O Supremo governa

Entrevista: José Paulo Sepúlveda Pertence

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8 de março de 2006, 7h00

Nos últimos meses, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o Congresso, o Palácio do Planalto e a opinião pública. Mas o principal combate o STF está travando com a sua própria jurisprudência. A doutrina da Corte, em uma revolução mais ou menos silenciosa, está em transição.

A discussão sobre se os sete ministros de Lula (cinco já nomeados, dois prenunciados) vão transformar o STF em uma torcida organizada do PT perdeu a força por falta de exemplos para respaldar a desconfiança. Mas outra mudança, bem maior que a política, está acontecendo. Não porque os novos ministros sejam indicados por Lula mas, simplesmente, por serem novos.

Regras petrificadas, e questionáveis, como a que manda para a cadeia quem comprou automóvel e tornou-se inadimplente, a exigência de prisão enquanto ainda se apela ou a coleção de arbitrariedades contra o contribuinte são algumas das reviravoltas previstas para breve.

Vôo mais alto poderá acontecer com o Mandado de Injunção, instrumento criado para cobrir a omissão do Congresso quando, por falta de regulamentação, um direito previsto na Constituição não puder ser exercido.

A maioria anterior do STF estabelecera que a única coisa que o tribunal pode fazer é avisar ao Congresso que é preciso regulamentar a norma. O que não tem efeito algum. A renovação que o tribunal pode adotar: o próprio STF suprir o direito reclamado. Num caso que envolva greve de servidores (artigo não regulamentado da Constituição), por exemplo, os ministros podem decidir que, provisoriamente, a lei de greve na iniciativa privada pode ser aplicada ao caso.

A aposentadoria, em 2003, do ministro Moreira Alves — que, por quase 28 anos, foi quem mais influiu na construção da doutrina do tribunal — é um divisor de águas nesse processo. Ele foi o último dos onze ministros que, formados e condicionados na doutrina firmada nos anos do regime militar, consolidaram a jurisprudência que agora está sendo revisada.

Com a desconstrução do modelo pré-88, acredita-se, o STF desembarca, finalmente, da lógica da Carta de 1969. E surge um tribunal menos estatal, mais ousado e amigo dos direitos fundamentais e do direito de defesa, como define um dos ministros.

Nomeado pelo primeiro governo civil depois de 20 anos de regime militar do qual foi uma das vítimas [em 1969 foi aposentado do cargo que ocupava no Ministério Público com base no Ato Institucional nº 5, pela junta militar que governava o país], José Paulo Sepúlveda Pertence é hoje o decano, o mais antigo ministro do STF. Mas só recentemente conseguiu se fazer acompanhar de maioria para mudar uma regra contra a qual havia sólida resistência na velha ordem: a que permitia instauração de ação penal contra contribuinte que ainda discutia o suposto débito no Conselho de Contribuintes. Em miúdos não ocorrerá mais o caso de empresário, depois de condenado na Justiça, saber que o governo concluiu que ele não devia nada ao fisco.

Outro avanço pilotado por Sepúlveda Pertence foi o reconhecimento da legitimidade das centrais sindicais e outras congregações de entidades estaduais para questionar a constitucionalidade de leis e atos junto ao STF — o que só se tornou possível com a nova formação do time de ministros.

Para entender o novo papel do STF no país, a revista Consultor Jurídico, junto com o jornal O Estado de S.Paulo, passa a publicar, às quartas-feiras, a análise dessa revolução feita pelos personagens da mudança: os próprios ministros do Supremo. Na entrevista que se segue, Sepúlveda Pertence analisa o que considera o principal instrumento da nova era judiciária do país: a Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Embora instituída em 1988, só nos últimos meses a ADI passou a ser usada com toda sua envergadura. Dentro do que chama de interpretação retrospectiva, Pertence fala da “jurisprudência defensiva” que fez com que o tribunal restringisse as possibilidades da ADI — o que agora se reverte.

Leia os principais trechos da entrevista de Sepúlveda Pertence

ConJur — O que mudou nesses 16 anos no Supremo Tribunal Federal?

Sepúlveda Pertence — Em primeiro lugar, mudou o país. Houve um evidente aprofundamento do sentimento de cidadania. O cidadão passou a acompanhar as grandes questões nacionais. E onde entra o Supremo nisso? É evidente que o protagonismo do Supremo de hoje é outro em relação ao Supremo pré-88. Eu entrei meses depois. Além do fator sócio-político no sentido macro (a mudança do país e do regime), você tem uma aposta muito grande na Constituição de 88 como solução jurisdicional. Não só dos problemas clássicos das relações privadas, da repressão penal, e das garantias de direitos individuais e singulares contra o Estado. A Ação Direta de Inconstitucionalidade revolucionou o direito brasileiro. No plano teórico pode-se afirmar que a grande revolução não começou em 1988, mas em 1965, quando a velha Representação Interventiva passa a crivar a constitucionalidade não só de leis e atos de governos locais mas, também de leis federais.


