Letra Escarlate

É difícil uma empresa se recuperar com o carimbo de fracasso

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7 de março de 2006, 7h00

A dinâmica ágil do universo empresarial tem ensejado, nos mais diversos segmentos, a criação de novas legislações e adaptações das existentes para amoldar o universo jurídico aos paradigmas propostos.

Um dos segmentos do Direito Empresarial brasileiro que necessitava de adequação diante do já instalado novo paradigma foi o Direito Concursal. Assim, foi promulgada, em 9 de fevereiro de 2005, com vigência a partir de junho do mesmo ano, a Lei 11.101, cuja finalidade é regular a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresarial.

Visando atender a uma nova perspectiva, o diploma institui a recuperação judicial em substituição a concordata, cria uma nova dinâmica para convolação da falência, valoriza o papel dos trabalhadores da empresa em crise, entre outras inovações. Vale ressaltar a nova teleologia, que privilegia além do credor, o fim social da atividade empresarial e sua importância na sociedade visando mantê-la em atividade. Corroborando essa nova teleologia, destacamos o artigo 47, a saber:

“A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo assim a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

Quando falamos em paradigmas já instalados, não incorremos em erro, pois diversos foram os casos anteriores à nova lei que, após o abandono da empresa por parte do empresário, o juiz autorizou a criação de cooperativas de trabalhadores para que esses pudessem continuar a atividade da empresa. Assim, uma prévia do que viria a ser o artigo 50, inciso VII, da lei em estudo.

Com a leitura do artigo 47, entende-se que a nova lei busca dar condições de recuperação ao empresário infeliz, mas honesto, para que possa continuar a atividade empresarial. O que, ao revés, refletiria em prejuízos para toda sociedade, com a dispensa de empregados, não pagamento de credores, etc., trazendo reflexos negativos não só para os imediatamente envolvidos mas a todos que indiretamente dependem da empresa em dificuldade.

Porém, a legislação (que já completará um ano de promulgação), como diversas outras do ordenamento jurídico, não veio em sua plenitude acertada ao anseio jurídico, esperançoso de uma lei que, de fato, propiciasse condições reais de recuperação para as empresas em dificuldades.

Nesse contexto, o tema do nosso trabalho é o procedimento final da recuperação judicial instituído pelo artigo 69 in verbis:

“Artigo 69: Em todos atos, contratos e documentos firmados pelo devedor sujeito ao procedimento de recuperação judicial deverá ser acrescida, após o nome empresarial, a expressão ‘em recuperação judicial’.”

E mais, seu parágrafo único:

“O juiz determinará ao registro público de empresas a anotação da recuperação judicial no registro correspondente.”

Feitos esses esclarecimentos e para uma melhor compreensão da nossa proposta, vale uma incursão no mundo da dramaturgia e da literatura norte-americana, a fim de identificar a problemática desse preceito, sem o intuito de aqui tecermos comentários acerca de toda a obra, o que não é nosso objetivo.

Em 1995, foi lançada uma compilação cinematográfica do livro de Nathaniel Hawthorne, cujo título é A Letra Escarlate1.

Do gênero dramático, o filme retrata a história da senhora Hester Prynne, uma bela jovem casada, recém chegada ao novo mundo (Massachussetts, Bay Colony, 1666), fugindo da perseguição religiosa inglesa. Ela tem a incumbência de encontrar um lar para o casal em seu novo país.

A bela mulher, que vivia presa a um simulacro de casamento, resultado de um pagamento de dívidas contraídas pelo pai, chega primeiro que seu marido (ou seria comprador?) e choca os habitantes daquela pequena localidade por possuir hábitos e comportamento diferentes dos esperados para mulheres daquela época.

A questão central do drama, portanto, se esvai ao adultério, conseqüência de uma paixão recíproca entre ela e um reverendo local. Ela não o pratica em desrespeito ou afronta a seu marido, mas por ter recebido a notícia da sua possível morte após um ataque indígena à embarcação a qual ele se encontrava. A morte do seu marido então a libertaria do título de esposa, transportando-a para o de viúva.

Ocorre que do adultério (naquela sociedade, enquanto houvesse luto, deveria ser respeitada a memória do falecido), resulta-se uma gravidez. A mulher, então, é condenada pelo direito consuetudinário local à prisão e, posteriormente, a trazer estampado em seu peito visivelmente a letra “A” de Adúltera, como forma de punição e reprimenda. Tudo para que ficasse evidente o crime por ela cometido, sujeitando-a às retaliações e sanções previstas naquele ordenamento.

