Vozes do Supremo

Entrevista: Marco Aurélio de Mello

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22 de março de 2006, 7h00

O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, é, de longe o ministro mais chato entre os seus pares. É raro um julgamento em que ele não desafie seus colegas com um ponto de vista novo ou simplesmente divergente. Mas é graças ao espírito irrequieto e aos questionamentos de Marco Aurélio que muitos pontos de vista quase fossilizados, nos últimos anos, foram revistos e hoje fazem parte da jurisprudência da Casa.

Não é por acaso que ele é o ministro mais aclamado entre os advogados, que se entusiasmam com a criatividade do juiz que não hesita em contrariar um tabu da Justiça brasileira: o de que primeiro vem a lei e depois o direito de quem reivindica. “Primeiro idealizo a solução mais justa”, declara ele. “Só depois vou buscar apoio na lei”.

Dentro de algumas semanas, o ministro acumulará com seu cargo no STF o de presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Em outras palavras: ele presidirá as eleições deste ano. O tipo de notícia que não agrada, por exemplo, ocupantes do Palácio do Planalto, habituados a um tipo de “solidariedade de classe” dos dirigentes de tribunais. Marco Aurélio saboreia com orgulho a fama de independente.

Mas nem por isso ele é imprevisível. Nem nos votos, nem na rotina. Os integrantes de seu gabinete que o digam. Ele é metódico, pontual com horários, rigoroso com a produtividade da equipe e severo em caso de falhas. Disciplinado, pratica natação, tênis e equitação. Depois dos exercícios, em sua bela casa no Setor de Mansões Dom Bosco de Brasília, aboleta-se em seu escritório particular — entupido de processos, por suposto — saca de um gravador e passa a trabalhar, sozinho, ditando votos e despachos que, depois de degravados serão minuciosamente conferidos e assinados.

Entre o Marco Aurélio provocador e o que estimula sua equipe para que o gabinete continue a encabeçar com freqüência o ranking da produtividade do STF, há um outro ser. Neste caso, ele dirige pela cidade uma potente moto Kawasaki de 1.500 cilindradas. Seu celular tem como toque de chamada o hino do Flamengo e cultiva suas amizades com devoção. Desde que o amigo não se aventure a dar palpites em seus votos, claro. Nessas ocasiões a sua peculiar jovialidade desaparece num átimo.

Contra a vontade da maioria dos ministros do STF, que temiam a exposição pública, coube a ele criar a TV Justiça. Não só o projeto, mas também a sanção da lei. Substituindo Fernando Henrique Cardoso — um dos governantes que torcia o nariz sempre que um processo de interesse do governo caia nas mãos de Marco Aurélio — ele pôde sancionar a lei que ele mesmo propôs.

Parece fácil o trajeto de alguém assim. Mas tanta originalidade tem preço. Ao ser eleito presidente do STF, em 2001, quando a velha guarda do Supremo ainda era maioria, seus colegas, em sessão administrativa aprovaram um ato institucional determinando que as nomeações para os postos de comando de secretarias feitas pelo presidente, teriam que ser referendadas pelo plenário. É que Marco Aurélio, uma vez eleito, chamou o caminhão de entulho para uma série de reformas que iria fazer e anunciou que iria demitir servidores que recebiam salário duas vezes: uma como aposentados, outra como ativos reintegrados. Um deles era o médico que também atendia, particularmente, as senhoras dos ministros.

Terminado o mandato de Marco Aurélio, a resolução que submetia os atos do presidente ao referendo do plenário foi anulada. E o médico recontratado.

Para ele, a renovação dos quadros do STF oxigena a Corte. Esse fenômeno, que equivale à troca da metade da seleção brasileira no meio de uma Copa — as eleições deste ano — joga luzes sobre os próximos jogos. O interessante é que, pelo retrospecto, jogam melhor os mais antigos de casa.

Na entrevista que se segue, a terceira de uma série com os ministros do STF, feita pelo site Consultor Jurídico para o jornal O Estado de S.Paulo, Marco Aurélio analisa a nova face do tribunal e o seu papel no Brasil contemporâneo.

