Síndrome dos desiguais

Nepotismo é ponta do iceberg dos privilégios do setor publico

Autor

  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

7 de março de 2006, 13h10

Às vésperas da recente decisão do STF sobre a constitucionalidade da resolução antinepotismo do Conselho Nacional de Justiça, uma desembargadora do Estado de Alagoas se jactava do fato de ter dez parentes empregados em seu tribunal. Afinal de contas, não deviam ficar ao desabrigo, vivendo monasticamente em uma gruta, apenas por serem seus familiares. Após a decisão da Corte Suprema, a magistrada não se fez de rogada e respondeu que, então, substituiria os parentes por dez amigos.

Essa é uma versão caricata, conquanto veraz, do patrimonialismo impregnado na administração pública. Um pouco dele se desnudou com a luta antinepotismo no Judiciário. A expressiva maioria dos juízes se mostrou contrária à contratação de parentes em cargos comissionados. A resistência, no entanto, foi significativa nas altas esferas. Presidentes e corregedores de tribunais perfilaram-se unidos bradando pela ilegalidade da ação do CNJ, enquanto desembargadores concederam liminares pelo país afora em causas de interesses de seus colegas próximos.

Soube-se, assim, que o nepotismo era contexto no Judiciário, e não somente circunstância. Mas a ele se aferraram especialmente os donos do poder, a cujas famílias o emprego podia favorecer.

A proliferação de cargos de livre provimento, que permitem a políticos, administradores e juízes nomearem seus parentes, amigos e apaniguados, é um retrato falado desse patrimonialismo. Os cargos são disputados e distribuídos por motivações das menos profissionais, e seus ocupantes são eternos devedores — quando não efetivamente contribuintes — daqueles que os indicam.

Mantê-los em tal profusão significa institucionalizar o proveito privado do interesse público.

A decisão do STF é histórica e deve impor o fim do nepotismo no Estado brasileiro, por prestigiar a supremacia dos princípios constitucionais. No caso, a impessoalidade e a moralidade administrativa, imperativos aos Poderes. Antes de meras normas programáticas ou letras mortas de pura poesia, os princípios estão no ápice da pirâmide normativa, no dizer de Fábio Konder Comparato. São eles que não podem ser contrariados pelas regras, e não o reverso.

Mas o próprio STF se vê diante de uma decisão tão ou mais importante do que a que acabou de proferir sobre o nepotismo. Está na iminência de tornar as ações de improbidade imprestáveis contra prefeitos e outras autoridades. Essa ação tem sido o principal recurso jurídico para responsabilizar o mal governante, muitas vezes protegido pelas bancadas parlamentares, maiorias fiéis aos palácios de governo.

Se o julgamento prosseguir como está, com seis ministros votando pela incompatibilidade da Lei de Improbidade com os agentes políticos, apenas funcionários de baixo escalão poderão suportar a apreciação judicial de suas condutas. Isso é menos do que a igualdade, pois é justamente nas esferas de comando que a malversação de bens, recursos e valores se apresenta mais nociva.

A proteção do poder não surpreende, todavia, neste país acostumado ao “Você sabe com quem está falando?”, típico das autoridades flagradas no ilícito.

Há entre nós uma série de mecanismos legais segundo os quais o quociente da autoridade garante benefícios desproporcionalmente distribuídos. Mesmo sob o prisma do princípio da isonomia, que encima nossa pirâmide normativa, ainda vivemos uma síndrome dos desiguais.

O foro privilegiado de autoridades é um exemplo, herança longínqua das Ordenações Filipinas, que vigeu aqui na época do Brasil colônia. Reproduzimos hoje, com pequenas variações, a regra antiga de que fidalgos de grandes Estados e poder somente seriam presos por mandados especiais do rei.

Não há sentido, no entanto, em que uma pessoa acusada de homicídio possa ter alterado o foro de seu julgamento uma década após os fatos porque se elegeu deputado estadual, como aconteceu com o coronel Ubiratan. No novo órgão julgador, acabou beneficiado por uma interpretação benevolente e inusual da lei processual, que lhe valeu a isenção da responsabilidade por mais de uma centena de mortes.

A igualdade e a condição republicana não nos permitem conviver com a imunidade processual dos parlamentares, que os coloca acima da mesma lei que alcança os cidadãos; admitir uma Justiça própria para os militares, se todos os demais respondem por seus atos na Justiça comum; preservar a prisão especial para universitários em uma sociedade que nega o acesso ao ensino superior à maior parte de seus filhos.

O nepotismo é apenas a ponta do iceberg desta sociedade desigual, na qual autoridades buscam proteção, e os agentes públicos aprumam as suas próprias vantagens. São ministros que recebem como conselheiros de empresas, dirigentes de estatais que acumulam informações para o retorno à lucrativa iniciativa privada, parlamentares remunerados por vias transversas, com a multiplicação de verbas de gabinete que se autoconcedem, juízes que zelam pela legalidade da remuneração dos demais, mas ignoram o excesso de seus próprios limites.

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