSA INDISCRIMINADA, SOB PENA DE OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE.

A quebra de sigilo, para legitimar-se em face do sistema jurídico-constitucional brasileiro, necessita apoiar-se em decisão revestida de fundamentação adequada, que encontre apoio concreto em suporte fático idôneo, sob pena de invalidade do ato estatal que a decreta.

A ruptura da esfera de intimidade de qualquer pessoa – quando ausente a hipótese configuradora de causa provávelrevela-se incompatível com o modelo consagrado na Constituição da República, pois a quebra de sigilo não pode ser manipulada, de modo arbitrário, pelo Poder Público ou por seus agentes. Não fosse assim, a quebra de sigilo converter-se-ia, ilegitimamente, em instrumento de busca generalizada, que daria, ao Estado – não obstante a ausência de quaisquer indícios concretos – o poder de vasculhar registros sigilosos alheios, em ordem a viabilizar, mediante a ilícita utilização do procedimento de devassa indiscriminada (que nem mesmo o Judiciário pode ordenar), o acesso a dado supostamente impregnado de relevo jurídico-probatório, em função dos elementos informativos que viessem a ser eventualmente descobertos.

(RTJ 182/560, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Cumpre rememorar, bem por isso, neste ponto, Senhor Presidente, a advertência desta Suprema Corte, cujo magistério jurisprudencial, ao interpretar o alcance da norma inscrita no art. 58, § 3º, da Constituição da República, reconhece assistir, a qualquer Comissão Parlamentar de Inquérito, o poder de decretar, “ex auctoritate propria”, a quebra do sigilo inerente aos registros bancários, fiscais e telefônicos, desde que o faça, no entanto, em ato adequadamente fundamentado, do qual conste a necessária referência a fatos concretos que justifiquem a configuração, “hic et nunc”, de causa provável(sequer indicada na espécie em exame), apta a legitimar a medida excepcional da “disclosure” (RTJ 173/805, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 174/844, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RTJ 177/229, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 178/263, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – MS 23.619/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, v.g.):


COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO QUEBRA DE SIGILOINOCORRÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO – AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO DE FATOS CONCRETOS REFERENTES À PESSOA INVESTIGADA – NULIDADE DA DELIBERAÇÃO PARLAMENTAR – MANDADO DE SEGURANÇA DEFERIDO.

A QUEBRA DO SIGILO, POR ATO DE COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO, DEVE SER NECESSARIAMENTE FUNDAMENTADA, SOB PENA DE INVALIDADE.

A Comissão Parlamentar de Inquéritoque dispõe de competência constitucional para ordenar a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico das pessoas sob investigação do Poder Legislativo – somente poderá praticar tal ato, que se reveste de gravíssimas conseqüências, se justificar, de modo adequado, e sempre mediante indicação concreta de fatos específicos, a necessidade de adoção dessa medida excepcional. Precedentes.

A QUEBRA DE SIGILO – QUE SE APÓIA EM FUNDAMENTOS GENÉRICOS E QUE NÃO INDICA FATOS CONCRETOS E PRECISOS REFERENTES À PESSOA SOB INVESTIGAÇÃO – CONSTITUI ATO EIVADO DE NULIDADE.

– A quebra do sigilo inerente aos registros bancários, fiscais e telefônicos, por traduzir medida de caráter excepcional, revela-se incompatível com o texto da Constituição, quando fundada em deliberações emanadas de CPI cujo suporte decisório apóia-se em formulações genéricas, muitas vezes padronizadas, que não veiculam a necessária e específica indicação da causa provável, que constitui pressuposto de legitimação essencial para a válida ruptura, por parte do Estado, da esfera de intimidade a todos garantida pela Carta Política.

