Direito assegurado

Duda Mendonça obtém salvo-conduto para depor em CPMI

Autor

13 de março de 2006, 21h10

O publicitário Duda Mendonça não precisará assinar termo de compromisso de testemunha e não poderá ser preso caso se recuse a responder a alguma pergunta que possa incriminá-lo durante seu depoimento à CPMI dos Correios. Ele foi convocado para prestar informações à Comissão na próxima quarta-feira (15/3), às 10 horas.

O ministro Gilmar Mendes, que concedeu liminar em Habeas Corpus ao publicitário, ressalvou, contudo, que o depoente deve prestar informações com relação a fatos que possam o incriminar.

O ministro, que substitui a relatora Ellen Gracie, afirmou que o direito à não-produção de prova contra si mesmo é pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade humana. “Este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais.”

HC 88.228

Leia a íntegra da liminar:

HABEAS CORPUS 88.228-5 DISTRITO FEDERAL

RELATORA: MIN. ELLEN GRACIE

PACIENTE(S): JOSÉ EDUARDO CAVALCANTI MENDONÇA OU JOSÉ EDUARDO CAVALCANTI DE MENDONÇA

IMPETRANTE(S): TALES CASTELO BRANCO E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR

MISTA DE INQUÉRITO – CPMI DOS CORREIOS

DECISÃO: Trata-se de habeas corpus, com pedido de medida liminar, impetrado por TALES CASTELO BRANCO e FREDERICO CRISSIÚMA DE FIGUEIREDO, em favor de JOSÉ EDUARDO CAVALCANTI MENDONÇA, publicitário. Aponta-se como autoridade coatora o Presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios (“CPMI dos Correios”), o Senador Delcídio Amaral, em razão de convocação para prestar depoimento para fins de investigação parlamentar.

O aspecto central da impetração, portanto, é o de que, em razão da convocação do paciente para prestar depoimento no dia 15.03.2006, às 10:00h, perante a “CPMI dos Correios”, seria “fato notório que, atualmente, o Paciente não pode ser considerado testemunha, mas sim, investigado.” (fl. 3).

Quanto à plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni iuris), a impetração argumenta que:

“O Código de Processo Penal, em seu artigo 186, assegura ao réu ‘o direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”, sem que seu silêncio seja interpretado em prejuízo da defesa.

Da mesma forma, as testemunhas, ainda que compromissadas, não podem ser obrigadas a depor sobre fatos que lhes acarretem graves danos, conforme dispõe o artigo 406, I, primeira parte do Código de Processo Civil.

Tais previsões legais decorrem do princípio informador de nosso ordenamento jurídico de que ninguém pode ser obrigado a se incriminar, refletido, ainda, na garantia prevista no artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal.

O Egrégio Supremo Tribunal Federal, por sua vez, consolidou o entendimento de que essa garantia se estende à hipótese de depoimentos prestados perante Comissões Parlamentares de Inquérito.” (fls. 03/04).

Quanto à urgência da pretensão cautelar (periculum in mora), alega-se que o paciente foi convocado para comparecer à CPMI dos Correios “no dia 15 de março de 2006, não havendo tempo hábil, portanto, para que o Poder Judiciário, ao decidir o mérito desta impetração, assegure seu direito de permanecer calado.” (fl. 06).

Após apresentar diversas referências jurisprudenciais do Supremo Tribunal Federal acerca do reconhecimento do direito constitucional dos investigados perante Comissões Parlamentares de Inquérito, o impetrante requer “a expedição de salvo-conduto, garantido ao Paciente o direito de a) não assinar termo de compromisso, na qualidade de testemunha, e b) permanecer calado, em seu depoimento perante a CPMI dos Correios, sem que, por esse motivo específico, seja preso ou ameaçado de prisão.” (fl. 06).

Nesse contexto, estando o paciente convocado para prestar esclarecimentos em audiência pública a realizar-se no próximo dia 15 de março de 2006, passo a decidir o pedido de medida liminar.

A Constituição confere às Comissões Parlamentares de Inquérito os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais (art. 58, § 3o). O Supremo Tribunal Federal tem entendido que, tal como ocorre em depoimentos prestados perante órgãos do Poder Judiciário, é assegurado o direito de o investigado não se incriminar perante as Comissões Parlamentares de Inquérito (CF, art. 5o, LXIII – “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (…)”).