ConJur — Mas ainda com monopólio de iniciativa da Procuradoria-Geral da República…

Sepúlveda Pertence — Sim, pois é. Mas a estrutura se manteve, não se partiu para a formulação de um sistema europeu de corte constitucional. Pelo contrário, mantivemos o Supremo no molde da estrutura americana como cúpula do Poder Judiciário, mas se rompeu o ponto de garantia governamental da grande abertura de 65 da representação de inconstitucionalidade, que foi a ampla liberalização da legitimação ativa. Então, de 65 a 88, embora o sistema de controle de constitucionalidade já tivesse praticamente a amplitude de hoje, na verdade, a representação do controle abstrato funcionava primacialmente como uma arma do Executivo e do Executivo Federal.

ConJur — Ou seja, ela só beneficiava…

Sepúlveda Pertence — O Executivo e o Executivo Federal, num contexto em que o procurador-geral era um homem de governo. Não faço essa análise de subordinação pelo fato de o procurador-geral ser demissível ad nutum etc. Não cometo essa injúria. Mas o procurador tinha um dever de solidariedade com o governo porque ele integrava o governo.

ConJur — De certa forma, o país convivia com naturalidade com isso.

Sepúlveda Pertence — Basta dizer que ele era ao mesmo tempo o que hoje se chama o advogado-geral da União. Então, ele tinha uma dupla função… o que eu chamei no meu discurso de posse de “um dilema institucional insolúvel”. Uma função exigia uma plena solidariedade ao governo para a defesa da União e outra, que postularia independência, era a de chefe do Ministério Público. A partir de 1988, não só o procurador-geral se liberta dessa dupla função e desse dilema dramático, mas também se abre a uma série de outros setores para a provocação do controle abstrato de constitucionalidade. A partir daí, você vê, ao contrário do que ocorria no período de 65 a 88, quando os temas que corriam no controle abstrato, no controle difuso, eram diversos. Começa aí, o que é dramático também, a coincidência dos temas. Abriu-se, amplamente, a possibilidade de postulação à OAB, entidades de classe, partidos e ao procurador-geral em situação de independência. Tornou-se raro um problema constitucional global, não ser questionado em poucas semanas com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ou uma Ação Declaratória de Constitucionalidade.

ConJur — É natural que pessoas que passaram anos trabalhando com um código, a Constituição anterior, tenham dificuldades para atuar com desenvoltura dentro do novo regrário, porque as pessoas ficam presas ao sistema anterior…

Sepúlveda Pertence — É, o modo de pensar.

ConJur — O senhor chega ao STF no primeiro lote dos ministros pós-88. Como o senhor definiria a resistência dos ministros da velha ordem em aplicar a Constituição de 88, com sua nova lógica?

Sepúlveda Pertence — Isso é verdade, é um fenômeno universalmente observado, quer dizer, a tendência à interpretação retrospectiva. Ver na Constituição ou na lei nova, se for o caso, a forma que lhe permita reduzi-la a algo que, ao fim e ao cabo, diz exatamente o que já se dizia.

ConJur — E por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade. No início, o Supremo fazia uma leitura restrita, diminuía seu papel e extensão.

Sepúlveda Pertence — Sim. Faltava legitimação. Praticou-se muito, o que hoje o nosso Gilmar Mendes definiu como uma “jurisprudência defensiva”, que era de restringir ao máximo o risco de que a ação direta fosse fazer naufragar o Tribunal pelo seu número, pelas quantidades com uma interpretação mais receptiva. Cito um entendimento com o qual jamais me conformei — e que só veio a ser vencido agora com essa nova composição pós 2003 —, que é a vedação ou o não reconhecimento da legitimação do que se chamava, então, de associações de associações de classes.

ConJur — Não se conhecia das ações.

Sepúlveda Pertence — Não se reconhecia então as centrais sindicais, e tinha uma série de outras entidades de classe que por mimetismo com o sistema federal se compõem como entidades de segundo grau, quer dizer, como congregação de entidades estaduais.

ConJur — Como é ser o decano dessa Corte hoje?

Sepúlveda Pertence — Sei lá… Fora o gabinete mais bonito…

ConJur — Mas o senhor tem a sua marca em boa parte das modificações que se processaram.

