Moralização autoritária

Se parente em tribunal é imoral, por que o quinto também não é?

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17 de março de 2006, 20h20

Decisão judicial não se discute, se cumpre. Mas, por ser o STF um poder político de governo de Estado, não está imune às críticas. O Supremo Tribunal Federal autorizou, a partir de interpretação do artigo 37 da Constituição Federal, que trata da moralidade dos atos administrativos, o CNJ a expedir resoluções administrativas com força normativa, inclusive para os Tribunais estaduais.

À exceção do ministro Marco Aurélio, a Suprema Corte assentou que o princípio da moralidade dos atos administrativos transcende às cláusulas pétreas da própria Constituição Federal que tratam do regime federativo e das autonomias constitucionais administrativas estaduais.

Trata-se de uma visão instrumental e pragmática do direito que sedimenta um poder supra-constitucional que põe sob controle direto as Justiças estaduais e por via de conseqüência os poderes legislativos estaduais, alcançando, de forma indireta, o próprio Congresso Nacional. É o instrumentalismo recorrente no país, desta vez, sob o domínio de um moralismo totalitário da chamada “esquerda democrática do Judiciário”, liderada pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, e que tomou conta da AMB, Anamatra, Ajufe e cuja semente veio importada da Espanha e plantada em São Paulo pela AJD em 1993: o que importa é o resultado e não a forma pela qual este é alcançado.

Esse moralismo maniqueísta da AJD, da AMB e Anamatra é o mesmo moralismo fascista/maniqueísta de August Comte, de Jânio Quadros, da Revolução de 1964, do partido que está no governo do país, de Bush, sem tirar nem pôr. Não é por acaso que o jornal O Estado de S. Paulo, em editorial, aplaude as decisões do STF quando lhe convém e incentiva a nova iniciativa moralizadora do CNJ ao tratar dos “supersalários da Justiça” para, dessa maneira, mais uma vez generalizando o ataque, colocar todas as justiças estaduais sob suspeita.

É a velha tática de desmoralizar para domesticar. Confira-se a contribuição que dá o juiz federal Erik Frederico Gramstrup, presidente da Ajufesp — Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul para essa cruzada moralizadora: “se o STF proclamou que o Conselho Nacional de Justiça estava atuando nos limites de suas atribuições — isto é, que ele não estava legislando, nem se arrogando competências do Congresso Nacional – isso significa que a proibição de nepotismo vale para todos os Poderes e para o Ministério Público” (Revista Consultor Jurídico, 17/02/06).

Veja a que ponto nós estamos chegando nessa loucura moralista saneadora: o CNJ acima do próprio STF. Não irá demorar o momento que o próprio STF deverá se julgado administrativamente pelo CNJ.

As editorias dos grandes jornais sabem que esse moralismo faccioso e por isso mesmo incoerente e arbitrário não pretende mais que domesticar as justiças estaduais e dessa forma impedir, sobretudo, que decisões locais combatam, por exemplo, a prática dos juros extorsivos que chegam a 225%, permitido pelo Conselho Monetário Nacional.

Soa até como má-fé quando O Estado de S. Paulo fala em “farra dos salários nos escalões superiores” do Judiciário, mas não fala, com a mesma ênfase, da farra dos lucros financeiros obtidos pelos bancos, afirmando de forma genérica e facciosa que existem entre 2 e 3 mil juízes que “estariam recebendo muito acima dos R$ 24,5 mil fixados como teto salarial do funcionalismo público.

É curioso como esse moralismo da direita liberal se une perfeitamente ao moralismo dessa “esquerda democrática”, levando o juiz Marcelo Semmer, presidente da AJD — Associação de Juízes para a Democracia, a atacar, sem o menor pudor ético, a pessoa de uma desembargadora de Alagoas e afirmar que “presidentes e corregedores perfilaram-se unidos bradando pela ilegalidade da ação do CNJ, enquanto desembargadores concederam liminares pelo país afora em causas de interesses de seus colegas próximos”(Folha de S. Paulo, 7/03/06, e Revista Consultor Jurídico).

Ou então como disse o juiz Rodrigo Collaço, que é presidente da AMB, ao se referir ao fato de que desembargadores mineiros estariam escondendo as demissões de parentes com a finalidade de protegê-los perante a opinião pública. Diz o moralista: “O Judiciário de Minas trabalhou em silêncio” (Folha de S. Paulo, 12/03/06).

Para Collaço não basta a exoneração. É preciso mais: a decapitação em praça pública. Para os juízes Collaço e Semmer, tanto quanto para o Estadão, os escalões superiores dos tribunais estaduais, já que generalizam, são formados por homens imorais, não trabalham, ganham supersalários e ainda decidem em favor de parentes e amigos próximos. Os tribunais estaduais, portanto, estarão sujeitos doravante a essa medieval inquisição patrocinada pela AJD, AMB, Anamatra, apoiada pela Ajufe.

O CNJ é e será apenas o instrumento para o combate sumário às imoralidades das justiças estaduais. Que o Estadão finja que não sabe, por exemplo, que o artigo 37, II, da Constituição, é expresso em permitir a nomeação para função pública sem concurso público, é compreensível. Mas que essas associações de juízes desconheçam é algo incomensuravelmente grave.

E mais: desconhecem o princípio elementar hermenêutico, segundo o qual “onde a lei não distingue, não é lícito ao intérprete fazê-lo”, posto que se o fizer, deixa de ser intérprete e passa a ser um julgador arbitrário.