Leia a entrevista

ConJur — O Supremo tem hoje uma visibilidade inédita na história do país. Como explicar o fenômeno?

Marco Aurélio — Depois de meu ingresso no Supremo já tivemos mais de onze modificações no tribunal. Foram modificações substanciais porque cada juiz tem um perfil técnico ou humanístico. O que se nota é que o Supremo Tribunal Federal saiu de uma postura mais conservadora, mais ortodoxa, para se fazer mais ágil na atuação, mais sensível aos avanços culturais, aos anseios da própria sociedade. E espero que se mostre mais preocupado com o bem estar e a visão dos contribuintes. Não o contribuinte na relação tributária, mas o cidadão, o patrocinador de todos os serviços públicos.

ConJur — O advogado-geral da União deve defender o presidente em processos eleitorais, sabendo que ele é candidato à reeleição?

Marco Aurélio — Entendo que não. Levantei essa questão no Tribunal Superior Eleitoral, mas os demais ministros concluíram que, enquanto ele não tiver a candidatura registrada, conta com a defesa da União. Mas fica a pergunta: caso ele seja multado por agir como candidato, quem pagará a multa? Nós? A nossa legislação veda a propaganda extemporânea. E o exemplo maior na República é o do presidente. Se ele escapa ou se escuda do rigor da lei com a estrutura do Estado, isso não repercute bem. Afinal, o mesmo se aplicará a todos os prefeitos e governadores que concorrerão à reeleição.


ConJur — Em termos de doutrina, que exemplo há das mudanças experimentadas pelo Supremo com a chegada dos novos ministros indicados pelo governo atual?

Marco Aurélio — Era um tabu questionar ato do Congresso praticado a partir de Regimento Interno. Batia-se sempre na mesma tecla de que não cabia a jurisdicionalização dos atos dos parlamentares, como se os regimentos das Casas não fossem documentos para ser respeitados. Como se fossem documentos que pudessem ser interpretados ao sabor das circunstâncias reinantes e os interesses das minorias pudessem ser simplesmente rasgados pelos dirigentes das comissões ou das Casas.

ConJur — Como se ali a Constituição não vigorasse?

Marco Aurélio — Como se fossem imunes. E isso tem repercussão na segurança jurídica, tem repercussão no próprio conceito da supremacia da Constituição.

ConJur — O senhor concorda que a antiga composição do STF exagerava na cautela para não contrariar o Poder Executivo?

Marco Aurélio — Talvez houvesse uma cautela maior com o Executivo e com Congresso nesses embates que envolvem o próprio Poder. Às vezes, não se tinha presente que incumbia ao Supremo a última palavra sobre temas que, de alguma forma, estivessem ligados à Constituição Federal. A última palavra sobre atos que eram praticados à margem da Constituição Federal, pouco importando o que pudesse decidir o Supremo. Hoje eu creio que essa visão — uma visão muito ortodoxa, que não atendia a Constituição Federal — já está totalmente ultrapassada. O Supremo Tribunal Federal hoje atua, e é muito bom, porque revela o funcionamento do Estado Democrático de Direito, glosando atos do Congresso, glosando atos do Executivo. Claro que há reação, mas essa reação é natural quando se tem interesses, ou melhor, visões contrariadas.

ConJur — O período autoritário acentuou a atrofia do Judiciário diante da hipertrofia do Executivo. O senhor diria que o país já atingiu o equilíbrio na relação entre os poderes?

Marco Aurélio — Eu creio que sim. Essa eqüidistância, e cada Poder atuando na área que lhe é reservada constitucionalmente, direciona o funcionamento das instituições. E todos submetidos à Constituição Federal, indistintamente.

ConJur — No sentido de participar das grandes decisões nacionais, pode-se dizer que hoje o Supremo governa?