Sepúlveda Pertence — Sim e também muito a memória do Tribunal. Não são apenas os 16 anos, quase 17 anos como ministro. Minha vida profissional praticamente se confunde com o Supremo Tribunal, desde o primeiro ano de formado depois de uma vivência interna como secretário jurídico de 1965 a 1967, como Secretário Jurídico no STF, no gabinete do ministro Evandro Lins e Silva. Depois, uma advocacia intensa, centrada no Supremo; em seguida, os quatro anos e meses de procurador-geral da República. Então, isso, com a óbvia influência de Vitor Nunes, com quem trabalhei [Vítor Nunes Leal e seus colegas Hermes Lima e Evandro Lins e Silva foram aposentados compulsoriamente dos cargos que ocupavam no STF em 1969, por decreto do presidente Artur da Costa e Silva com base no Ato Institucional nº 5]. Contribuiu para essa preocupação de guardar a memória e guardar a coerência. Porque o tribunal pode mudar de jurisprudência quando bem entender, mas tem que estar consciente disso. Por isso tenho muitas vezes batalhado: uma tese pode ser brilhante, pode ser revolucionária, mas para mudar é preciso que a mudança seja harmônica com o seu contexto.


ConJur — É preciso ser sistêmico e coerente, é isso?

Sepúlveda Pertence — Coerente, quer dizer, é preciso saber o que se está mudando, que conseqüência trará essa mudança.

ConJur — Dos instrumentos que contribuíram para essa alteração de perfil do Supremo, o senhor diria que a ADI foi a principal novidade?

Sepúlveda Pertence — É, foi a principal. As outras, a inconstitucionalidade por omissão, até hoje é um instrumento no Brasil como em Portugal, de eficácia muito restrita, porque não se deu jamais ao Tribunal a possibilidade de suprir a omissão do Legislativo e fica então como um apelo ao legislador que não tem a eficácia social e política, que não tem, por exemplo, o apelo ao legislador da corte alemã. [Embora os sistemas sejam parecidos, na Alemanha o apelo do Judiciário é considerado desonroso e o pedido tem efeito, diferentemente do que ocorre no Brasil].

ConJur — Como é que senhor descreve o fato de o Supremo não ter ousado avançar na questão do Mandado de Injunção?

Sepúlveda Pertence — Falávamos há pouco do que, na linguagem de Barbosa Moreira é a “interpretação retrospectiva”. Ou seja forçar a noção de que nada mudou. Até como uma certa postura defensiva do próprio Tribunal. Sobretudo quando se alargou desmedidamente — por vias que eu nem consigo restabelecer na leitura dos trabalhos da Constituinte — a competência originária do Supremo Tribunal para um Mandado de Injunção que, a rigor, ficou praticamente universal. Há mesmo dificuldades político-institucionais de um avanço no sentido de arrogar-se o Tribunal o poder de legislar até que o Congresso suprisse o vácuo legal. Um deputado, creio que o deputado Fleury, que disse “já não nos bastam as medidas provisórias do executivo, teremos agora que nos afogar com as medidas provisória do Judiciário”.

ConJur — A solução simples seria o legislador cumprir seu papel, não?

Sepúlveda Pertence — É, exato. Então, realmente seria político-institucionalmente revolucionário que o Supremo, com as objeções de ordem dogmática do voto de Moreira Alves, ousasse construir um papel de legislador provisório para suprir as omissões legislativas.

ConJur — Digamos que não houvesse condições objetivas ou contexto à época. Atualmente, há não só um país diferente, mas um arcabouço jurídico e um novo “time” na Casa. É possível mudar e resgatar o sentido original do Mandado de Injunção?

Sepúlveda Pertence — Eu não faria previsão ou pelo menos não apostaria em que a jurisprudência meramente declaratória da omissão seja hoje uma aposta segura. Mas é preciso.

ConJur — O Congresso nunca achou necessário obedecer às leis que eles mesmos aprovam. Nas CPIs, por exemplo, sistematicamente, convoca-se pessoas acusadas, indiciadas até, para depor como se fossem testemunhas. O Supremo de forma historicamente ousada passou a enquadrar os congressistas, o que lhe tem custado acusações furiosas de intervencionismo. O Judiciário brasileiro “sarou” da sua atrofia histórica que sempre o diminuiu tanto diante de um Executivo hipertrofiado? Chegamos a um ponto de equilíbrio na relação dentre os poderes?

Sepúlveda Pertence — Sim, eu creio que, nesse ponto, o Supremo não pode aí, mesmo em termos de direito comparado, ser tido como tímido. Pelo contrário, avançou-se, menos em termos de uma lógica jurídica pura e mais de sensibilidade para fixar em que limites um Tribunal pode ingressar no processo das atividades do Legislativo. Seja o processo legislativo propriamente dito, seja esse campo extremamente delicado em que se transformaram as Comissões Parlamentares de Inquérito. Na verdade, você tem raros exemplos de intromissão judiciária no direito comparado neste ponto. Mesmo nas páginas da Suprema Corte, no período persecutório de McCarthy nos Estados Unidos [O senador Joseph McCarthy foi quem personalizou o movimento conservador de perseguição a supostos comunistas americanos nos anos 50].

