Imbróglio eleitoral

Leia voto de Ellen Gracie sobre manutenção da verticalização

Autor

24 de março de 2006, 7h00

Por nove votos a dois, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a verticalização das coligações partidárias deve ser mantida nas eleições deste ano. Os ministros entenderam que a Emenda Constitucional 52/06 só produzirá efeitos a partir de março de 2007, um ano após sua promulgação. Apenas os ministros Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence votaram pelo fim imediato da verticalização.

A relatora, ministra Ellen Gracie, entendeu que deve prevalecer o que determina o artigo 16 da Constituição Federal. Pelo dispositivo, mudanças no sistema eleitoral só valem para as eleições que ocorram um ano depois da alteração. Para a ministra, a norma é inviolável.

Para Ellen Gracie, uma alteração na lei, em ano eleitoral, comprometeria o equilíbrio de forças. Segundo ela, a regra prevista no artigo 16 evita sobressaltos e insegurança jurídica, representando uma garantia individual do cidadão-eleitor.

Leia a íntegra da nota

22/03/2006 TRIBUNAL PLENO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 3.685-8 DISTRITO FEDERAL

RELATORA : MIN. ELLEN GRACIE

REQUERENTE(S) : CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

ADVOGADO(A/S) : ROBERTO ANTONIO BUSATO

REQUERIDO(A/S) : CONGRESSO NACIONAL

R E L A T Ó R I O

A Senhora Ministra Ellen Gracie: O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propôs ação direta de inconstitucionalidade em face do art. 2º da Emenda Constitucional 52, de 08.03.06, que alterou a redação do art. 17, § 1º, da Constituição Federal, para inserir em seu texto, no que diz respeito à disciplina relativa às coligações partidárias eleitorais, a regra da não-obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal. O dispositivo impugnado determina a aplicação dos efeitos da referida Emenda “às eleições que ocorrerão no ano de 2002” (fl. 15).

Aponta o requerente ofensa à regra da anualidade estabelecida no art. 16 da Constituição Federal: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Assevera que a emenda constitucional inclui-se no amplo conceito de lei previsto nessa norma constitucional, ou seja, lei é gênero, que abrange espécies como lei constitucional, lei complementar e lei ordinária.

Sustenta ainda que a infringência ao art. 16 da Constituição levada a efeito pelo dispositivo atacado traz consigo violência à garantia individual da segurança jurídica consagrada no art. 5º, caput, da Carta Magna.

Esclarece que a regra da anualidade também deriva do princípio do Estado Democrático de Direito. Assim, por atingir cláusulas pétreas, intangíveis por força do art. 60, § 4º, da Lei Maior, o art. 2º da EC 52/2006 deve ser considerado inconstitucional.

Requer, dessa forma, cautelarmente, a suspensão da vigência da norma contestada e, no mérito, a sua declaração de inconstitucionalidade.

Após o ajuizamento da presente ação, a autora apresentou parecer da lavra do ilustre jurista Fábio Konder Comparato, no qual reitera os argumentos lançados na petição inicial (fls. 26/32).

Com base no art. 12 da Lei 9.868/99, vieram informações da Mesa do Congresso Nacional (fls. 34/38), em que alega não existir a inconstitucionalidade suscitada. Afirma que o art. 16 da Constituição, por se dirigir ao legislador ordinário, não prevalece contra a EC 52/06. Traz precedente desta Suprema Corte (RE 129.392, rel. Min. Sepúlveda Pertence), no qual se afirmou a inoponibilidade do art. 16 da Carta Magna à aplicação imediata de lei complementar a que se refere o art. 14, § 9º, da Constituição.

Considerado esse julgado, com muito mais razão, assevera, a anualidade não pode ser invocada em face de emenda à Constituição. Manifesta-se, portanto, o Congresso Nacional pela improcedência do pedido formulado.

O Advogado-Geral da União, em sua manifestação (fls. 40/72), afirma preliminarmente que, nos termos do art. 3º da Lei 9.868/99, a presente ação deve ser indeferida, ante a ausência de razoável fundamentação quanto à suposta violação ao art. 5º, da Constituição.

Sobre o mérito, alega que o postulado da anualidade do art. 16 da Constituição não se aplica à EC 52/06, pois esta trata de coligações partidárias, matéria que, por ser afeta ao direito partidário, não se confunde com o processo eleitoral. Prossegue sua exposição com o argumento de que, se foi possível ao Tribunal Superior Eleitoral, em março de 2002, estabelecer exegese sobre as alianças partidárias para as eleições daquele ano, sem que isso representasse ofensa à segurança jurídica, “muito mais legítima mostra-se a interpretação fixada pela Emenda Constitucional nº 52 e aplicação das alterações do art. 17, § 1º, da Lei Maior, às eleições de 2006”. Assevera, de outra parte, que a regra do art. 16 da Carta Magna não integra o rol das cláusulas pétreas, pois não decorre necessariamente do princípio democrático e da segurança jurídica. Esclarece que, mesmo tida a anualidade por princípio constitucional intangível, a EC 52/06 com ela não conflita, ao contrário, “concorre justamente para a expansão do rol dos direitos e garantias individuais.” Tece, por fim, considerações sobre a verticalização das alianças partidárias, para, ao cabo, manifestar-se pela improcedência do pedido.