Marco Aurélio — Não, o Supremo não governa. O Supremo é um fator de equilíbrio. Surge como um poder moderador, destinado a garantir a estabilidade e os valores nacionais, que são perenes. Cada dirigente tem seu plano de governo para chegar ao êxito. Às vezes, no anseio de tornar efetivo esse plano, atropela-se a lei. E a Constituição Federal não pode ser atropelada. Paga-se um preço por se viver em uma democracia e esse preço é módico, é o respeito irrestrito ao que está na Constituição.

ConJur — Ou seja, não é atribuição do Supremo preocupar-se com governabilidade?

Marco Aurélio — Sem dúvida, nosso compromisso não é com políticas governamentais. Nosso compromisso, como guardiões da Constituição, está na envergadura maior, que é a estabelecida pela própria Constituição. Assusta-me quando se proclama que se deve interpretar as leis visando homenagear a governabilidade. A governabilidade é que tem que se adaptar à legislação existente. Não vamos inverter valores. Isso é perigoso. Porque senão passamos a autorizar quaisquer meios para justificar supostos fins.

ConJur — Foi a Constituição de 1988 que possibilitou a ampliação do papel do Supremo? Caso concorde, que mudanças levaram a isso?

Marco Aurélio — Houve uma ênfase maior na atuação do Supremo, principalmente no campo do processo objetivo — o controle concentrado de constitucionalidade onde não está envolvido o direito deste ou daquele cidadão, mas de toda a sociedade. E nesse ponto é importante apontar a abertura para que novos setores pudessem ajuizar junto ao Supremo a Ação Direta de Inconstitucionalidade ou a Declaratória de Constitucionalidade. Uma abertura muito salutar. O controle concentrado pré-88 era monopólio do procurador-geral da República. Só ele podia questionar se uma lei ou ato era inconstitucional: um agente que poderia ser destituído do cargo a qualquer momento pelo presidente da República. Um levantamento mostra que foram poucas as representações contra lei federal no período anterior a 1988. Quase todas eram contra leis estaduais.

ConJur — Qual sua expectativa em relação ao Mandado de Injunção?

Marco Aurélio — Espero que seja recuperado pelo Supremo, como instrumento destinado a realizar os direitos previstos na Constituição, mas que ainda dependem da regulamentação pelo Congresso. Passados 17 anos da vigência da Constituição Federal, ainda há muito o que regulamentar nessa Carta — que é pouquíssimo amada, já que foi emendada mais de 50 vezes.


ConJur — O STF já avançou um pouco em relação ao Mandado de Injunção, não?

Marco Aurélio — Sim. Já flexibilizamos a visão anterior de não se admitir conseqüência prática ao Mandado de Injunção. No primeiro momento, tínhamos uma ação puramente declaratória. O impetrante ganhava tão somente uma certidão de que o Congresso encontrava-se omisso. Ora, pela própria nomenclatura, o desfecho não deveria ser esse. A ação é mandamental. Visa, justamente, afastar as conseqüências nefastas da inércia do Congresso, que sabe da existência de um direito mas não viabiliza o exercido. Com a postura mais ativa do Supremo, é certo que a lei, posteriormente, poderá rever os parâmetros divisados pela Justiça. Mas já não viveremos esse estágio meramente lírico, simplesmente formal.

ConJur — Com essa mudança, o Supremo se permitiu regular o caso concreto em questão, enquanto o direito não é regulamentado?

Marco Aurélio — É isso. Mas de uma forma que eu diria até geradora de perplexidade, porque chamou a si a declaração de inércia do Congresso. Mas não se partiu de imediato para a fixação do que eu denomino como parâmetros indispensáveis para o exercício de direito. Seria preciso viabilizar a entrada do cidadão na primeira instância para que ela faça o que é de maior importância, ou seja, empreste eficácia ao preceito constitucional. Agora, com a nova composição do STF, eu não tenho a menor dúvida de que o Supremo baterá o martelo e, talvez, por unanimidade de votos, no sentido de emprestar uma eficácia maior ao Mandado de Injunção, o que será muito bom.