ConJur — Mas era preciso fazer alguma coisa, não?

Sepúlveda Pertence — Efetivamente, foi um contraponto necessário à afirmação dos poderes de instrução judiciária que a Constituição deu à Comissão Parlamentar de Inquérito. Impor os mesmos limites a que está sujeita a autoridade judiciária, entre elas, a mais elementar — mas a que mais tem trazido certo incômodo no Congresso e certa estranheza na opinião pública — que é a garantia de que ninguém é obrigado a fazer a prova contra si mesmo. Por isso, pouco importa se a convocação é de testemunha ou de acusado, porque, a rigor, não há acusado na Comissão Parlamentar de Inquérito. Lembro de alguns dos primeiros episódios em que se perguntava ao cidadão em uma CPI. “Vossa senhoria já sonegou imposto de renda?”. O cidadão respondia: “Eu nunca soneguei imposto de renda”. Para ouvir: “Está mentindo, está aqui uma notificação do imposto de renda para complementar por omissão de receitas, está preso por falso testemunho”. A coisa é kafkiana. Aí tomou cores dramáticas também com as TVs do Congresso. No episódio Chico Lopes, por exemplo, tentou-se impor juramento de testemunha a um homem que compareceu para responder, evidentemente, sobre fatos próprios e fatos sugeridos como um grande escândalo.


ConJur — O Supremo julga mais princípios ou mais pessoas? O que vale: o caso concreto ou o paradigma?

Sepúlveda Pertence — Há o julgamento de pessoas que é esta pesadíssima competência penal originária. E é difícil pensar que um dia o Congresso abdique da prerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal. Isso pode vir a tornar-se um grande ponto de estrangulamento no Tribunal.

ConJur — Pelo volume?

Sepúlveda Pertence — Por causa do volume. Ou seja, não são mais episódios parlamentares nem troca de desaforos em campanha eleitoral, mas sobretudo do prefeito que se elege deputado e que é, no curso do seu mandato de deputado, que vai responder por acusações de má-gestão no município. Mas, afora isso, a função do tribunal é trabalhar mais sobre princípios do que em torno de pessoas. E espero que isso se venha a aprofundar, sobretudo com a prática que se venha estabelecer — não é coisa mais para mim — da Repercussão Geral, da “relevância que tem vergonha de dizer seu nome”. [Repercussão Geral é o novo nome da Argüição de Relevância, mecanismo que permitiria aos ministros do STF escolherem as matérias que devem julgar].

ConJur — Por que “não é mais para mim”?

Sepúlveda Pertence — Porque a minha permanência evidentemente é de pouco tempo.

ConJur — Pouco tempo quanto?

Sepúlveda Pertence — Pela Constituição de um ano e pouco, mas é muito triste a aposentadoria compulsória. É muito melhor sair um pouco antes.

ConJur — Vigora no país a noção de que as pessoas de quem não se gosta devem ser condenadas por qualquer coisa e as de quem se gosta, devem ser absolvidas automaticamente. Como é ser juiz nesse contexto?

Sepúlveda Pertence — (rindo) Isso é muito bom. Isso é muito gostoso, mas infelizmente aqui [no tribunal] não dá. Eu costumo repetir muito uma frase: “Algumas das garantias da liberdade mais caras foram afirmadas a propósito de cidadãos não muito respeitáveis”.

ConJur — Ao mesmo tempo, o país tem um sistema de comunicação moldado e voltado, basicamente, para uma população que não se pode acusar, propriamente, de intelectual. Para se alcançar o maior número de pessoas é preciso usar códigos fáceis. Então, a imprensa projeta informações “simplificadas” para a sociedade. Em exemplo recente o senhor não participou de julgamento em que se debatia um princípio: se é direito da defesa falar após a acusação. O ministro foi acusado de favorecer o ex-deputado José Dirceu.

Sepúlveda Pertence — Se fosse afirmado para um assassino, ninguém nem tomaria conhecimento.

ConJur — Como é conviver com isso? Decidir uma coisa e ler no dia seguinte no jornal que o senhor decidiu outra.

Sepúlveda Pertence — Isso é extremamente difícil. Diariamente é difícil e muito mais quando você sofre agressões, que é o pior tipo de agressão da imprensa: aquela que não afirma nada, só insinua. Insinuaram doenças, envolveram relações de amizade com determinado advogado. Sem afirmar coisa alguma, o pior é isso.

ConJur — O tribunal julgou um princípio e noticiou-se o julgamento de uma pessoa?

