Risco à sociedade

Permitir progressão não significa permitir substituição de pena

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23 de março de 2006, 13h44

A decisão do Supremo Tribunal Federal do dia 23 de fevereiro, que considerou inconstitucional o cumprimento em regime integralmente fechado da pena aplicada a autores de crimes hediondos e equiparados, começa a repercutir nas mais diversas decisões judiciais, algumas delas já antevistas por juristas, mas com certeza não pela sociedade em geral, pois suas conseqüências podem trazer ainda mais a idéia de insegurança que vivemos.

Todos os juristas, de todas as correntes, desde o denominado Direito Penal liberal até o da “tolerância zero”, concordam que devem ser alteradas as formas de combate à criminalidade, a qual não deve ocorrer apenas na forma repressiva, mas antes disso, atuando sobre suas causas. Assim, muitos entendem ser a falta de estrutura familiar na infância, a miserabilidade e o consumo de drogas alguns dos fatores desencadeadores da violência hoje vivenciada.

De fato, o tráfico de entorpecentes é crime que contamina toda a cadeia social, sendo causa de inúmeros delitos, tais como furtos, roubos e até homicídios, todos praticados por usuários que necessitam nutrir e manter seu vício. Além disso, é mais do que sabido e altamente divulgado nos meios de comunicação a verdadeira guerra existente nos mais diversos pontos de tráfico do país, em especial em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Diante deste quadro, esta prática criminosa, como não podia ser diferente, foi equiparada a crime hediondo, mostrando às autoridades que tal delito deveria ser combatido com todos os rigores da lei.

No entanto, com a recente decisão do STF, entende alguns juristas que se abriu caminho para decisões que permitam que o regime inicial de cumprimento de pena pela prática do tráfico ilícito de drogas, pasmem, seja o aberto, podendo haver, inclusive, a substituição da pena privativa de liberdade, ou seja, a prisão em estabelecimento carcerário, por pena restritivas de direitos, por exemplo, serviços à comunidade.

De fato, é isso mesmo que está ocorrendo. Ao invés de um traficante cumprir a pena de prisão em uma cadeia, poderá ele prestar serviços à comunidade até mesmo nas escolas onde estudam nossos filhos, como bem disse o promotor de Justiça Cristiano Ledur. Cabe aqui perguntar: que tipo de serviço à comunidade prestará este cidadão que é responsável pela prática de outros delitos e se enriquece com a degradação e desestruturação de inúmeras famílias brasileiras mediante a venda de drogas?

Ouso responder a esta questão. O traficante não só estará livre, como com a pena de prestação de serviços à comunidade poderá facilmente incrementar seus negócios, obtendo facilmente novos clientes nos estabelecimentos educacionais onde cumprirá sua “pena”.

E não se pense que se está distante de tal realidade. Em recente sentença proferida na Comarca de Vacaria, por Lilian Raquel Bozza Pianezzola, juíza substituta, um dia após a decisão do Supremo Tribunal Federal, tal possibilidade já pôde ser concretizada, tendo a magistrada assim se referido quando da prolação de sua sentença:

“DA POSSIBILIDADE DE CONVERSÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM RESTRITIVA DE DIREITO — DO REGIME DO CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

A Lei 8072/90 fixou o regime integral para cumprimento da pena aos condenados por delitos hediondos, equiparando o tráfico ilícito de entorpecentes aos referidos delitos.

No entanto, na data de ontem, 23 de fevereiro de 2003, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o mérito do Habeas Corpus 82.959, declarou incidenter tantum, a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do artigo 2º da Lei 8072/90, de 25 de junho de 1990, e admitiu a progressão de regime para os condenados por delitos hediondos ou a eles equiparados.(…)

Em face disso, afastado o óbice existente a progressão, o regime de cumprimento da pena para os condenados pelo delito do artigo 12 da Lei 6.368/76, deverá seguir as regras existentes no Código Penal, possibilitada a progressão.

Assim, é necessário ressaltar que a pena mínima cominada ao delito de artigo 12 da Lei 6.368/76 é de três anos de reclusão.

A substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos aos condenados por tráfico ilícito de entorpecentes com pena aplicada de até quatro anos não era admitida diante da impossibilidade de progressão de regime carcerário. Ou seja, não se admitia que o condenado por delito cujo regime de cumprimento da pena fosse o integralmente fechado tivesse concedido o benefício da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito.

Porém, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, afastado está o óbice. Não vislumbro outra interpretação possível.

Ora, embora o delito continue a ser equiparado a hediondo, não foi cometido com violência ou grave ameaça, não havendo qualquer impedimento diante do que dispõe o artigo 44 do Código Penal para a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. (…)

Caberá o legislador legislar de modo diverso se assim entender.