A Procuradoria-Geral da República, em parecer (fls. 74/87) da lavra de seu Procurador-Geral, Doutor Antônio Fernando de Souza, alegou que a inobservância do que disposto no art. 16 abalaria a seriedade do processo eleitoral, pois comprometeria todas as decisões políticas subseqüentes, que estariam sob constantes questionamentos acerca de sua legitimidade intrínseca. Assevera que o art. 60, § 4º, II, ao incluir, no núcleo intangível da Constituição Federal, o voto direto, secreto, universal e periódico, está protegendo, na verdade, o próprio princípio democrático, de caráter evidentemente imutável.

Aduz, outrossim, que o art. 16 da Constituição explicita prevenção ao casuísmo, que deve se dar de uma maneira mais ampla, “precavendo-se o processo eleitoral de qualquer espécie de alteração extemporânea, em detrimento da segurança jurídica exigida pela necessária legitimação do pleito” (fl. 83). Conclui, assim, representar o dispositivo constitucional em análise mecanismo de limitação ao poder estatal, “a ser exercido, portanto, em parâmetros anteriormente estabelecidos, atendendo-se um lapso temporal específico, dentro do qual estará suspensa a eficácia de norma do processo eleitoral” (fl. 86). Opinando, dessa forma, pela procedência do pedido formulado, sintetizou o Chefe do Ministério Público Federal sua posição em ementa que possui o seguinte teor (fl. 74):

“Ação direta de inconstitucionalidade. Rito do art. 12 da Lei 9.868/99. Emenda Constitucional nº 52, de 8 de março de 2006, em que se assegura aos partidos políticos a plena autonomia para adotar o regime de suas coligações eleitorais. Previsão de imediata aplicação. Confronto com o espírito da Constituição. Procedimento como item integrante da evolução do sistema político. Legitimação das decisões políticas por intermédio do procedimento. Alterações dos códigos legais devem se pautar por regras previamente delineadas. Artigo 16 da Lei Fundamental como expressão máxima desse discurso. Abalo do regime democrático em face do enfraquecimento jurídico das instituições. Conflito que se resolve em favor do preceito marcado pelo artigo 16. Disposição que inova o processo eleitoral, rearrumando as formatações pelas quais se expressarão as tendências e os agentes participantes do pleito, que se avizinha. Segurança jurídica a ser prestigiada. Plausibilidade do pedido demonstrada. Patente risco de

inflamação e dúvida social. Parecer pela procedência do pedido.”

Na manhã de hoje, recebi peça da lavra do eminente Ministro Paulo Brossard de Souza Pinto, com considerações coerentes com a manifestação da Mesa do Senado Federal. Fiz distribuir cópias aos eminentes Ministros.

É o relatório. Distribuam-se, com urgência, cópias aos Senhores Ministros.

V O T O

A Senhora Ministra Ellen Gracie – (Relatora): Afasto, inicialmente, a preliminar suscitada pela Advocacia-Geral da União, na qual alega ausência de fundamentação da pretensão deduzida na inicial. Afirma que a autora não cumpriu sua obrigação de explicitar de que forma a norma atacada estaria ofendendo os dispositivos constitucionais invocados. Embora sucinta a peça exordial, considero que a requerente cumpriu mais do que o mínimo necessário para bem expor a controvérsia por ela instaurada, pois, ao longo de seu arrazoado, buscou demonstrar de que maneira a inovação impugnada teria contrariado o princípio constitucional da segurança jurídica.

2. Em 8 de março de 2006, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 52, que, ao dar nova redação ao art. 17, § 1º, da Carta Magna, incorporou ao texto constitucional comando que assegura aos partidos políticos autonomia “para adotar (1) os critérios de escolha e (2) o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal”.

O tema tratado na referida Emenda é de natureza eminentemente eleitoral e era exclusivamente disciplinado, por força da competência prevista no art. 22, I, da Constituição1, na legislação ordinária federal, mais especificamente no art. 6º da Lei 9.504, de 30.09.97 (Código Eleitoral), cujo caput enuncia:

“Art. 6º É facultado aos partidos políticos, dentro da mesma circunscrição, celebrar coligações para eleição majoritária, proporcional, ou para ambas, podendo, neste último caso, formar-se mais de uma coligação para a eleição proporcional dentre os partidos que integram a coligação para o pleito majoritário.”