Sepúlveda Pertence — Claro. E fizeram uma insinuação… enfim, que eu não quero qualificar. Se eu tivesse simulado doença eu não entendi que vantagem eu teria causado à parte não estando presente no dia em que se discutiu (…). E eu sou de briga. Iria e votaria.

ConJur — Nesse contexto, como o senhor vê o coeficiente de legitimidade do Supremo perante a Sociedade?

Sepúlveda Pertence — Esse é um ponto central e eternamente inconcluso nas discussões sobre a Justiça constitucional, sobretudo. Em que medida onze homens, na verdade, seis votos de gente sem voto, podem dizer que anula uma emenda constitucional. Mas eu creio que o poder das cortes supremas, particularmente das cortes constitucionais, em especial no controle abstrato de constitucionalidade, é o que se tem chamado um poder essencialmente contramajoritário. Trata-se de garantir ou de procurar garantir a Constituição nos princípios em que ela não se lastreia em votos. Em que a decisão não se constrói pela maioria, mas com princípios fundamentais da convivência de interesses e de idéias contrapostas e garantias. É sobretudo a garantia de minoria, de respeito às regras do jogo — o que foi explorado e reprisado cansativamente no Mandado de Segurança que concluiu pela instalação de uma CPI defendida pela minoria.

ConJur — Hoje o STF participa das grandes decisões nacionais. O senhor concorda com a afirmação, do ministro Celso de Mello, de que hoje o Supremo governa?

Sepúlveda Pertence — É um órgão de governo. Também não há muitos exemplos no direito comparado. Teoricamente é um lugar comum dizer que a emenda constitucional está sujeita a um juízo de constitucionalidade. Ela mesma na medida em que há regras e há um processo específico, e há também as cláusulas intangíveis. Mas você não encontra exemplos no direito comparado de efetivamente se ter declarado a inconstitucionalidade de emendas como o Supremo discute.


ConJur — Nem na Alemanha?

Sepúlveda Pertence — A Alemanha quase chegou, mas não concretizou.

ConJur — Eles não estabeleceram que até mesmo um artigo da Constituição pode ser considerado inconstitucional?

Sepúlveda Pertence — Não, a idéia foi defendida em uma conferência notável de Otto Bachof. Na linha da Filosofia alemã pós-nazismo, em que o positivismo é posto em xeque, porque, enfim, o nazismo pôde subir ao poder e governar com aparente respeito ao sistema positivo de direito.

ConJur — Para afastar a ambigüidade, quando o senhor define o STF como órgão de governo, não é como sinônimo de Poder Executivo.

Sepúlveda Pertence — Isso é óbvio. Órgão de governo no sentido de que influi em decisões nacionais fundamentais. Os leitores logo iriam querer saber quem é o líder do governo (rindo).

ConJur — O senhor diria que o ministro do Supremo deve se preocupar tanto com a governabilidade quanto com a constitucionalidade?

Sepúlveda Pertence — É inevitável na formação da convicção do juiz, do juiz constitucional sobretudo, uma certa lógica de conseqüências, mas ela é para mim secundária. Não são dificuldades tópicas. Há um programa de governo, ainda que com repercussões negativas na sociedade, na economia, que podem fazer com que se perca a noção de que o nosso papel não é esse. O nosso papel é garantir princípios e regras de processo democrático que se puseram acima das maiorias conjunturais.

ConJur — Certa vez, chegou-se a invocar o “patriotismo” por ocasião do confisco do governo Collor para não…

Sepúlveda Pertence — Depois também eu fui personagem de uma cena de um caríssimo amigo meu, ministro Bresser Pereira, não me lembro mais a propósito de que, declarou que confiava no “patriotismo” do ministro do Supremo. Isto, creio que já posso testemunhar, coincidiu com uma solenidade qualquer no Congresso, compareceu o presidente Fernando Henrique. Ele disse “não, você pode ficar tranqüilo”. E realmente ao chegar no gabinete já havia o telefonema do ministro escusando-se…

ConJur — Dentro dessa evolução, dessas mudanças do Supremo, tivemos também o consolidar da noção de que a Constituição vigora em todos os lugares do país. Seja nos atos administrativos do executivo, seja na CPI, clube ou sindicato.

Sepúlveda Pertence — Seja no pequeno município, seja na União.

ConJur — Como o senhor descreve esse processo, esse avanço?

Sepúlveda Pertence — Creio que é não só o avanço da democratização do controle abstrato de constitucionalidade, mas sobretudo da evolução global do país. Em um sentido de maior controle governamental em todas as instâncias. Os governos reclamam (estão no papel deles), jogam obviamente com a lógica de resultado. Todo governo tem que ter um programa e quer crer que vai salvar o país com ele. Não é da lógica do governante preocupar-se com uma “regrinha” aqui, com um principio ali. A nossa lógica é outra. O nosso papel é contramajoritário.