ConJur — A renovação de quadros no Supremo, independentemente do perfil individual dos novos ministros, trouxe uma…

Marco Aurélio — Oxigenação. Trouxe, sem dúvida alguma. E não vejo risco de que, com a formação de uma maioria indicada pelo atual governo possa haver qualquer tipo de atrelamento. Repito o que disse quando estavam para ser nomeados os ministros Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa. Não se agradece a escolha com a toga. Ou seja, a cadeira é vitalícia justamente para que aquele que a ocupe exerça o ofício com eqüidistância, com absoluta independência. O ministro do Supremo, como juiz, não tem entre suas funções a de ser relações públicas. Muito menos a de relações públicas com o Poder.

ConJur — Com essa renovação, o senhor acredita que velhas bandeiras defendidas solitariamente pelo senhor, como a oposição à prisão do depositário infiel, à prisão obrigatória para apelação ou mesmo a questão do estudo da violência presumida, possam, como ocorreu com a questão da progressão de pena nos crimes hediondos, experimentar uma evolução?

Marco Aurélio — Podem. Mas passo a passo. Por exemplo, eu não tinha a menor dúvida de que prevaleceria a ótica da inconstitucionalidade da Lei 8.072/90, que inviabilizava a progressão no cumprimento da pena. Porque há aí uma garantia constitucional, que é a garantia da individualização da pena. Interessa à própria sociedade. Se o preso não vê motivo para conquistar a progressão, ele não se ressocializa. É devolvido à sociedade depois sem as condições necessárias para isso. O problema de recorrer em liberdade é consagrado na Constituição e atende à ordem natural das coisas. Não se deve presumir que todos sejam salafrários até prova contrária. Deve-se presumir a conduta segundo ditames próprios da convivência social. Manter preso quem ainda recorre compele o recorrente a adotar uma postura até mesmo contrária ao que é sustentado nas razões do recurso, apresentando-se para começar a cumprir a pena. E se for reformada a decisão, quem devolverá a ele a liberdade? Eu creio que algum dia se partirá para a responsabilidade do Estado com o dever de indenizar. Agora, evidentemente, não se harmoniza com o princípio da não culpabilidade a exigência de o condenado se apresentar para cumprir a pena para poder recorrer. É um pressuposto de recorribilidade dos mais extravagantes. Um pressuposto contrário ao que seria desejável, ou que decorre da própria Constituição Federal. A lei tem que estar harmonizada com a Constituição, não a Constituição com a lei.

ConJur — O Brasil aperfeiçoa suas normas mais com a produção de novas leis ou pela evolução da interpretação dos tribunais?

Marco Aurélio — Mais importante que as leis em si, é a observância dessas leis. E a existência de um mecanismo que as torne efetivas. Não precisamos de mais leis. Muito menos de Constituinte, de uma nova Constituição. O que precisamos é de homens, principalmente de homens públicos, que observem as leis existentes e que se busque tirar dessas leis existentes a maior eficácia possível. A interpretação é um ato de vontade, mas é um ato de vontade direcionado a buscar o que está na legislação.


ConJur — O senhor sente que a população confia no Supremo?

Marco Aurélio — Eu diria que hoje a sociedade está mais atenta para o funcionamento das instituições, para o desempenho do ofício pelos homens públicos. Nós temos uma imprensa que bem informa, temos um Ministério Público e temos a própria sociedade implicitamente cobrando uma atuação da imprensa, uma atuação do Ministério Público e uma atuação do Judiciário. Isso é salutar. Isso eu pensaria em termos de dias melhores, em termos de avanço cultural.

ConJur — Como é que o senhor examina o fato de o Supremo ter de rever atos do Congresso tantas vezes como tem ocorrido?

Marco Aurélio — O objetivo do Congresso é o melhor possível. É levantar dados que possam, de alguma forma, respaldar a atuação do Ministério Público. E às vezes há um atropelo de franquias constitucionais, garantias constitucionais. Exemplo marcante é esse em que se intima alguém envolvido como acusado, que tem contra si a suposição de uma prática delituosa, e se pretende que a pessoa abra mão do direito de não se auto-incriminar. A Constituição Federal garante ao acusado o direito de permanecer calado. Se ele pode permanecer calado, ele não pode ser compelido, sob pena de ser processado criminalmente, a dizer a verdade. Ou seja, a CPI não tem poderes superiores àqueles que estão previstos quanto à atuação do próprio Judiciário. O poder é de investigação, mas observadas as balizas legais e constitucionais.