A exegese dessa norma infraconstitucional, principalmente no que se refere ao alcance da expressão “dentro da mesma circunscrição”, gerou dúvidas entre os partidos políticos, que foram afastadas após o resultado da Consulta 715, rel. Min. Garcia Vieira, formulada, em 10.08.01, perante o Tribunal Superior Eleitoral. A interpretação prevalecente foi, então, sintetizada na Resolução 21.002, de 26.02.02, que possui o seguinte teor:


1 CF, art. 22, I: “Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”

“Consulta. Coligações. Os partidos políticos que ajustarem coligação para eleição de presidente da República não poderão formar coligações para eleição de governador de estado ou do Distrito Federal, senador, deputado federal e deputado estadual ou distrital com outros partidos políticos que tenham, isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato à eleição presidencial. Consulta respondida negativamente.”

Na honrosa qualidade de integrante daquela Corte Superior Eleitoral, participei da assentada ora comentada, na qual teci as seguintes manifestações ao me filiar à tese majoritária:

“Basicamente, a divergência quanto à matéria

de fundo se resume à interpretação a ser dada à cláusula

contida no art. 6º da Lei nº 9.504/97 (…).

(…)

Conforme desenvolvido no voto de V. Ex.a., Sr. Presidente, quando houver eleições gerais (nacional e estaduais), como é o caso do próximo pleito, a circunscrição maior, necessariamente, abrange e engloba as circunscrições menores, acarretando a necessidade de coerência entre as coligações formadas num e noutro dos planos.

Portanto, o âmbito de validade da restrição a que corresponde a cláusula – dentro da mesma circunscrição – deve ser entendido como o espaço maior, aquele em que se dá a eleição nacional. As coligações que neste patamar se formarem condicionam e orientam as que forem propostas para o âmbito dos estados-membros.

(…)

Mais ainda reforça esta minha convicção o fato de que, ao cidadão-eleitor, esta interpretação sinaliza no sentido da coerência partidária e no da consistência ideológica das agremiações e das alianças que se venham a formar, com inegável aperfeiçoamento do sistema políticopartidário.” (Destaquei)

Da apontada Consulta 715, surgiu o art. 4º, § 1º, da Instrução 552, também do TSE, que disciplinou a escolha e o registro dos candidatos para as eleições do ano de 2002. Esse dispositivo foi, então, impugnado perante o Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.626 e 2.628, ambas de relatoria originária do eminente Ministro Sydney Sanches, as quais não foram conhecidas tendo em vista a natureza secundária, interpretativa e regulamentar da Instrução atacada. O acórdão, cuja redação a mim foi incumbida, possui os seguintes termos (DJ 05.03.04):

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PARÁGRAFO 1° DO ARTIGO 4° DA INSTRUÇÃO N° 55, APROVADA PELA RESOLUÇÃO N° 20.993, DE 26.02.2002, DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. ART. 6° DA LEI N° 9.504/97. ELEIÇÕES DE 2002. COLIGAÇÃO PARTIDÁRIA. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS ARTIGOS 5°, II E LIV, 16, 17, § 1°, 22, I E 48, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ATO NORMATIVO SECUNDÁRIO. VIOLAÇÃO INDIRETA. IMPOSSIBILIDADE DO CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE.

Tendo sido o dispositivo impugnado fruto de resposta à consulta regularmente formulada por parlamentares no objetivo de esclarecer o disciplinamento das coligações tal como previsto pela Lei 9.504/97 em seu art. 6º, o objeto da ação consiste, inegavelmente, em ato de interpretação. Saber se esta interpretação excedeu ou não os limites da norma que visava integrar, exigiria, necessariamente, o seu confronto com esta regra, e a Casa tem rechaçado as tentativas de submeter ao controle concentrado o de legalidade do poder regulamentar. Precedentes: ADI n° 2.243, Rel. Min. Marco Aurélio, ADI n° 1.900, Rel. Min. Moreira Alves, ADI n° 147, Rel. Min. Carlos Madeira.

Por outro lado, nenhum dispositivo da Constituição Federal se ocupa diretamente de coligações partidárias ou estabelece o âmbito das circunscrições em 2 Art. 4º, § 1º, da Instrução nº 55 – Classe 12ª – Distrito Federal, aprovada pela Resolução 20.993, de 26.02.02, do Tribunal Superior Eleitoral:

“Os partidos políticos que lançarem, isoladamente ou em coligação, candidato/a à eleição de presidente da República não poderão formar coligações para eleição de governador/a de estado ou do Distrito Federal, senador/a, deputado/a federal e deputado/a estadual ou distrital com partido político que tenha, isoladamente ou em aliança diversa, lançado candidato/a à eleição presidencial (Lei nº 9.504/97, art. 6º; Consulta nº 715, de 26.2.2002).” que se disputam os pleitos eleitorais, exatamente, os dois pontos que levaram à interpretação pelo TSE. Sendo assim, não há como vislumbrar ofensa direta a qualquer dos dispositivos constitucionais invocados.