(MS 23.964/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)

Esse entendimento, Senhor Presidente – que encontra apoio em autorizado magistério doutrinário (UADI LAMMÊGO BULOS, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, p. 253/257, item n. 2, 2001, Saraiva; ODACIR KLEIN, “Comissões Parlamentares de Inquérito”, p. 67/68, 1999, Fabris Editor; ALEXANDRE ISSA KIMURA, “CPI – Teoria e Prática”, p. 73/81, item n. 3.6, 2001, Ed. Juarez de Oliveira; ALEXANDRE DE MORAES, “Direito Constitucional”, p. 387, item n. 2.5.1, 18ª ed., 2005, Atlas; OVÍDIO ROCHA BARROS SANDOVAL, “CPI ao Pé da Letra”, p. 131/134, item n. 90, 2001, Millennium; LUIZ CARLOS DOS SANTOS GONÇALVES, “Comissões Parlamentares de Inquérito – Poderes de Investigação”, p. 73, item n. 2, e p. 123/126, item n. 7, 2001, Juarez de Oliveira, v.g.) -, repele deliberações de Comissões Parlamentares de Inquérito, que, cingindo-se a meras presunções, ou a referências destituídas “do mínimo necessário de suporte informativo”, ou, ainda, a afirmações vagas e genéricas, nestas fundamentam, mesmo assim, a medida extraordinária da quebra de sigilo, em claro desrespeito ao modelo institucional de poderes limitados e ao sistema de garantias subjetivas estabelecidos no estatuto constitucional (MS 23.668/DF, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI).

Cabe registrar, neste ponto, Senhor Presidente, uma última observação. Refiro-me ao fato de que a presente decisão – precisamente por fazer prevalecer, na espécie, uma garantia constitucional desrespeitada pela CPI em questãonão pode ser qualificada como um ato de indevida interferência na esfera orgânica do Poder Legislativo.

É que a função de investigar não pode resumir-se a uma sucessão de abusos nem deve reduzir-se a atos que importem em violação de direitos ou que impliquem desrespeito a garantias estabelecidas na Constituição e nas leis. O inquérito parlamentar, por isso mesmo, não pode transformar-se em instrumento de prepotência nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.


Os fins não justificam os meios. Há parâmetros ético- -jurídicos que não podem nem devem ser transpostos pelos órgãos, pelos agentes ou pelas instituições do Estado. Os órgãos do Poder Público, quando investigam (como na espécie), processam ou julgam, não estão exonerados do dever de respeitar os estritos limites da lei e da Constituição, por mais graves que sejam os fatos cuja prática motivou a instauração do procedimento estatal.

Não se diga, por isso mesmo, na perspectiva do caso em exame, que a atuação do Poder Judiciário, nas hipóteses de lesão, atual ou iminente, a direitos subjetivos amparados pelo ordenamento jurídico do Estado, configuraria intervenção ilegítima dos juízes e Tribunais no âmbito de atuação do Poder Legislativo.

Eventuais divergências na interpretação do ordenamento positivo não traduzem nem configuram situação de conflito institucional, especialmente porque, acima de qualquer dissídio, situa-se a autoridade da Constituição e das leis da República.

Isso significa, na fórmula política do regime democrático, que nenhum dos Poderes da República está acima da Constituição e das leis. Nenhum órgão do Estado – situe-se ele no Poder Judiciário, ou no Poder Executivo, ou no Poder Legislativo – é imune à força da Constituição e ao império das leis.

Uma decisão judicial que restaura a integridade da ordem jurídica e que torna efetivos os direitos assegurados pelas leis – não pode ser considerada um ato de interferência na esfera do Poder Legislativo, consoante já proclamou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em unânime decisão:

O CONTROLE JURISDICIONAL DE ABUSOS PRATICADOS POR COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO NÃO OFENDE O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES.

– A essência do postulado da divisão funcional do poder, além de derivar da necessidade de conter os excessos dos órgãos que compõem o aparelho de Estado, representa o princípio conservador das liberdades do cidadão e constitui o meio mais adequado para tornar efetivos e reais os direitos e garantias proclamados pela Constituição.

Esse princípio, que tem assento no art. 2º da Carta Política, não pode constituir nem qualificar-se como um inaceitável manto protetor de comportamentos abusivos e arbitrários, por parte de qualquer agente do Poder Público ou de qualquer instituição estatal.

O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República.

O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.

Desse modo, não se revela lícito afirmar, na hipótese de desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera de outro Poder da República.