ConJur — O contramajoritário no sentido de um colegiado diminuto que impõe decisões ao país?

Sepúlveda Pertence — Preservando o que é, nas regras do jogo democrático, a garantia da minoria e da eventual alternância do poder.

ConJur — Falando sobre esse tipo de poder, há a força da imprensa. Uma imprensa que também vive em mutação e em seguidas crises de identidade…

Sepúlveda Pertence — (rindo) Você é que está dizendo.

ConJur — Há uma discussão sobre os limites que se pode impor à imprensa e sobre o caráter da liberdade de expressão — se é ou não direito absoluto. Afinal, a censura prévia foi ou não raspada da Constituição?

Sepúlveda Pertence — Como censura prévia, sim, mas me pergunto se a proteção da honra, da imagem que a Constituição diz inviolável, essa inviolabilidade se resume…

ConJur — Ao dia seguinte?

Sepúlveda Pertence — Ao dia seguinte, ou o pagamento de uma indenização.

ConJur — Se um juiz tem conhecimento de que a honra ou a imagem de alguém será, alegadamente, violada, amanhã ou na semana que vem, ele pode impedir a publicação?

Sepúlveda Pertence — É uma questão que, confesso, ainda não tenho a tranqüilidade do ministro Gilmar Mendes [Defensor da tese de que o juiz pode e deve impedir que o dano moral seja perpetrado, caso se saiba antes da ameaça]. Mas que a honra é inviolável, é. Eu situei em uma decisão, apenas liminar, no caso do Garotinho, as duas correntes que se chocam. Espero não ter que enfrentar e ter que tomar posição a esse respeito.

ConJur — O caso do Garotinho é o das fitas gravadas clandestinamente que se proibiu a divulgação?

Sepúlveda Pertence — É, exato.


ConJur — Nos últimos anos, vê-se a imposição de restrições ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário. Os integrantes desses poderes, de forma geral, têm mostrado predisposição em limitar também a imprensa. O senhor acredita que isso ocorra ou isso se dará na forma das condenações por dano moral, como está acontecendo?

Sepúlveda Pertence — É evidente que há casos em que a indenização a posteriori não resolve o problema, mas não vejo no momento uma perspectiva política de se instaurar um sistema mais severo.

ConJur — O segredo de Justiça vincula o jornalista?

Sepúlveda Pertence — Tendo a achar que não. Vincula os agentes que atuam e têm acesso aos autos. Por isso é preciso ser severo com os atores do processo.

ConJur — Tanto mais quando se leva em conta o interesse público. Voltando aos fatores que contribuíram para esse novo formato do Supremo: o senhor agregou-se a um tribunal cuja maioria dos ministros fora nomeada no regime militar. E o primeiro com perfil mais socialista. No outro extremo estava um nome bastante respeitado que é o ministro Moreira Alves. Como o senhor descreve a contribuição do ministro ao Supremo de hoje?

Sepúlveda Pertence — O ministro Moreira Alves foi um juiz excepcional. Um jurista raro, de formação confessadamente civilista. Eu diria, não um radical, ele não foi o mais conservador, mas mais conservador que inovador. Agora, um homem de excepcional coragem judicial quando se convencia. É da minha crônica de advogado o Mandado de Segurança que o juiz auditor Célio Lobão, que fora posto em disponibilidade por meio de um decreto-lei solicitado ao governo pelo próprio Superior Tribunal Militar e a propósito evidentemente do caso Riocentro, que foi um dos casos politicamente mais delicados da história do regime militar. Eu impetrei a segurança e me lembro que um colega que estava sentado atrás de mim perguntou se eu tinha esperança. Eu falei “tenho mais medo de que caia o teto do Supremo Tribunal sobre as nossas cabeças”. Mas o ministro Moreira Alves, o andar da carruagem do seu voto me fez virar para trás e falar “eu estou sentindo umas rachaduras perigosas ali (…)”. Concedeu-se o mandado de segurança apesar do ranger de dentes e estalar de ossos.

ConJur — Na platéia?

Sepúlveda Pertence — Na platéia e na ambiência política.

ConJur — Em que trecho da doutrina atual do STF encontramos as digitais do ministro?

Sepúlveda Pertence — Falando do Supremo pós-Constituição, é monumental a contribuição na sua área própria quando o Supremo julgava o universo jurídico inteiro, sobretudo no direito privado. Mas a inteligência do Moreira Alves não é suscetível de fronteiras.

ConJur — Ele foi o grande nome do direito civil no STF?