ConJur — Essa expressão “não ser obrigado a dizer a verdade” não passa para a população a idéia de que o Supremo estimula ou admite a mentira como instrumento válido?

Marco Aurélio — O Supremo não estimula, apenas afasta a obrigação de o depoente se incriminar. Lançar dados que não correspondem à verdade é uma opção do depoente. Uma atitude que pode se voltar contra ele. Mas ninguém pode obrigá-lo a se incriminar, muito menos dar voz de prisão por esse motivo. É difícil para o leigo compreender isso. Geralmente se vê o ato do Supremo como uma licença absoluta para mentir. Não há esse objetivo. As situações são diversas e cada qual deve colaborar com as instituições, com as CPIs, com o Ministério Público, com o Judiciário para esclarecer os fatos.

ConJur — Dentre os instrumentos que surgiram depois da Constituição de 1988: ADI, ADC, ADPF, o efeito vinculante em situações múltiplas, qual o senhor elegeria como carro-chefe das mudanças?

Marco Aurélio — Como carro-chefe das mudanças, nós teríamos, em primeiro lugar, o Mandado de Injunção. Se não tivesse sido esvaziado como foi, claro. Esse instrumento é da maior valia para tornar concretos os direitos constitucionais. Vivemos no Supremo uma época em que a atenção está sendo dada ao que denomino como macro-processo. Que é o processo que permite o pronunciamento do Supremo com eficácia maior e ampla, eficácia que extravasa os limites de uma relação jurídica específica entre duas partes. Isso tem um efeito prático muito bom, que é o de evitar milhares e milhares de ações. Afinal, qual é o objetivo maior da jurisdição? É o de restabelecer a paz social momentaneamente abalada. Se podemos evitar conflitos que levem a esse abalo com uma resposta rápida do Supremo, devemos fazê-lo. Daí a flexibilidade maior na admissão dessas ações a que você se referiu: ADPF, Ação Declaratória de Constitucionalidade e a Ação Direta de Inconstitucionalidade. Antes, o Supremo era resistente à aceitação mais ampla dessas ações. Cito o exemplo das associações de classe, das quais se exigia uma representatividade maior. Hoje em dia, não: buscamos, como se diz numa gíria bem carioca, “abrir o embrulho”. Atuamos de forma bem mais ostensiva do que anteriormente. Isso é muito bom.

ConJur — Dentre os fatores da maior visibilidade do Supremo, temos a TV Justiça, implantada em sua gestão e com a resistência de outros ministros. O senhor acha que a TV Justiça internamente já foi totalmente absorvida?

Marco Aurélio — Quando surgiu a idéia, recebi sinalizações no sentido de não tocar o projeto. Mas desde o primeiro dia soube que seria um projeto de grande êxito. Tanto que da apresentação à Câmara dos Deputados, passando pela aprovação da lei, até a entrada no ar da TV Justiça, tivemos um interregno de cerca de seis meses. Houve resistências no âmbito do próprio Supremo. Lembro que quase ao término do meu mandato, com uns meses de funcionamento da TV Justiça, um colega propôs, inclusive, que formalizássemos uma vedação a que houvesse transmissão direta das sessões do plenário. Pedi um crédito de confiança. Estava com viagem marcada para o exterior e apelei para que naquela semana não editássemos qualquer publicação. Quando retornei da viagem, a visão já era outra. E digo a você que hoje a TV Justiça é o controle externo do Judiciário com a maior eficiência possível. É também uma tevê educativa. Quantas e quantas pessoas fora da área do Direito acompanham e comentam as transmissões da TV Justiça. Mas a resistência foi grande. Tanto que, quando inaugurei a TV Justiça, apenas compareceu meu vice-presidente. Talvez até pela ligação pessoal, porque é meu compadre. E aí citei Padre Antonio Vieira que, em sermão, disse que o prêmio pelo bom ato não está no aplauso, não está no reconhecimento dos concidadãos, mas sim na prática do próprio boato. Hoje a TV Justiça é algo irreversível e que surgiu numa época muito propícia.


