Tocaia no shopping

Tocaia no Shopping: quando o Fisco se torna cangaceiro

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16 de março de 2006, 10h49

Noticia-se que a Receita Federal pretende abordar consumidores para que apresentem nota fiscal caso adquiram produtos importados. Diz-se que uma autoridade fazendária teria afirmado que pode ser apreendida a mercadoria importada se o consumidor “não apresentar ao fiscal nota no ato da compra ou após, quando estiver saindo do shopping”. Teria a pessoa física 24 horas para apresentar a nota, sob pena de perder a mercadoria.

Para tentar justificar essa ameaça, invoca o servidor público a Lei 4.502, de 30 de novembro de 1964, sancionada pelo ditador da época, Castelo Branco.

Todavia, em nenhum dos 127 artigos dessa lei, que regula o antigo imposto de consumo (atual IPI), encontra-se a norma que sustenta a afirmação feita pela autoridade. Basta que alguém se dê ao trabalho de ler o texto integral da lei para ver que isso ali não existe.

A norma que disso mais se aproxima é o artigo 87, que aqui transcrevo:

“Art . 87. Incorre na pena de perda da mercadoria o proprietário de produtos de procedência estrangeira, encontrados fora da zona fiscal aduaneira, em qualquer situação ou lugar, nos seguintes casos:

I – quando o produto, tributado ou não, tiver sido introduzido clandestinamente no país ou importado irregular ou fraudulentamente;

II – quando o produto, sujeito ao imposto de consumo, estiver desacompanhado da nota de importação ou de leilão, se em poder do estabelecimento importador ou arrematante, ou de nota fiscal emitida com obediência a todas as exigências desta lei, se em poder de outros estabelecimentos ou pessoas, ou ainda, quando estiver acompanhado de nota fiscal emitida por firma inexistente.”

A Lei 4.502 traz obrigações apenas para os contribuintes do imposto de consumo, atual IPI, ou seja, os industriais e a eles equiparados, inclusive os importadores. Não cria nenhuma obrigação para que uma pessoa física esteja de posse de nota fiscal acompanhando o produto importado que tenha adquirido.

Veja-se o que diz o seu artigo 47:

“Art . 47. É obrigatória a emissão de nota fiscal em todas as operações tributáveis e ainda naquelas não tributáveis que importem em saída de produtos tributados ou isentos dos estabelecimentos produtores ou dos estabelecimentos comerciais atacadistas.”

Quando a Lei 4.502 fala no exercício da fiscalização sobre as “pessoas” cuida apenas dos contribuintes do imposto do consumo, ou seja, dos importadores, fabricantes, industriais e comerciantes. Vejamos o que diz o artigo 94:

“Art . 94. A fiscalização será exercida sobre todas as pessoas naturais ou jurídicas, contribuintes ou não, que forem sujeitos passivos de obrigações tributárias previstas na legislação do imposto de consumo, inclusive sobre as que gozarem de imunidade tributária ou de isenção de caráter pessoal.

Parágrafo único – As pessoas a que se refere este artigo exibirão aos agentes fiscalizadores, sempre que exigido, os produtos, os livros fiscais e comerciais e todos os documentos ou papéis, em uso ou já arquivados, que forem julgados necessários à fiscalização e lhes franquearão os seus estabelecimentos, depósitos, dependências e móveis, a qualquer hora do dia ou da noite, se à noite estiverem funcionando.”

A lei aplica-se, pois, apenas, única e exclusivamente aos “sujeitos passivos de obrigações tributárias previstas na legislação do imposto de consumo”, não aos consumidores…

Não compete ao auditor da Receita Federal exigir notas fiscais de pessoas físicas. Na notícia, encontra-se entre aspas a afirmação de que se uma pessoa “não apresentar ao fiscal nota no ato da compra ou após, quando estiver saindo do shopping”, estaria sujeita a perder a mercadoria. O texto entre aspas indica que se trata de afirmação que a fonte fez exatamente dessa forma.

Ora, se não houver nota fiscal “no ato da compra”, quem pode sofrer a penalidade é o vendedor, a loja, o comerciante, pois esse ato termina a partir do momento em que a mercadoria já está na posse do comprador. Se o tal “ato da compra” está sendo presenciado pelo fiscal, ele tem o dever de impor a pena prevista em lei ao comerciante, não ao consumidor. E mais: está configurado o flagrante do crime de sonegação, com o que a polícia deve ser acionada.

Se o consumidor “estiver saindo do shopping”, a abordagem feita pelo fiscal será ilegal, pois não se sujeita o particular a esse tipo de fiscalização. O direito de ir e vir é cláusula pétrea da Constituição. O fiscal estará assim, cometendo crime de abuso de autoridade. Não se permite a qualquer fiscal, salvo mandado judicial específico, revistar pessoas. Mesmo a “revista” feita por policiais a transeuntes, há de ser fundamentada, quando houver suspeita de prática de crime. No caso, se houver crime, ele será o de sonegação, praticado pelo comerciante, não pelo consumidor.

O crime de abuso de autoridade é definido na Lei 4.898, de 9 de dezembro de 1965, aliás sancionada pelo mesmo ditador já mencionado. Talvez por isso há quem diga que a ditadura militar respeitava mais os direitos do contribuinte do que a atual ditadura, a ditadura fiscalista ou ditadura dos “burrocratas”.

A Lei 4.898 diz, em seu artigo 3º, letra “a”, que “Constitui abuso de autoridade qualquer atentado: a) à liberdade de locomoção”. Pois é justamente isso que acontece quando um funcionário público, sem mandado judicial, pretende interpelar pessoas comuns, na saída do shopping ou em qualquer outro lugar, para exigir documentos fiscais de quem não é contribuinte de direito dos impostos incidentes sobre os bens que tenha adquirido e esteja transportando e que, pelas suas características e quantidades sejam presumidamente para seu próprio uso ou consumo.

Ninguém está aqui defendendo sacoleiros ou camelôs, que carreguem carrinhos lotados de “muamba” ou que os esteja portando em enormes malas, sacolas, caixas ou mesmo no porta-malas de seu automóvel, com indícios de que os estejam comercializando.

O Fisco Federal é muito eficiente. Tanto que a arrecadação tributária vem, há muitos anos, superando o crescimento econômico do país. Os esforços que as autoridades fazendárias podem e devem desenvolver seriam muito mais úteis à nação se, por exemplo, estabelecessem agencias ou postos nas fronteiras secas do país.

Por quê as autoridades fiscais não são mais eficientes nas fronteiras do país, nos portos ou aeroportos? Pensam eles que a “muamba” que hoje é vendida em centros comerciais ou nas calçadas, inclusive nas proximidades das repartições fiscais vem pelo espaço como se fossem “óvnis”?

Claro que é muito mais agradável fiscalizar shopping nas grandes cidades, em ambiente refrigerado, do que tentar fiscalizar os contrabandistas nas fronteiras poeirentas do Paraguai, nas perigosas selvas das divisas com a Bolívia ou mesmo nas “aprazíveis” zonas portuárias de Santos, Paranaguá ou Manaus.

Imaginar que fiscais federais possam ficar “de tocaia” nas portas de shoppings à espreita de alguma “socialite” que esteja a carregar sacolas de compras repletas de badulaques importados, é ridículo e mesmo ofensivo à essa categoria de profissionais que, com formação universitária e submetendo-se a rigoroso concurso público, estariam equiparados a “cangaceiros” , daqueles que se escondiam atrás das moitas para atacar suas vítimas…

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