Sepúlveda Pertence — Sim, indiscutivelmente, mas ele é uma tal cabeça jurídica que exerceu com plenitude a nova função de Corte predominantemente constitucional no Supremo Tribunal e isso deixou marcas, com as quais se pode concordar ou discordar, mas é evidente que com a sua sesquipedal inteligência jurídica e a sua capacidade de polemizar e de dialética absolutamente incomum, é claro que a jurisprudência no Tribunal, mesmo na parte constitucional, até na parte penal ainda é marcada por ele. Hoje, depois de sua aposentadoria, que coincidiu com várias aposentadorias em curto tempo, claro que esse acervo já sofre arranhões, mas ainda é um dos pilares da jurisprudência no Tribunal.

ConJur — O alinhamento interno no Supremo é algo fluido e fugaz. E o ministro Moreira Alves nunca economizou conflitos e atritos com os colegas. O senhor acha que o relacionamento entre os ministros deveria ser mais “harmônico”?

Sepúlveda Pertence — Não, são modos de ser. Lembro uma discussão sobre se os advogados deveriam ter acesso imediato ao quinto dos Tribunais de Justiça ou se deveriam passar pelos Tribunais de Alçada para depois ascenderem ao Tribunal de Justiça. Nós defendíamos acesso direto, Moreira Alves e eu, entre outros, discutindo, quer dizer, insistindo no argumento básico de que o objetivo do quinto constitucional é arejar o ambiente no Tribunal com a vivacidade, com o gosto pela polêmica e pela discussão dos advogados. E disse ele: “Depois de vinte e tantos anos de Supremo Tribunal, o que tenho eu de advogado?”. E eu falei “nem eu que tenho muito menos tempo”. Mas isso em um tom caloroso de discussão. E o Brossard abria os braços ao seu modo e dizia “logo se vê que não tem mais nada de advogado”.

ConJur — De compadrio os ministros do Supremo não podem ser acusados. Em outro contexto poderia ser tomado como uma critica e não é.

Sepúlveda Pertence — Confesso que, nos primeiros meses, a convivência com Moreira Alves não foi fácil. Exatamente pelo tom às vezes agressivo na discussão, mas logo descobri que isso era apenas o modo intelectual de ser.


ConJur — Outros não receberam esse traço com naturalidade, certo?

Sepúlveda Pertence — Não.

ConJur — Como é que o senhor descreveria a contribuição do ministro Paulo Brossard.

Sepúlveda Pertence — Paulo Brossard é uma dessas figuras típicas de uma Suprema Corte. Um homem de cultura humanística e memória histórica prodigiosa, e que, muitas vezes, sobrepunha as lições da experiência e as lições da realidade histórica a preocupações exclusivamente dogmáticas. Creio que teve em determinados momentos um papel fundamental nisso, que era o seu ponto forte.

ConJur — Em que área do direito ele participou da doutrina do Supremo?

Sepúlveda Pertence — Na área constitucional.

ConJur — Como é que o senhor me descreveria a contribuição do seu colega de indicação no governo Sarney, o ministro Celso de Mello?

Sepúlveda Pertence — Celso é ver os seus votos. Essa capacidade extraordinária de pesquisa. É profundo. Não é um homem de polêmica. Se eu o vi três vezes interromper um colega com maior bravura, com maior veemência como ocorreu recentemente creio no caso José Dirceu, foi muito.

ConJur — No caso do direito de defesa.

Sepúlveda Pertence — É, quando se chamou de picuinhas processuais, de uma questão política, etc [No caso José Dirceu, o plenário debatia o princípio que garante à defesa o direito de falar após a acusação, o que o Congresso ignorou. O ministro Joaquim Barbosa, por entender que o pedido do deputado era irrelevante defendia a rejeição da matéria].

ConJur — Outro nome dos mais citados, quando se trata de decisões do Supremo, é o ministro Marco Aurélio. Como o senhor analisa o papel do ministro Marco Aurélio no STF?

Sepúlveda Pertence — Eu acho que é positiva a sua rebeldia às doutrinas assentadas. A sua capacidade de reabrir discussões. É um antídoto que todo Tribunal deve ter contra a tendência, que é natural, da estagnação ou pelo menos da acomodação ao já discutido e decidido. Quer dizer: se muitos forem assim, seria o caos, mas um é sempre muito bom. E eu costumo sempre brincar com o ministro Marco Aurélio pelo amor pela solidão. Eu noto que ele não gosta muito quando outros aderem ao seu voto. Ele prefere ficar solitário.

ConJur — Recentemente ele falou que estava correndo o risco de não ficar sozinho.