Ação direta não conhecida. Decisão por maioria.”

Após essa última decisão, as agremiações partidárias contrárias à formação das coligações eleitorais nos moldes então estabelecidos ainda tentaram, com algumas variações e já para as eleições gerais de outubro de 2006, duas novas investidas perante o Tribunal Superior Eleitoral, que também não lograram êxito em razão da ausência de qualquer modificação no ordenamento jurídico pátrio quanto ao tema ora tratado (Pet 1.591, rel. Min. Luiz Carlos Madeira, julg. em 15.02.05,3 e Consulta 1.185, rel. p/ a res. Min. Caputo Bastos, julg. em 03.03.064).

Este é, portanto, um rápido esboço do cenário fáticonormativo em que surge a Emenda Constitucional 52, promulgada em 08.03.06, e que, pela atuação do legislador constituinte derivado, conferiu status constitucional à matéria até então integralmente regulamentada por legislação ordinária federal. Tal legislação tem sentido radicalmente oposto e incompatível com a nova orientação adotada, tudo conforme legítima interpretação da mais alta Corte Eleitoral do País. A inovação, enquanto vigente, tem o condão de provocar, a princípio, a perda da validade de qualquer restrição normativa à plena autonomia de uma coligação partidária surgida, por exemplo, no plano estadual ou distrital em face das que venham a se formar, em prol de outras candidaturas, no plano federal ou municipal.

3. Na presente ação direta de inconstitucionalidade, a Ordem dos Advogados do Brasil, pelo seu Conselho Federal, restringiu sua impugnação ao art. 2º da Emenda em exame, que trata do momento em que as coligações partidárias eleitorais poderão ser constituídas em consonância com 3 A Petição 1.591 – Classe 18ª – Distrito Federal, rel. Min. Luiz Carlos Madeira, originou a Resolução 21.986, DJ 30.05.05, que possui o seguinte teor:

“Petição. Declaração de insubsistência do ‘princípio da verticalização’. Pedido fundamentado em projeto de Lei. Impossibilidade de atendimento. Pedido indeferido.”

4 A Consulta 1.185 – Classe 5ª – Distrito Federal, rel. p/ a res. Min. Caputo Bastos, originou a Resolução 22.161, ainda não publicada. a nova redação do art. 17, § 1º, da Constituição. Assim dispõe o preceito impugnado:

“Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação, aplicando-se às eleições que ocorrerão no ano de 2002.”

Em primeiro lugar, afasto, por óbvio, qualquer leitura que cogite ter o referido comando a pretensão de alcançar, retroativamente, as eleições gerais realizadas no ano de 2002, para as quais imperou, conforme o retrospecto acima desenhado, a regra da obrigatoriedade da verticalização das coligações partidárias. É fácil de perceber que, se, por absurdo, tivesse sido esse o propósito da norma, nela estaria a forma verbal pretérita “eleições que ocorreram em 2002”, e não o termo “ocorrerão”, no futuro do presente.

4. Também não me convence o argumento de que tal referência às eleições já consumadas em 2002 serviria para contornar a imposição presente no art. 16 da Constituição Federal, entendendo-se, assim, que, se a nova disposição sobre as coligações já tivesse valido, ainda que de forma fictícia, para o pleito passado, não caberia mais avaliar a ocorrência do decurso de um ano entre a data da vigência da recente alteração normativa e as próximas eleições. Entendo que a atecnia havida, representada pelo acréscimo, ao texto constitucional, de norma que prevê sua futura aplicação a evento já pertencente ao passado há quase 4 anos, teve como principal razão a complexidade, as peculiaridades e as dificuldades ínsitas ao processo legislativo brasileiro, fator somado, ainda, a circunstâncias políticas atuais que reativaram a pretensão de uma célere promulgação de Projeto de Emenda Constitucional que possuía, em sua tramitação final, a mesma redação de substitutivo integrante de relatório aprovado em 03.04.02, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (Parecer 244, de 2002, relator Sen. José Fogaça, DSF 12.02.02).

5. De qualquer modo, o que realmente interessa examinar no julgamento da presente ação direta é a constitucionalidade da aplicação da nova regra eleitoral sobre coligações partidárias às eleições gerais que serão realizadas em menos de sete meses. O principal parâmetro de confronto no presente caso é, sem dúvida alguma, o art. 16 da Constituição Federal, que dispõe:

“Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.”

