Liberdade responsável

Imprensa democrática deve ser informativa, e não panfletária

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15 de março de 2006, 15h21

Já não há pouco tem sido descrito como uma verdadeira democracia a organização sócio-política na qual manda a maioria — por si mesma ou por via de representação autêntica —, respeitadas voz e vez das minorias, enquanto que todos devem ser informados por uma imprensa livre. De fato, não se compreende a existência do regime democrático sem a contribuição decidida da mídia no propósito de informar que corresponde ao direito de ser informado. Imprensa e cidadania, portanto, caminham juntas em um ambiente genuinamente democrático. Deste modo, ela assume modernamente um inquestionável e definitivo papel controlador dos permeios e influxos da vida social, em especial da vida pública.

Para tanto, é fundamental que a comunicação não se encontre senão a serviço da informação que é, em síntese, um exercício fundamental da ordem constitucional democrática, abstraídas as considerações de trato subjetivo que corroboram, outrossim e com motivações justas, o processo de formação da opinião pública; além disto, corrobora a construção da consciência coletiva sem cuja ocorrência no cenário histórico não se forma uma nação. Decorre que o fomento ao espírito crítico é um dever e nunca uma temeridade ao modo da preservação de interesses ideológicos, segmentais, particularistas, quando não escusos de todo.

Um jornal, por exemplo, como veículo permanente de documentação e propagação de atos e atores históricos, não deve sofrer amarras de quaisquer gêneros, desde a censura velada e o assédio aos seus operadores até o completo empastelamento, pois somente com liberdade será possível preservar, por definição, as condições essenciais para que o exercício de suas nobres funções cumpra a finalidade última para a qual fora constituído, que é a de manter-se como agência de comunicação social, fomentando a informação acerca dos acontecimentos, para que também se mantenha como fator integrativo e substrato instrumental da própria democracia moderna.

Um jornal não se mantém, outrossim, pelo simples apelo econômico que o estrutura enquanto empreendimento. É claro que a subsistência de um veículo de comunicação depende da sustentabilidade de seus negócios. Todavia, esses negócios não prosperam se o jornal não se fizer notabilizar como agência de comunicação, generalista, noticiosa ou especializada. O argumento é válido para os demais meios de comunicação social, exceto para as entidades públicas quando mantidas pelo erário.

Somente livre, a imprensa, sobretudo a de formato escrito, será capaz de prestar ao público leitor e, por extensão, à nação, o serviço potencialmente eficaz de controle e disciplina dos agentes públicos, em especial, que em países subdesenvolvidos, ainda quando eufemizados pela nota da emergência econômica e cheios de mazelas, insistem em exercitar o autoritarismo — a despeito da retórica democrática —, como se a vida conspirasse cinicamente contra o sistema político e o sofrimento ingente das populações desassistidas, ainda assim, não fosse medida para a sua própria miséria e parâmetro para a alavancagem das políticas públicas e sociais.

Nesse contexto, o papel da imprensa livre é particularmente indispensável porque favorece à formação de uma opinião pública capaz de reger-se a si mesma e postular pelo melhor destino de tantos a quem se refere sem se deixar levar pelas práticas as mais agressivas, dos cometimentos os mais ostensivos e ignaros, quando não apenas dissimulado e obscuro com quase nenhum risco de punição. Os responsáveis por esses quadros se põem à margem daquele estado de hipossuficiências — como se esse estado não existisse — bem como se sentem encorajados a isso pelo silêncio pusilânime dos esclarecidos que passam a viver uma ilusão de sociedade.

A imprensa livre é aquela que, no afã informador e difusor das idéias, não rende homenagens a governos, nem a grupos e nem a pessoas, embora exercite a civilidade. O saber aplicado que intui adequadamente a equação para informar: liberdade X responsabilidade. Seu compromisso é com o público a ser informado e, por ele e em seu nome, com a verdade a ser difundida e proclamada da forma a mais honesta que os recursos materiais e as faculdades humanas possam invariavelmente prover.