A esperança de que a nossa Suprema Corte de Justiça olhasse o CNJ, não com os olhos moralistas e maniqueístas dessas associações, mas com os olhos pregados no texto expresso da Constituição Federal, foi-se com o vento. Pelo menos, então, que se tomasse uma decisão casuística como impõe o devido processo legal e fosse determinado ao CNJ que investigasse os abusos e ilegalidades cometidas, caso a caso, punindo-as publicamente, mas não dessa forma, expondo à execração pública, de forma genérica, as Justiças estaduais.

Mas esqueçamos a Constituição Federal e pensemos com o falso moralismo dessa “esquerda democrática” que se alinha à direita liberal. Se a nomeação de parente é imoral, não haveria o STF e CNJ de proclamar de forma coerente e isonômica que as nomeações de procuradores de Justiça e advogados para os tribunais do país, sem concurso público, também não configura caso de imoralidade administrativa?

Aliás, as próprias nomeações para o STJ e STF e CNJ não seriam tão imorais quanto nomear parente, se o próprio Estadão, em editorial, afirmou que “nas quatro indicações que já realizou para o STF, o presidente Lula não seguiu critérios doutrinários. Cedendo a interesses políticos, escolheu nomes sem maior expressão intelectual e com orientações doutrinárias distintas. Com opiniões discrepantes sobre quase todas as matérias, os votos desses ministros têm sido conflitantes, o que torna as decisões da corte imprevisíveis, disseminando com isso a incerteza jurídica no país. Recentemente, um desses ministros, após votar num processo rumoroso, voltou atrás e mudou radicalmente o teor de seu voto. Uma decisão alterada assim justifica a opinião de que os ministros indicados por Lula colocam a política à frente do Direito, minando a confiança da sociedade no STF”( 11/01/06).

Quando se desconhece a diferença entre corporativismo e princípio ético deontológico, dá nisso. Essas associações de juízes que instrumentalizam o direito para atingir os seus fins ideológicos são exemplos de como se pode sair facilmente do princípio da legalidade estrita para, entrando no túnel do tempo, freqüentar uma choperia da Bavária, na década de 20, do século passado.

Encerro este artigo dizendo que não temo esse patrulhamento pequeno-burguês e me solidarizo com todos os colegas desembargadores e seus respectivos parentes que foram sumária e publicamente condenados, só pelo fato de serem desembargadores e parentes, sendo lhes negado o elementar direito de fazerem valer, por meio do processo legal, o princípio constitucional de que todos nós somos íntegros e honestos até prova em contrário.

Este artigo é também uma forma de homenagear a coragem do ministro Marco Aurélio. Por fim, é um brado de alerta a todos os juízes estaduais contra essa autofagia moralizadora desencadeada por essas associações de juízes. Abusos e ilegalidades, nós juízes, promotores e advogados sabemos que se pune casuisticamente dentro do devido processo legal e sabemos ainda que muito menos se revoga a letra da Constituição por meio de simples resolução.

Resistir é preciso. Seremos chamados de reacionários com certeza. Não importa. Para a França invadida, os maquis também eram tratados pelos nazistas como reacionários. Da minha parte, depois de 29 anos de associado da AMB, pedi minha exclusão pela simples razão de que pago mensalidade para ser defendido e não para ver vilipendiada a honra e dignidade da minha própria profissão.

Quanto à AJD, desde 1993, quando desembarcou em São Paulo vinda da Espanha, a tenho por entidade autoritária, ansiosa por chegar ao poder pelo poder, basta verificar quantos deles estão integrando as mais importantes e decisivas comissões do Tribunal de Justiça de São Paulo. Observe-se: foram nomeados pela Presidência, muitos por meio de decisões do Órgão Especial e dando mais um exemplo dessa ética moralista, um dos nomeados, sócio da AJD, está propondo a extinção do próprio Órgão Especial que o nomeou.

É mais ou menos parecida com a coerência doutrinária do jovem e promissor constitucionalista de São Paulo, Alexandre de Moraes, que com todo o seu saber jurídico combateu veementemente a instalação no Brasil de um CNJ, mas, no entanto, hoje é um dos seus mais proeminentes membros. É essa a ética moralizadora que vale.

O autoritarismo está explícito, claro e inequívoco em regra fundamental do estatuto social da AJD. É só conferir no site da entidade (artigo 2º, item 3, do Estatuto Social). Aliás, o atual presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo é vice-presidente da AMB e sócio da AJD, tendo sido um dos seus presidentes. Peço só que não venham me dizer que o sócio da AJD ou da AMB não pensa necessariamente como os seus presidentes. Pode não pensar, mas deveria ter o dever ético deontológico de se retirar dessas duas associações que tanto mal tem causado às magistraturas estaduais, ou no mínimo, repudiar publicamente essa forma autoritária e sumária de combater imoralidades no Judiciário.

Leia-se o que dizem hipocritamente os itens 3 e 8, do artigo 2º, do Estatuto Social da AJD: “3) A defesa da independência do Poder Judiciário não só perante os demais poderes como também perante grupos de qualquer natureza, internos ou externos à magistratura”; “8) A promoção e a defesa dos princípios da democracia pluralista, bem como a difusão da cultura jurídica democrática”. Em São Paulo, desde 1993, existe lei proibindo a nomeação de parentes de juízes.

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