Trata-se de proclamação expressa do princípio constitucional da anterioridade eleitoral. Celso Ribeiro Bastos, ainda em comentário dirigido à redação original do dispositivo (“A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”), anterior à EC 4/93, assevera que:


“A preocupação fundamental consiste em que a lei eleitoral deve respeitar o mais possível a igualdade entre os diversos partidos, estabelecendo regras equânimes, que não tenham por objetivo favorecer nem prejudicar qualquer candidato ou partido. Se a lei for aprovada já dentro do contexto de um pleito, com uma configuração mais ou menos delineada, é quase inevitável que ela será atraída no sentido dos diversos interesses em jogo, nessa altura já articulados em candidaturas e coligações. A lei eleitoral deixa de ser aquele conjunto de regras isentas, a partir das quais os diversos candidatos articularão as suas campanhas, mas passa ela mesma a se transformar num elemento da batalha eleitoral5. (Destaquei)

Fávila Ribeiro, ao dissertar sobre a essência do princípio em análise, preconiza que o tempo é um elemento marcante na dinâmica eleitoral, sendo necessário redobradas cautelas para que não seja utilizado para desvirtuamentos, “fomentando situações alvissareiras para uns e, prejudiciais a outros”. Adverte esse doutrinador que “as instituições representativas não podem ficar expostas a flutuações nos seus disciplinamentos, dentre os quais sobrelevam os eleitorais, a que não fiquem ao sabor de dirigismo normativo das forças dominantes de cada período”. Salienta, outrossim, a importância do pleno discernimento entre a necessidade do aperfeiçoamento legislativo advindo com as reformas e “a noção do tempo inapropriado para empreendêlas, evitando a fase em que já estejam iniciados os entrechoques e personificados os figurantes com as suas siglas partidárias e mesmo com 5 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. 2º vol. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 597. coligações já definidas, ainda que não formalizadas pelas respectivas convenções.6 (Destaquei)

6. Este Supremo Tribunal Federal, em mais de uma oportunidade, realizou aprofundado exame a respeito da importância e da altivez do art. 16 da Constituição Federal e do princípio nele encerrado, ainda que o ponto central dos debates travados tenha sido a melhor interpretação a ser dada à locução “processo eleitoral”, mais restrita que o termo “direito eleitoral” contido no art. 22, I, da mesma Carta.

Na ADI 354, rel. Min. Octavio Gallotti, DJ 12.02.93, impugnou-se norma (art. 2º da Lei 8.037/90) cuja vigência imediata alterava, já para as eleições que ocorreriam no ano de 1990, o critério a ser adotado no cômputo de votos, no que diz respeito à prevalência do candidato ou do partido, quando houvesse dúvida sobre a real intenção do eleitor. Embora tenha prevalecido a tese de que não se tratava de norma relativa ao processo eleitoral, mas sim de direito material, destinada à interpretação da vontade já livremente manifestada pelo eleitor, relevantes manifestações sobre o princípio constitucional da anterioridade eleitoral vieram à tona, tanto nos votos que formaram a maioria, como nos vencidos. Destaco em primeiro lugar a manifestação da douta Procuradoria-Geral da República, da lavra do então Vice-Procurador Geral, Dr. Afonso Henriques Prates Correia, para o qual buscou o constituinte “impedir que situações concretas conduzissem a alterações da legislação eleitoral, pretendendo com isto subtrair normas genéricas e abstratas de influências ditadas por interesses ocasionais, que poderiam macular a legitimidade democrática, com modificações ditadas pelo interesse de suprimir riscos, para a maioria, quanto ao resultado do processo eleitoral”.

Concluiu o ilustre parecerista que “ficou tristemente célebre a expressão ‘casuísmo’, como representativa da mudança das regras do jogo eleitoral, quando se desenhasse a conveniência dos que estivessem no Poder”. O eminente relator, Ministro Octavio Gallotti, fez referência, em seu voto, a julgado do Tribunal Superior Eleitoral em que essa mesma Corte recusara vigência imediata a norma que prorrogava o prazo de vencimento do registro de candidatos com representação parlamentar (Lei 6 RIBEIRO. Fávila. Pressupostos Constitucionais do Direito Eleitoral. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1990, p. 93. 8.054/90). Tendo participado também desse julgamento, transcreveu, então, S. Exa., suas considerações sobre o caso, as quais reproduzo:

“No caso, em exame, Senhor Presidente, penso que, pelo contrário, estamos diante de um padrão clássico de aplicação do art. 16 da Constituição Federal. Uma lei que modifica a relação entre os partidos, candidatos e eleitores, modifica a equação, a correlação das forças políticas e mesmo, Senhor Presidente, estando inserida no sistema partidário, (…), parece inegável que altera o processo eleitoral, naquilo que ele tem de mais sensível e peculiar, que é a competição. Julgo que não se pode negar que uma lei que permite a presença no processo eleitoral de determinados partidos políticos, que de outra forma a ele não estariam presentes seja uma regra que altera as forças da competição, mesmo plantada dentro da legislação que regula o sistema partidário.” (Destaquei)


Apontou, assim, o nobre relator, Ministro Octavio Gallotti, como fatores de incidência da proibição constitucional contida no art. 16, a surpresa da interferência na correlação das forças políticas, no equilíbrio das posições de partidos e candidatos, nos elementos da disputa e de competição, bem como a quebra da isonomia.