Os veículos da imprensa livre não freqüentam e tampouco permitem que seus profissionais transitem, indecorosos, como áulicos às rodas dos príncipes, senão a trato da notícia e do serviço público que prestam à sociedade como um todo. O jornalismo é, portanto, em certo sentido, também um sacerdócio. Neste, aliás, não se pode cogitar ao menos de troca de favores, o que seria de todo pernicioso, pois o expediente tende a fraudar, ostensiva ou veladamente, não raro, a liberdade de expressão e de informação que se consagra na atualidade em um elenco bem destacado de normas constitucionais (artigos 5°, inciso IV, IX e XIV e 220 e seus parágrafos, da carta política) as quais somente se atenuam, muito extraordinariamente, sob levantamento da normalidade democrática, caso igualmente previsto na Constituição Federal como forma de autopreservação (artigo 139, inciso III).


Em outros termos, correção, imparcialidade e coragem são ingredientes que fazem justificar o proceder jornalístico e o ambiente de liberdades em que deve se encontrar, segundo o modo mais adequado pelo qual a imprensa, porquanto livre, resulte no “espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira confissão da sabedoria”. (Karl Marx, A Liberdade de Imprensa).

Por isso, como compreender a imprensa não-livre acaba constituindo um eloqüente desnexo, eis que uma tal compreensão, ainda quando difícil de ser explicada, terá perdido a noção consagrada que marca a própria intimidade da imprensa e as veredas da informação: liberdade de informar pelos modos de difusão ao público leitor-ouvinte e o direito de ser informado.

Além do mais, a compreensão sobre a idéia de liberdade, segundo o seu sentido racional-kantiano, não prescinde da contrapartida responsável, pois a fruição de um direito torna-se ilícita quando dele se abusa, razão pela qual nega-se todo valor ao anonimato (artigo 5o, inciso IV, parte final, da Constituição Federal), passando a responder o autor do produto do pensamento pelos eventuais excessos cometidos no exercício do que, em princípio, é sinômino de liberdade: prestar informação.

Observam-se alguns desses excessos, particularmente, no trato da reputação e honra subjetiva das pessoas cujas privacidade e intimidade são invioláveis e, por isso mesmo, também repercutem normativamente como objeto da proteção jurídica (artigo 5o, inciso X, da Constituição). Os agravos a esse tipo de patrimônio são ainda mais densos quando a informação resulta de uma narrativa desfundada, levianamente assacada, mediante um juízo puramente especulativo de seu autor por não encontrar nexos de associação suficiente que relacionem fatos a personagens ao objeto daquela proteção constitucional.

Neste caso, a liberdade de informação transpõe os limites do exercício regular de um direito e de uma prerrogativa profissional da classe jornalística para confundir-se com ilegalidade sujeita às conseqüências previstas no ordenamento jurídico. A expressividade, sob tal contexto, perde a sua liberdade porque não se presta à paz social, mas representa algum tipo de expediente vinditário ao qual a imprensa, como predicado da democracia, não pode se prestar a servir.

Com efeito, não há qualquer paradoxo nesta contrapartida a resultar de apressada idéia de fato desconectada desta bela síntese lógica e também de ordem prática. Bem agindo o profissional da informação, mediante a coragem que forja a sua própria conduta e a responsabilidade que o faz medir, em um tribunal interior, a extensão, alcance e significado do produto de seu trabalho, nada há que temer de um fenômeno social ao qual se vem vulgarmente denominando de “Indústria dos Danos Morais”.

O receio incontido de parte dos supostos destinatários de um tal movimento — os agentes da informação — não guarda sentido lógico. A segurança jurídica que a cidadania deve dispor, em relação a esses quadros, não remete ao arco de elucubrações subjetivas que parte dos que se dizem ofendidos com eventual informação invasiva de privacidade, mas às possibilidades reais de um exame cuidadoso, rápido e justo dessas causas, quando e se desaguadas perante os juízes e tribunais.

Sobre isso, deve ser ressaltado que a valorização dos danos morais, como categoria jurídica, não atrai, automaticamente, a valorização das proposituras sem justificação. Antes, são estas inteiramente desautorizadas e, quando confirmadas em sede processual própria, devem ser improvidas. Casos há que os improvimentos não carecem sequer de desdobramento da actio. O simples exame de admissibilidade da matéria, antes da formação da relação processual com a citação da parte demandada, já basta à sua eliminação do cenário jurídico como lide subministrável à cognição e ao contraditório. É exatamente o que explicita o artigo 285-A, do Código de Processo Civil, mediante a redação que lhe dera a Lei 11.277/06.

O modelo, no entanto, não oferece novidade e vem consagrar um permissivo processual consistente no indeferimento da petição inicial quando esta se ressinta da falta de possibilidade jurídica do pedido e, por isso, for inepta.