Nesse sentido, vale ressaltar a seguinte passagem da ementa de decisão proferida no HC no 79.812-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 16.02.2001, verbis:

“COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – PRIVILÉGIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO – DIREITO QUE ASSISTE A QUALQUER INDICIADO OU TESTEMUNHA – IMPOSSIBILIDADE DE O PODER PÚBLICO IMPOR MEDIDAS RESTRITIVAS A QUEM EXERCE, REGULARMENTE, ESSA PRERROGATIVA – PEDIDO DE HABEAS CORPUS DEFERIDO. – O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário. – O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio – enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) – impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado. (…)” (HC no 79.812-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16.02.2001)

Essa orientação, amplamente consolidada na jurisprudência da Corte (dentre outros: HC no 83.357-DF, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 26.03.2004; HC no 79.244-DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 24.03.2000), tem sido objeto de críticas da sociedade e dos meios de comunicação, no sentido de se conferir um “bill of indemnity” ao depoente para que ele se exima de fornecer informações imprescindíveis à regular instrução.

Caso se pretenda atribuir aos direitos individuais eficácia superior à das normas meramente programáticas, então devem–se identificar precisamente os contornos e limites de cada direito. Em outras palavras, é necessário definir a exata conformação do seu âmbito de proteção. Tal colocação já seria suficiente para realçar o papel especial conferido ao legislador, tanto na concretização de determinados direitos quanto no estabelecimento de eventuais limitações ou restrições.

Evidentemente, não só o legislador, mas também os demais órgãos estatais dotados de poderes normativos, judiciais ou administrativos cumprem uma importante tarefa na realização dos direitos fundamentais.

A Constituição Federal de 1988 atribuiu significado ímpar aos direitos individuais. Já a colocação do catálogo dos direitos fundamentais no início do texto constitucional denota a intenção do constituinte de emprestar-lhes significado especial. A amplitude conferida ao texto, que se desdobra em setenta e sete incisos e quatro parágrafos (CF, art. 5º), reforça a impressão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar a esses direitos. A idéia de que os direitos individuais devem ter eficácia imediata ressalta, portanto, a vinculação direta dos órgãos estatais a esses direitos e o seu dever de guardar-lhes estrita observância.

O constituinte reconheceu ainda que os direitos fundamentais são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º). A complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda, por conseguinte, que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais.

O direito ao silêncio, que assegura a não-produção de prova contra si mesmo, constitui pedra angular do sistema de proteção dos direitos individuais e materializa uma das expressões do princípio da dignidade da pessoa humana.

Como se sabe, na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações.

A propósito, em comentários ao art. 1º da Constituição alemã, Günther Dürig afirma que a submissão do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [“Eine Auslieferung des Menschen an ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre die Verweigerung des rechtlichen Gehörs.”] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck, 1990, 1I 18).

A premissa acima é suficiente a fazer incidir, automaticamente, a essência dos direitos argüidos na impetração. E, se há justo receito de serem eles infringidos, deve-se deferir ao paciente o necessário salvo conduto que evite possível constrangimento. Isso não significa, porém, afirmar que a situação de constrição de direitos ocorrerá ou ocorreria.

Como ressaltado pelo Min. Celso de Mello na decisão liminar do MS no 25.617-DF, DJ de 23.11.2005, é o caso de se pressupor que o conhecimento e a consciência próprios à formação jurídica dos parlamentares que compõem a direção dos trabalhos da “CPMI dos Correios” não “permitiria que se consumassem abusos e que se perpetrassem transgressões” aos direitos dos depoentes. Contudo, eventos de passado recente e de público conhecimento indicam a oportunidade e a necessidade de acautelar qualquer eventual ocorrência de constrangimento ilegal.

No caso dos autos, afigura-se inequívoco, pelo menos em sede de juízo cautelar, que o não reconhecimento do direito de o paciente isentar-se de responder às perguntas, cujas respostas possam vir a incriminá-lo, pode acarretar graves e irreversíveis prejuízos a direito fundamental do paciente.

Nesses termos, defiro a medida liminar, nos termos em que requerida, para que a “CPMI dos Correios” defira-lhe o tratamento próprio à condição de “acusado” ou “investigado”, assegurando-se-lhe o direito de: i) não assinar termo de compromisso na qualidade de testemunha; e ii) permanecer calado, em seu depoimento perante a CPMI dos Correios, sem que, por esse motivo específico, seja preso, ou ameaçado de prisão.

Ressalvo, porém, que, com relação aos fatos que não impliquem auto-incriminação, persiste a obrigação de o depoente prestar informações.

Expeça-se o salvo conduto, nos termos do art. 191, IV, do RISTF, até decisão final do feito, tendo em vista grave risco de consumação de constrangimento ilegal contra o ora paciente.

Comunique-se, com urgência, mediante telex, ao Presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios (“CPMI dos Correios”), o Senador Delcídio Amaral.

Após, requisitem-se informações à autoridade coatora e abra-se vista à Procuradoria-Geral da República, nos termos dos arts. 191 e 192, do RISTF.

Brasília, 13 de março de 2006.

Ministro GILMAR MENDES

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!