7. Diante de tudo o que foi salientado até o momento sobre a inegável posição de destaque – sem precedentes na história constitucional brasileira – dado pelo Constituinte de 1988 ao princípio da anterioridade eleitoral, como instrumento indispensável a uma mínima defesa da insuspeita e verdadeira representatividade que deve marcar o regime democrático de Estado, impõe-se, neste julgamento, definir se a alteração no processo eleitoral, a menos de um ano do pleito, pela específica circunstância de ter sido introduzida pelo constituinte derivado, é capaz de neutralizar, por si só, todas as conseqüências nefastas dessa ingerência no equilíbrio de forças político-eleitorais formado durante a vigência de regras até então conhecidas e respeitadas por todos.

Registro, inicialmente, que as emendas constitucionais, não obstante a invulgar superioridade que possuem no ordenamento jurídico, são elaboradas, tal qual todas as demais espécies normativas, no âmbito de um processo legislativo, conforme prevê o art. 59 da Constituição Federal7. No julgamento da ADI 354 acima referida, bem salientou o eminente Ministro Celso de Mello que o legislador constituinte originário, na gênese no art. 16, atentou para a necessidade de coibir a utilização abusiva e casuística do processo legislativo como instrumento de manipulação e de deformação dos pleitos eleitorais. Ora, se as emendas constitucionais, conforme expressamente previsto na Constituição, são produtos gerados na existência de um processo legislativo, também elas podem, com muito mais gravidade, servir como instrumento de abusos e casuísmos capazes de desestabilizar a normalidade ou a própria legitimidade do processo eleitoral. É forçoso concluir, que em termos de impacto no contexto dinâmico de uma eleição que se aproxima, tanto faz que a alteração se dê por emenda, lei complementar ou lei ordinária, pois a equação das forças políticas que desaguariam, sob a vigência de certas normas, na vitória desta ou daquela possível candidatura poderá sofrer, por fator alheio à vontade popular, completa reformulação.

Não me parece que a Constituição Federal tenha pretendido suportar anomalia por ela mesma combatida quando a regra modificadora for integrada ao seu próprio texto. Por esse raciocínio, todas as vezes que se pretenda burlar a norma anticasuísta, será possível lançar mão da elaboração de emenda constitucional, até que o princípio consagrado pelo constituinte originário esteja completamente nulificado. Não é demais advertir que qualquer tema de direito eleitoral, a princípio disciplinável por legislação ordinária, pode ser regulamentado pelo exercício do poder constituinte derivado. Todas essas questões apontam, ao meu ver, para uma forte sinalização de que, no sistema de garantias fundamentais da Constituição, há impeditivos para a adoção de artifícios dessa natureza. 8. Tal como ocorrido no julgamento da ADI 939, rel. Min. Sydney Sanches, DJ 17.12.93 (cautelar) e 18.03.94 (mérito), entendo estar em jogo questão relacionada à limitação material ao poder de reforma da Constituição. Nesse precedente, no qual foi declarada a inconstitucionalidade de parte do art. 2º, § 2º, da Emenda Constitucional 3, de 17.03.93, entendeu a Corte que o afastamento do princípio da anterioridade tributária (CF, 150, III, b), possibilitando a imediata cobrança do então criado imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza 7 CF, art. 59: “O processo legislativo compreende a elaboração de: I – emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções. Parágrafo único. Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis.” financeira – IPMF, maculava garantia individual do contribuinte resguardada pelos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, da Constituição.

O referido art. 150, III, b, da Carta Magna proclama ser vedado a todas as unidades da Federação cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou. É perceptível uma coincidência nos propósitos pretendidos pelo constituinte originário ao instituir a anterioridade tributária e a eleitoral: a manutenção das regras do jogo em andamento, evitando-se sobressaltos e insegurança. No julgamento cautelar da referida ADI 939, o eminente Ministro José Néri da Silveira, citando Sacha Calmon Navarro Coelho, apontou a não-surpresa, a segurança jurídica e a confiança na lei fiscal como os postulados inspiradores do princípio da anterioridade tributária. Na mesma linha, citou o eminente Ministro Celso de Mello manifestação doutrinária da autoria de Lise de Almeida8, que ora transcrevo, na qual se salientou que o princípio da anterioridade tributária representa:


“(…) a garantia individual do contribuinte, pessoa natural ou jurídica, de que a cobrança de novos tributos, ou a majoração de tributos já existentes, deverá vir estabelecida em lei que seja por si conhecida com antecedência, de tal modo que o mesmo tenha ciência do gravame a que se sujeitará no futuro próximo. Abre-se, assim, a possibilidade ao contribuinte de previamente organizar e planejar seus negócios e atividades. O fim primordial desta limitação constitucional é a tutela da segurança jurídica, especificamente configurada na justa expectativa do contribuinte quanto à certeza e à previsibilidade da sua situação fiscal.” (Destaquei) Da mesma forma que o art. 2º, § 2º, da EC 3/93 buscou instituir a inaplicabilidade do princípio da anterioridade tributária à exação então criada, a interpretação do art. 2º da EC 52/06 que a autora pretende ver fulminada é a que afasta a incidência do princípio constitucional da anterioridade eleitoral da nova regra sobre coligações partidárias estabelecida no art. 1º da mesma Emenda. Assim, enquanto o art. 150, III, b, da Constituição Federal encerra garantia individual do contribuinte, o art. 16, segundo penso, representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor 8 ALMEIDA, Lise de. Princípio da Anterioridade – Evolução no Direito Brasileiro e sua situação na Constituição, in RDTr 55/321, 1991. originário do poder exercido por seus representantes eleitos (CF, art. 1º, parágrafo único). Categórica, quanto à essa dimensão subjetiva do princípio da anterioridade eleitoral, foi a conclusão do eminente Ministro Celso de Mello nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.345 e 3.365 (julg. em 25.08.05, Informativo 398), na qual S. Exa. destaca que “o sentido maior de que se acha impregnado o art. 16 da Constituição reside na necessidade de preservar-se uma garantia básica assegurada, não só aos candidatos, mas, também, destinada aos próprios cidadãos, a que assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral”.

É norma que, conforme ressaltou o eminente Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento da ADI 354, protege o mais importante e relevante dos processos estatais da democracia representativa, o processo eleitoral, que assim o é “pela razão óbvia de que é ele a complexa disciplina normativa, nos Estados modernos, da dinâmica procedimental do exercício imediato da soberania popular, para a escolha de quem tomará, em nome do titular dessa soberania, as decisões políticas dela derivadas”. Nessa mesma linha de pensamento, assim asseverou a douta Procuradoria-Geral da República em seu parecer:

“A força dessa idéia é muito vigorosa: a aceitação pelos cidadãos de determinados agentes políticos, e com eles, de todas as decisões políticas tomadas em seu favor, tem o lastro basicamente no procedimento, ou seja, no caso, no processo eleitoral. O seu trabalho é assimilado pela sociedade em vista da seleção que o apóia.” (Destaquei)

9. Além de o princípio constitucional da anterioridade eleitoral conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 da Constituição ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). Sobre o primeiro desses postulados do Estado de Direito, assim se manifestou o eminente Ministro Gilmar Mendes no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.105 e 3.128, redator para o acórdão o Min. Cezar Peluso, DJ 18.02.05:

“(…) o princípio da segurança jurídica traduz a proteção da confiança que se deposita na subsistência de um dado modelo legal (Schutz des Vertrauens). A idéia da segurança jurídica tornaria imperativa a adoção de cláusulas de transição nos casos de mudança radical de um dado instituto ou estatuto jurídico. Daí por que se considera, em muitos sistemas jurídicos, que, em casos de mudança de regime jurídico, a ausência de cláusulas de transição configura uma omissão inconstitucional.”

No presente caso, é a própria Constituição que estipula um limite temporal para a plena aplicabilidade das novas regras que venham a alterar o processo eleitoral. Trata-se, conforme ressaltado pela requerente, de uma segurança jurídica qualificada pela própria Constituição. Por critério do legislador constituinte originário, somente após um ano contado da sua vigência, terá a norma aptidão para reger algum aspecto do processo eleitoral sem qualquer vinculação a circunstância de fato anterior à sua edição. A eleição alcançada nesse interregno fica, por isso, blindada contra as inovações pretendidas pelo legislador, subsistindo, assim, a confiança de que as regras do jogo em andamento ficarão mantidas.


10. No tocante à garantia fundamental do devido processo legal, na sua ótica substancial, ressaltou o eminente Ministro Sepúlveda Pertence, na ADI 354, não ser o bastante, para o processo eleitoral, que o jogo possua regras, sendo, assim, necessário que estas sejam prévias “à apresentação dos contendores e ao desenvolvimento da disputa e, portanto, imutáveis, até a sua decisão”. Assevera, ainda, S. Exa que a anterioridade exigida pelo art. 16 “é essencial à aspiração de segurança e de isonomia, que estão subjacentes à idéia qualificada de processo, como do devido processo legal”. Trata-se, aqui também, de um devido processo legal qualificado, não bastando que o legislador, mesmo o constituinte derivado, respeite os preceitos que regem o processo legislativo, impondo-se, ainda, a observância da anterioridade. 11. Sobre o processo eleitoral e o impacto nele causado pela alteração temporalmente inadequada das normas que regem as coligações partidárias, além do que já foi asseverado, ressalto que tal correlação há de ser obtida até mesmo na visão mais restritiva do alcance da expressão processo eleitoral perfilhada pelo eminente Ministro Moreira Alves. No julgamento da ADI 354, afirmou S. Exa. que o processo eleitoral abrange “as normas instrumentais diretamente ligadas às eleições, desde a fase inicial (a da apresentação das candidaturas) até a final (a da diplomação dos eleitos)”.