Ao fim, remete-se à literatura renascentista que ministrava: “Uma sátira que não exclui gênero de vida, não ataca qualquer homem particular, mas os vícios de todos”. (Erasmo de Roterdan, Elogio da Loucura). No mesmo sentido evoluiu o pensamento jurídico, a saber: “E não vá supor-se que a moderação prejudica a energia; não exclui, mesmo, certa dureza, mas evita as críticas que castigam as invectivas e as grosserias. Tudo se pode dizer polidamente, a correção fortalece quem dela usa. Os polemistas mais cruéis são precisamente os que traduzem as violências por delicadezas de desprezo”. (Maurice Garçon, O Advogado e a Moral).


Liberdade, sim! Irresponsabilidade, não!

Aprimorar as nossas instituições sem o vício das odiosas restringências e sem o risco de simplesmente transferirmos as agências de toda forma de opressão social no detrimento de uns e no favor, sempre abusivo, de outrem é o que nos cumpre a todos buscar sem descanso em função do que, aliás, muitos já tombaram, conforme é o exemplo de Líbero Badaró, vigoroso precursor da liberdade de imprensa no Brasil. A morte de um pioneiro, no entanto, não faz perecer a liberdade que permanece viva e comunicada pelo seu ideal de bravura e de proclamação da verdade. Trunfos da vida social. Esteios da vida ética. Móveis da vida afetiva. Razões de viver.

Somos todos chamados a exercitar esta reflexão notadamente ao instante em que a imprensa vem se destacando, em especial nos últimos anos, pelo atingimento desse ideário desprendido e nobre, virtualmente necessário à implantação de um regime coerente, livre e autêntico de comunicação social, apoiada nos sentimentos de elevação moral e plasmada nos interesses do povo que sempre amou a verdade em todos os tempos, apesar das vicissitudes dos contextos históricos, econômicos e ideológicos.

Para tanto, vem sendo capaz de desenvolver claros esforços de compreensão da realidade brasileira, narrando-a com desenvoltura e objetividade do que tem resultado inúmeras conseqüências práticas no sentido da plena realização das finalidades públicas. O new journalism que apura com acuidade os eventos mais dissimulados da história de seu tempo, a exemplo dos crimes os mais complexos que cristalizam autênticas novelas do cotidiano, também no Brasil tem repercutivo positivamente e suscitado a ação decisiva do próprio Estado em direção à responsabilização de quem de Direito.

Todavia, é sempre importante ressaltar que o papel da imprensa não é substitutivo do poder público e todo órgão de comunicação que venha ao encontro de uma tal pretensão age com malícia e claro sentido anti-social. Com efeito, não se deve alimentar a desventura do descrédito nas instituições públicas em favor do crédito, algo substitutivo, nos órgãos da imprensa como se a imprensa fosse ela mesma o Estado.

Essa atitude deve ser reprimida, pois a imprensa existe para dar transparência e, por isso mesmo, complementar os predicados da democracia, não para pulverizá-la, redimensionando-lhe para menor a sua concepção lógica, o ideário que esse regime preconiza, e suscitando entre as populações, sobretudo as menos esclarecidas e mais desfavorecidas, vínculos subjetivos de confiança que se confundem com o que se observa no interior de certas comunidades excluídas que vivem sob condições subumanas ao se apegarem aos agentes do crime, e até com eles colaborarem, em troca de algum conforto, ante a ausência de aparelhamento público suficiente nesses espaços e de controle da situação social.

Sobre isto, preocupa o perfil de alguns programas policiais bem como de outros que desdenham a dignidade humana e são, uns e outros, muito valorizados, todavia, pela sua assistência. Recentemente, programas do tipo foram retirados do ar por meio de controle judicial, à falta de auto-regulamentação suficiente.

A imprensa, portanto, não pode ser panfletária. Na linguagem da comunicação, isto significa a desconstrução do princípio ativo informacional.

Apesar de tudo, a sociedade brasileira caminha a passos seguros na habilidade de distinguir com clareza a substancial diferença entre um jornal autêntico e um apêndice panfletário, um órgão da imprensa livre e um tablóide a serviço de interesses nem sempre confessados.

Imaginar que isso ocorre impele o sentimento a que nos transformemos a cada dia para melhor como leitores e ouvintes de uma imprensa que consolida a democracia e que jamais a tutela. A pauta da liberdade é bem outra. Convém acreditar nisso.

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