ConJur — Foi o senhor, como presidente da República, que sancionou a lei da criação da TV.

Marco Aurélio — Foi uma feliz coincidência. Eu estava para substituir o presidente Fernando Henrique Cardoso, que viajaria para o exterior, e sabia que o Senado já havia aprovado o projeto que saíra da Câmara. Perguntei à sua Excelência qual seria a sua concepção, se no sentido do veto ou da sanção. Porque se fosse no sentido da sanção, eu pediria a ele que me permitisse o ato. Ele naquele jargão espontâneo disse: “Marco Aurélio, veto e sanção são seus”. E eu pude, em ato solene, no Palácio do Planalto, consagrar a criação da TV Justiça.

ConJur — Falando dos diversos fatores que influíram bastante no novo formato do Supremo. E sem dúvida nenhuma as pessoas que o integram são fatores importantes nesse sentido. Nós estamos na expectativa da possível aposentadoria do ministro Pertence. Como é que o senhor definiria a contribuição do ministro Pertence ao que é o Supremo hoje?

Marco Aurélio — Uma contribuição efetiva, porque além de ser um juiz técnico, é um juiz muito dedicado em termos da trivalência da própria jurisprudência, da própria doutrina do Supremo. Vive intensamente judicante e empresta às decisões proferidas uma carga humanística satisfatória.

ConJur — A contribuição do ministro Celso é…

Marco Aurélio — Em todos os setores do Direito. As contribuições do ministro Celso são muito, mas muito efetivas. É um estudioso do Direito e busca sempre tornar prevalecente o Direito como ele é, visando a proteção do cidadão. Eu não destaco nada na área penal, eu destaco como um todo. Sou um entusiasta da atuação do ministro Celso de Mello. Diria que ele tem uma bagagem à mercê de memória fotográfica insuplantável. É um dos integrantes do Supremo nesses últimos anos, considerados até mesmo aqueles com que me relacionei, de maior bagagem jurídica.

ConJur — Ele tem um papel importante na área dos direitos fundamentais, na questão da imprensa.

Marco Aurélio — Sem dúvida, no campo da liberdade de expressão. A preservação da dignidade do homem, pouco importando tenha ele claudicado ou não. A prevalência, como eu disse, das garantias, das franquias constitucionais.

ConJur — Em oposição a esse perfil mais social, para não dizer socialista, dos ministros Pertence e Celso de Mello, tivemos uma pessoa que teve uma passagem marcante de 27 anos no Supremo e que sempre teve uma atuação marcada pelo formalismo e pela resistência a mudanças, que foi o ministro Moreira Alves. O senhor concorda com essa análise. E, se não, como é que o senhor vê o papel de Moreira Alves na atual doutrina do STF?

Marco Aurélio — Em primeiro lugar, eu não me atrevo a definir quem tem o perfil mais socialista, se o ministro Pertence ou o ministro Celso. Em segundo lugar, nós devemos compreender o colegiado. O que é o colegiado? É o somatório de forças distintas para chegar-se ao equilíbrio. E aí o ministro Moreira Alves teve um papel que foi exercido segundo a sua concepção do Direito e do Judiciário e também um momento de vida. A evolução e também as modificações são constantes. Eu não posso deixar de reconhecer que o ministro Moreira Alves se mostrou verdadeiro estivador do Direito. Uma capacidade de trabalho extraordinária, uma participação nos julgamentos inexcedível e dedicação. Dedicação exemplar mostrando-se um juiz que, segundo a sua concepção, sempre buscou a prevalência da ordem jurídica.

ConJur — Ele foi dos que mais defendeu a manutenção da antiga ordem…

Marco Aurélio — Há quem diga que ele de certa forma segurou um pouco o Supremo, considerados os novos ares constitucionais. E aí, ele capitaneou o esvaziamento, por exemplo, e talvez ele hoje reconheça que não foi o melhor, do Mandado de Injunção.