Sepúlveda Pertence — Exato, foi em uma sessão recentíssima e realmente a indagação do presidente Jobim que gosta de liquidar a coisa “então, não há divergência”. Ele calmamente disse “há, presidente”. E para espanto dele, o relator ficou sozinho. Isso ocorreu três vezes na sessão, realmente ele ficou um pouco desnorteado, mas é altamente positivo o espírito rebelde.

ConJur — O senhor acha que bandeiras solitárias dele como a oposição à prisão do depositário infiel, a questão da prisão obrigatória enquanto se aguarda apelação, pode haver uma reversão, como houve na questão da progressão de regime para crimes hediondos?

Sepúlveda Pertence — Sim, são casos em que eu nunca respeitei a solidão dele. Houve pelo menos dois.

ConJur — Na questão em que ele afastou a presunção de violência em um determinado estupro também?

Sepúlveda Pertence — Não.

ConJur — Aí ele ficou sozinho.

Sepúlveda Pertence — É. Ele venceu um Habeas Corpus na turma, mas creio que, nas últimas conseqüências, respeita-se a sua solidão. Entende-se que pode haver erro de fato, que aquilo não é uma presunção de violência, mas uma incapacidade de consentir.

ConJur — Temos o ministro Gilmar Mendes, cuja indicação foi bastante discutida, o que não é incomum. No entanto ele se integrou com rapidez. Como o senhor vê a contribuição do ministro Gilmar Mendes?

Sepúlveda Pertence — Indiscutivelmente, o Gilmar tornou-se uma figura exponencial no ponto mais relevante da competência do Supremo, que é a jurisdição constitucional propriamente dita. O controle de constitucionalidade em particular, de tal modo a contribuição que ele tem trazido à discussão tem a maior qualificação.

ConJur — Como o senhor vê a chegada do ministro Peluso, um dos poucos juízes de carreira no Supremo.

Sepúlveda Pertence — De carreira até para ler os votos, como diz o ministro Brito. É difícil acompanhar o voto, porque ele lê de carreira. Ele lê com extrema rapidez, diz o Brito. É coisa de juiz de carreira. Só podia ser juiz de carreira (risos).

ConJur — O Peluso surpreendeu positivamente, não é?

Sepúlveda Pertence — O que eu digo é notoriamente uma das cabeças mais privilegiadas de que dispomos.

ConJur — Qual foi a contribuição a formação da doutrina atual no Supremo do ministro Sepúlveda Pertence?

Sepúlveda Pertence — Muito pouca. Não é nenhuma falsa modéstia, mas não creio ter trazido de substancial algo de novo.

ConJur — Na área penal.

Sepúlveda Pertence — Na área penal, uma maior experiência.

ConJur — E nas demais áreas?

Sepúlveda Pertence — Está chegando a hora de selecionar os votos que eu vou levar para casa. De um modo geral, o que sinto às vezes revendo os votos dos primeiros tempos é uma inveja danada da disposição e do entusiasmo que tinha. Mas recentemente, na área penal, teve repercussão o condicionamento do processo penal por crimes tributários à definição da existência e do débito questionado na instância administrativa. O problema do contribuinte que ainda está se defendendo nos Conselhos de contribuinte e se vê atacado por trás pela Receita.

ConJur — Enquanto não esgotar a fase administrativa, não há fase penal.

Sepúlveda Pertence — Sobretudo depois que a lei permitiu, porque hoje toda a legislação do crime tributário é apenas um auxílio do aparelho arrecadador, o que se quer mesmo é arrecadar. Então se permite ao sujeito, pelo pagamento, evitar o recebimento da denúncia, muitas vezes quando ele está discutindo a própria existência do débito. É uma forma de coação.

ConJur — Foi em sua gestão que se começou a discutir o projeto da TV Justiça?

Sepúlveda Pertence — Não. A TV Justiça vem com Marco Aurélio.

ConJur — Como é que o senhor vê o papel da TV Justiça?

Sepúlveda Pertence — É claro que é um passo extremamente audacioso de um Tribunal. Causa espanto que tenhamos aquela platéia, quer dizer, que tudo se decida em público. Salvo engano acho que só há paralelo no Tribunal Supremo da Suíça.

ConJur — Uma vez o ministro Moreira Alves brincou: “Agora os votos dos ministros ficaram maiores, mais demorados por causa da TV”. É verdade?

Sepúlveda Pertence — (bem humorado) E alguns reclamam, que deveríamos ter um auxílio gravata. Mas é mesmo audacioso. Agora, eu acho —, com todos os riscos —, o saldo de entender-se, minimamente que seja, o que é o Tribunal, o que estava em discussão neste caso, etc. pelo menos para o público que possa ter interesse e que para o meu espanto não se circunscreve aos juristas em geral. Já três ou quatro médicos de alto coturno, professores doutores de São Paulo contaram que se divertem assistindo aos julgamentos do STF.

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