No entanto, diante da decisão do Supremo Tribunal Federal e diante do que dispõe o artigo 44 do Código Penal, constituir-se-ia verdadeiro constrangimento ilegal não conceder a substituição se preenchidos os requisitos legais.”

É preciso esclarecer aqui que não se está, de modo algum, criticando-se levianamente a decisão da nobre magistrada, mas tão-somente constatando-se que esta adotou, pura e simplesmente, um dos possíveis caminhos abertos em face da nefasta e incompreensível decisão do STF.

Assim, data máxima vênia às argumentações exposta pela juíza Lilian, é preciso esclarecer que a decisão do STF foi no sentido de permitir a progressão de regime, mas, de modo algum, determinou que o cumprimento da pena por crime hediondo se desse no inicial aberto. E tal posição se extraí da própria lógica da decisão. Ora, se é permitido progredir de regime, essa progressão só pode ocorrer de um regime mais severo para um mais brando. Dito isso, cabe perquerir, qual será o regime mais brando que o aberto?

Ainda, a decisão proferida pelo STF determinou que a progressão deve ocorrer a partir do regime inicial fechado, ou seja, não se alterou o regime inicial de cumprimento de pena, como quis fazer crer a nobre magistrada acima referida. Assim, fazendo-se uma interpretação conforme a legislação e o intuito do legislador, combinada com a decisão do STF, deduz-se que o regime inicial para os crimes hediondos e equiparados permanece sendo o fechado.

A conclusão expressa no parágrafo anterior decorre, ainda, de uma questão de lógica, bom senso e razoabilidade, posto que não se pode querer tratar de forma igual duas condutas absolutamente desiguais, quais sejam, os crimes comuns e aqueles definidos ou equiparados a hediondos.

Aliás, neste tópico, cabe notar que o próprio ministro do STF, Carlos Ayres Britto, ao proferir seu voto na tão debatida decisão do último 23 de fevereiro, referiu que a progressão de regime para crimes hediondos não poderá ocorrer com apenas um sexto da pena cumprida como ocorre para os crimes comuns, haja vista a diferença axial e de natureza existente entre estes e aqueles definidos na Lei 8.072/90, dada sua peculiar hediondez.

Diante de tal quadro, verifica-se que mais grave e equivocada ainda é a decisão que permite a substituição da pena imposta pela prática de crime hediondo por uma restritiva de direitos, como uma prestação de serviços à comunidade. Tal possibilidade deve ser de todo rechaçada, como já referido, em face da própria inadequação e gravidade das espécies de delito ora sob comento com esta espécie de pena, bem como em face de não preencher os requisitos legais do artigo 44 do Código Penal, uma vez que, e isto é conclusão lógica, a pena restritiva de direitos não se mostra suficiente à repressão e prevenção do delito quando este possui caráter hediondo.

É preciso, também, esclarecer que a decisão do STF trata-se de julgado isolado, que contraria 15 anos de consolidada jurisprudência dos mais diversos tribunais superiores, tendo sido proferida em sede de Habeas Corpus, mediante mero controle de constitucionalidade difuso, ou seja, válida apenas para o caso concreto, e não para toda a sociedade, já que não possuiu efeitos erga omnes. Como se isso não bastasse, tal decisão de forma alguma extraiu do ordenamento jurídico pátrio a proibição a progressão de regime de pena para os autores de crimes hediondos.

Mesmo com os argumentos antes expostos, com o escopo de evitar possível insegurança jurídica, impedindo decisões que permitam, por exemplo, a substituição da pena para traficantes, deve toda a sociedade agir no intuito de pressionar os congressistas e demais forças políticas para que atuem no sentido de agilizar a tramitação do Projeto de Lei 126/03, o qual está pronto para análise pelo Plenário da Câmara de Deputados, tendo como objeto justamente a vedação a substituição de pena para os crimes insuscetíveis de liberdade provisória, como é o caso dos hediondos e equiparados.

Por fim, é preciso dirigir algumas palavras a toda sociedade, a fim de tranqüilizá-la de que o Ministério Público do Rio Grande do Sul, como bem referido pelo seu procurador-geral em artigo publicado no dia 7 de março no jornal Zero Hora, permanecerá, na pessoa de todos os seus membros, impassível na luta pelo fim da impunidade e pela manutenção da ordem jurídica, trabalhando contínua e incansavelmente na defesa dos interesses dos cidadãos, para o bem da coletividade, almejando sempre a construção de uma sociedade mais justa e igualitária como quer nossa Constituição Federal.

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