ConJur — Ao lado do ministro Néri, o relator.

Marco Aurélio — O ministro Néri naquela visão também ortodoxa de sua Excelência. Outro juiz exemplar, eu não me canso de dizer isso.

ConJur — Outra bandeira muito forte do ministro Moreira Alves era a prisão civil por dívida.

Marco Aurélio — Há quem diga que no caso da alienação fiduciária ele foi o autor intelectual da lei, do decreto-lei que viabilizou essa prisão. A prisão por dívida é algo, ao meu ver, que já deveria ter sido totalmente afastada do cenário jurídico. E vem da época do Direito Romano, que quando o devedor não tinha condições de honrar a obrigação ele era praticamente entregue ao credor, que dispunha da própria vida do devedor. Se nós analisarmos o pacto de São José da Costa Rica, vamos ver que a única prisão decorrente de dívida que continua sendo contemplada, e o Brasil subscreveu esse pacto e o pacto, portanto derrubou a legislação ordinária a respeito da matéria, é a decorrente do descumprimento de prestação alimentícia. Eu não compreendo, por exemplo, que se adote ameaça de prisão como um fator coercitivo para ter-se a liquidação de débitos. Especialmente débitos com o Estado.


ConJur — Não seria um truque do poder econômico, em especial do setor financeiro na venda de automóveis, já que o único caso em que…

Marco Aurélio — Isso se mostrou indispensável aos financiamentos, ao acesso da população menos abastada aos bens de consumo, aos automóveis. Mas aí, eu penso que nós precisamos sopesar valores.

ConJur — Voltando à análise da contribuição dos ministros à formatação atual do Supremo, como é que o senhor examinaria a contribuição dada pelo ministro Paulo Brossard?

Marco Aurélio — Doutor Paulo Brossard é um homem que tem história. Principalmente considerando aquele período de exceção em que vivemos. E integrou o Tribunal e buscou no Tribunal ser, não um político em si, mas um juiz. O ministro Brossard buscou levar ao Tribunal o magistério. Deu uma colaboração efetiva como também deram outros juízes, e aí eu citaria o ministro Galotti, eu citaria o ministro Célio Borja. E às vezes eu tenho realmente saudade, sem demérito para a composição atual porque há aspectos positivos, sem dúvida alguma. Eu tenho saudade daquela composição que eu encontrei no Supremo em 1990.

ConJur — Onde tínhamos basicamente uma predominância de ministros da Constituição anterior. O que hoje já não acontece mais.

Marco Aurélio — Sem dúvida, sem dúvida há ministros que teriam sido nomeados ainda, naquele período que nós vivemos, revolucionário, mas que buscaram atuar com eqüidistância, considerado o poder central.

ConJur — O senhor diria que o apego natural dos ministros que chegaram ao Supremo e trabalharam durante a maior parte do tempo com a Constituição anterior à Carta de 69, a Emenda nº 1, fez com que esses ministros egressos do tempo anterior resistissem um pouco aos termos da Carta de 88?

Marco Aurélio — A resistência, se ocorrida, foi uma resistência relativa. E, evidentemente, é natural que o homem repita atos anteriores, que se acostume com um certo enfoque. E muitos realmente atuaram julgando a partir da Carta de 69. E isso talvez tenha exigido um período maior de adaptação aos novos ares constitucionais, ares democráticos.

ConJur — Como o senhor analisa o papel de Gilmar Mendes?

Marco Aurélio — Um grande constitucionalista. Está deixando sua marca na doutrina da Corte. Com imensa bagagem e domínio do Direito Comparado, fez cursos importantes de pós-graduação na Alemanha. Tem participação ativa nas decisões da Casa. Tem preocupação com os efeitos do Controle Concentrado, que eu denomino como macro-processo — aquele que, sem ter partes propriamente ditas, afeta a todos indistintamente. O ministro se revelou um grande especialista no plenário. Sua contribuição é muito positiva e ele tem muito a dar ao Tribunal.