Ora, a coligação partidária nada mais é que um dos instrumentos utilizados no processo eleitoral para a composição de alianças com objetivo de participação nas eleições em condições de maior competitividade. Diz respeito ao somatório de forças de um grupo de partidos políticos na apresentação de uma só candidatura para um determinado cargo eletivo. Conforme ressaltou o eminente Ministro Octavio Gallotti nesse mesmo julgado, o processo eleitoral estará alterado quando a nova disposição interferir na correlação das forças políticas, no equilíbrio das posições de partidos e candidatos e, portanto, na própria competição. Não vejo exemplo mais eloqüente de influência a esse equilíbrio de forças do que a mudança nas regras concernentes às coligações.

Também nessa direção trilhou a Casa na ADI 1.407-MC, DJ 24.11.00, na qual o eminente relator, Ministro Celso de Mello, afirmou em seu douto voto que “o tema concernente às coligações partidárias – não obstante resultem estas da decisão exclusiva dos Partidos Políticos e de um juízo de conveniência que somente a eles pertence –, projeta-se, por sua natureza mesma, no âmbito do processo eleitoral, não podendo ser invocado como fator de restrição à atividade normativa desenvolvida pelo Poder Legislativo em campo que se insere na esfera de sua privativa competência institucional”. Afasto, portanto, a alegação da Advocacia-Geral da União no sentido de que a temática das coligações não se confundiria com o processo eleitoral.

12. Também não procede a afirmação de que este Supremo Tribunal teria considerado a aplicação da norma prevista no art. 16 da Constituição Federal restrita à atividade do legislador ordinário, por ter entendido legítima a aplicação imediata da Lei Complementar 64/90 (Lei das Inelegibilidades), que veio atender a imperativo presente no art. 14, § 9º, da Constituição Federal. No julgamento do RE 129.392, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 16.04.93, entendeu a maioria dos membros do Plenário que o citado art. 14, § 9º, da Carta Magna exigia a elaboração de um diploma inovador que viesse complementar o novo regime constitucional de inelegibilidades. Trata-se, portanto, de uma exceção ou de uma conformação de vontades do próprio constituinte originário, que não descaracteriza o princípio da anterioridade como uma garantia fundamental capaz de limitar o exercício do poder de revisão. À propósito, na ADI 939-MC já analisada, nem mesmo as exceções previstas na própria Constituição à aplicação do princípio da anterioridade tributária impediram que esta Corte reconhecesse o caráter de garantia individual do contribuinte desse postulado. Conforme asseverou o eminente Ministro Ilmar Galvão em seu voto, tal circunstância “só reforça o princípio-garantia, na medida em que serve para demonstrar que, para excepcioná-lo, se faz mister a iniciativa do próprio constituinte originário”.

13. Cabe, por último, advertir que a modificação no texto do art. 16 pela Emenda Constitucional 4/93 em nada alterou seu conteúdo principiológico fundamental. Tratou-se de mero aperfeiçoamento técnico, já que a redação original (“A lei que alterar o processo eleitoral só entrará em vigor um ano após sua promulgação”) provocava dificuldades na implementação das mudanças pretendidas, pois, conforme bem analisado por José Afonso da Silva, criava o dispositivo constitucional em debate verdadeira vacatio legis, que evitava casuísmo nas épocas eleitorais, “mas se dificultava a regulamentação do processo eleitoral”9. No mesmo sentido, Celso Ribeiro Bastos10.

14. Ante todo o exposto, reconhecendo violação ao art. 60, § 4º, IV, c/c art. 5º, caput, LIV e § 2º, da Constituição Federal, julgo procedente o pedido formulado na presente ação direta para: a. declarar a inconstitucionalidade da expressão “aplicandose às eleições que ocorrerão no ano de 2002”, contida no art. 2º da Emenda Constitucional 52, de 08.03.06; b. dar à parte remanescente do dispositivo interpretação conforme à Constituição, no sentido de que a referida Emenda somente seja aplicada às eleições que venham a ocorrer após decorrido um ano da data de sua vigência.

É como voto.

9 SILVA, José Afonso da. “Comentário Contextual à Constituição”. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 234.

10 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. 3ª ed., 2º vol., São Paulo: Saraiva, 2004, p.

671.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!