(RTJ 173/805-810, 806, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Esse entendimento, Senhor Presidente, tem sido por mim observado em diversos julgamentos que proferi nesta Suprema Corte e nos quais tenho sempre enfatizado que a restauração, em sede judicial, de direitos e garantias constitucionais lesados por uma CPI não traduz situação configuradora de ofensa ao princípio da divisão funcional do poder, como resulta claro da seguinte (e recente) decisão, que está assim ementada:

(…) O postulado da separação de poderes e a legitimidade constitucional do controle, pelo Judiciário, das funções investigatórias das CPIs, se e quando exercidas de modo abusivo. Doutrina. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. (…).

(HC 88.015-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, inInformativo/STF” nº 416/2006)

É imperioso destacar, ainda, Senhor Presidente, no contexto destas considerações finais, que a exigência de respeito aos princípios consagrados em nosso sistema constitucional não frustra nem impede o exercício pleno, por qualquer CPI, dos poderes investigatórios de que se acha investida.

A observância dos direitos e garantias constitui fator de legitimação da atividade estatal. Esse dever de obediência ao regime da lei se impõe a todos – magistrados, administradores e legisladores.

O poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto.

Ainda que em seu próprio domínio institucional, portanto, nenhum órgão estatal – como uma Comissão Parlamentar de Inquérito, p. ex. – pode, legitimamente, pretender-se superior ou supor-se fora do alcance da autoridade suprema da Constituição Federal e das leis da República.

O respeito efetivo pelos direitos individuais e pelas garantias fundamentais outorgadas pela ordem jurídica aos cidadãos em geral representa, no contexto de nossa experiência institucional, o sinal mais expressivo e o indício mais veemente de que se consolida, em nosso País, de maneira real, o quadro democrático delineado na Constituição da República.

A separação de poderes – consideradas as circunstâncias históricas que justificaram a sua concepção no plano da teoria constitucional – não pode ser jamais invocada como princípio destinado a frustrar a resistência jurídica a qualquer ensaio de opressão estatal ou a inviabilizar a oposição a qualquer tentativa de comprometer, sem justa causa, o exercício, pela pessoa que sofre a investigação, do seu direito de requerer a tutela jurisdicional contra abusos que possam ser cometidos pelas instituições do Estado, não importando se vinculadas à estrutura do Poder Legislativo (como na espécie), do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.

A investigação parlamentar, judicial ou administrativa de qualquer fato determinado, por mais grave que ele possa ser, não prescinde do respeito incondicional e necessário, por parte do órgão público dela incumbido, das normas, que, instituídas pelo ordenamento jurídico, visam a equacionar, no contexto do sistema constitucional, a situação de contínua tensão dialética que deriva do antagonismo histórico entre o poder do Estado (que jamais deverá revestir-se de caráter ilimitado) e os direitos da pessoa (que não poderão impor-se de forma absoluta).

É, portanto, com apoio na Constituição e nas leise não na busca pragmática de resultadosque se deverá promover a solução do justo equilíbrio entre as relações de tensão que emergem do estado de permanente conflito entre o princípio da autoridade, de um lado, e o valor da liberdade e dos demais direitos e garantias fundamentais, de outro.

O que simplesmente se revela intolerável e não tem sentido, por divorciar-se dos padrões ordinários de submissão à “rule of law” – é a insinuação, de todo paradoxal, contraditória e inaceitável, de que o respeito pela autoridade da Constituição e das leis configuraria fator ou elemento de frustração da eficácia da investigação estatal.

É tempo de concluir este voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, consideradas as razões mencionadas, tenho por inteiramente acolhível a pretensão mandamental deduzida pela empresa impetrante, por reconhecer que a fundamentação do ato de quebra de sigilo em causa revela-se genérica, insuficiente e, por isso mesmo, incompatível com os padrões firmados pela jurisprudência constitucional desta Suprema Corte.

Sendo assim, pelas razões expostas, e acolhendo, ainda, o douto parecer do eminente Procurador-Geral da República (fls. 397/401), defiro o pedido formulado nesta sede mandamental, em ordem a invalidar o ato da CPMI dos Correios, que, ao aprovar o Requerimento nº 1219/2005 (fls. 283), “determinou a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico da impetrante, Alexander Forbes Brasil Corretora de Seguros Ltda. (…)” (fls. 26, item n. IV, “a” e “b”).

É o meu voto.

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