ConJur — Mais recentemente houve a entrada dos novos ministros. E um que chamou atenção especial da comunidade jurídica foi o ministro Cezar Peluso. Como é que o senhor vê esse personagem, um juiz de carreira, um dos poucos hoje no Supremo, como o senhor define a contribuição dele?

Marco Aurélio — A contribuição a partir da prática cotidiana, do ofício judicante, do domínio do Direito em diversas áreas. Eu volto àquela tecla que acionei a pouco, o colegiado é um equilíbrio de forças e cada qual deve dar sua colaboração. O ministro Cezar Peluso também deu a sua colaboração segundo a formação dele própria e segundo a experiência como julgador.

ConJur — E quanto a Carlos Britto, Eros Grau e Joaquim Barbosa?

Marco Aurélio — Carlos Britto, da mesma forma, traz para o Judiciário uma visão toda própria da observância do Direito. E uma visão que eu diria calcada acima de tudo no humanismo. Muito embora na área penal ele seja um pouco rigoroso, pelo menos no meu modo de perceber os casos submetidos a julgamento.

ConJur — Mais rigoroso que a ministra Ellen?

Marco Aurélio — Pois é, a ministra Ellen, é tida como muito dura. Eu creio que estão no mesmo patamar em termos de legislação penal. Mas é preciso que se compreenda que a lei é feita para os homens, não os homens para as leis. Dura é a legislação em si, mas o juiz não precisa ser um algoz. Ao contrário, deve humanizar a própria lei. O ministro Joaquim Barbosa traz ao Supremo o que ele angariou em termos de atuação como procurador da República e dá a sua colaboração. O ministro Eros Grau, a experiência na área, acima de tudo do Direito Econômico. E vamos aí caminhando para o citado equilíbrio.

ConJur — E por fim, qual a contribuição ao STF de hoje do ministro Marco Aurélio?

Marco Aurélio — A contribuição no sentido de servir aos semelhantes, sem reserva mental, buscando o melhor. E percebendo que o aprimoramento é constante e que a Justiça é obra do homem, e enquanto obra do homem, para repetir frase do Eliézer Rosa, juiz do Rio de Janeiro, será passível de falha. Penso que terei que buscar sempre o cumprimento do dever, pouco importando a repercussão que meus atos tenham juntado aos poderosos, principalmente, e junto à própria sociedade. Preocupado sim, com o que possa pensar o cidadão a respeito desses mesmos atos. Agora, eu tive um episódio que me levou a convocar uma entrevista coletiva e esclarecer um ato proferido no caso do nepotismo. Em 1997, na ADI 1.521, prolatei um voto com tintas fortes, um voto até mesmo duro, cáustico, condenando o nepotismo, o citado “Q.I.”, ou “Quem Indica” para cargos que são de confiança. E isso me valeu à época até mesmo o rompimento com o presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e se chegou ao ponto de se suspender uma condecoração que eu receberia do Judiciário gaúcho, mais especificamente do Judiciário Eleitoral. O que houve agora [no julgamento da resolução do CNJ que regulamentou a proibição do nepotismo] foi algo muito simples. Eu busquei definir a natureza jurídica do ato do Conselho Nacional de Justiça. Para mim, um ato administrativo praticado a partir da impessoalidade, da moralidade, consagrados como princípios base da administração. Mas para a maioria um ato normativo abstrato autônomo. Então, se eu tenho um ato como administrativo, não cabe o Controle Concentrado de constitucionalidade. Se eu tenho como ato normativo, não reconheço ao Conselho Nacional de Justiça o poder de normatizar, de substituir o Congresso Nacional. Mas eu atuei sem me importar com incompreensões, e busquei posteriormente, porque devo satisfação à sociedade, elucidar o meu ponto de vista. Enquanto eu tiver a toga sobre os ombros continuarei a atuar de acordo com a minha concepção do Direito, de acordo com a minha concepção da Constituição Federal, de acordo com a minha formação técnica e humanística.

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