Com isso, podemos igualar a norma do artigo 69 da lei concursal ao que ocorreu com a mulher tema do drama acima citado.

A norma dispõe que todos os atos firmados pela empresa submetida ao procedimento de recuperação judicial incluam, após sua denominação, a expressão “em recuperação judicial”, indicativa do procedimento ao qual ela está sujeita. Ainda, a expressão deverá constar de todos os documentos e atos praticados pela empresa, inclusive no cartório de registro público de empresas, por dois anos, a contar do deferimento da recuperação judicial.

Porém, a intenção do legislador infraconstitucional, a meu ver, confronta a finalidade da lei, que pretende dar condições à empresa de se recuperar.

Analogamente, podemos aproximar os problemas imbuídos nesse regramento à historia que alicerça nossa análise. Como poderá o empresário buscar meios de se recuperar trazendo consigo “A Letra Escarlate da Recuperação Judicial”, que o condenará perante a sociedade? Tal vício da lei trará à empresa, submetida ao procedimento de recuperação judicial, grandes dificuldades para seu funcionamento.

Da mesma forma que a bela protagonista busca uma vida nova em seu novo país e se depara com uma problemática realidade, o empresário, ao procurar uma oportunidade de se reerguer, por vias da recuperação judicial, levará consigo a insígnia do fracasso. Na obra, a condenação é imposta pela sociedade. Em nossa realidade, a condenação é imposta diretamente pelo legislador. Dessa condenação advirá o pré-julgamento da sociedade e daqueles que não creditarão confiança à empresa em recuperação.

Na história, em determinado momento, ocorre a esdrúxula situação em que a bela moça é acompanhada por um mancebo tangendo um tambor anunciando sua presença pela cidade, incitando, assim, o achincalhamento pelos seus pares. Em nossa realidade, o fato de um formulário de apresentação de proposta de serviço, nota fiscal ou uma certidão emitida por um dos órgãos oficiais para a recuperanda, acompanhada da expressão “em recuperação judicial” fará o papel do mancebo do enredo utilizado.

Não nos valemos aqui somente da nova regra de direito concursal para expormos nossa análise. Diversos outros diplomas jurídicos podem ser tomados como parâmetro, v.g., os de Direito Penal e Civil.

É sabido por todos as dificuldades dos egressos de casas de cumprimento de pena para se restabelecerem na sociedade. Aquele que foi submetido a uma pena imposta pelo Direito Penal carregará para sempre uma condenação moral da sociedade. Lamentavelmente, será rejeitado todo aquele que cumpriu pena, independente do regime e do motivo que o levou a condenação. No âmbito da responsabilidade civil, uma empresa condenada a pagar uma indenização, o pai que não paga a devida pensão alimentícia, o empresário falido, ambos serão condenados a usar a maculosa “Letra Escarlate” imposta pela sociedade.

Diverge a lei ao tornar explícita a condição de recuperanda da empresa, pois vários obstáculos poderão ser gerados por essa determinação. Elencando algumas hipóteses onde surgirão esses entraves, destacamos dificuldades de fornecimento de produtos e serviços, contração de fornecedores e serviços, contratação de mão-de-obra, entre outras. Implicará na atividade da empresa, pois o fato dela não conseguir contratar fornecedores de matérias-prima, e até mesmo mão-de-obra, gerará problemas com a produção; haverá dificuldades em adquirir insumos e utensílios essências ao seu funcionamento cotidiano gerando óbices à obtenção de resultados; prejudicará a oferta dos seus produtos e serviços, uma vez em recuperação despertará na contratante o receio de que não seja capaz de oferecer o serviço ou produto.

Recuperar pressupõe readquirir algo perdido, recobrar, reabilitar-se. Esse verbo, de natureza objetiva, transcreve a situação da empresa: está se recuperando. Recupera se em algum momento esteve em dificuldade e busca meios de se reerguer, trazendo consigo o estandarte da dificuldade. Com tal regramento, exaurem-se as condições dadas a esta empresa de competir no mercado (lembremos que a livre concorrência é um preceito constitucional, artigo 170, inciso IV).

Entendemos que essa condição poderia ser uma condição interna ao processo, de interesse restrito às partes. É irrefutável que a situação econômica da empresa seja de interesse público. Torna-se controverso o preceito do artigo 69 em detrimento ao novo paradigma proposto pela nova lei, quando explicita a dificuldade pela qual a empresa passa.

Não se pode avaliar ainda os resultados do novo regramento. Num futuro breve, os casos concretos poderão dizer se as premissas negativas aqui apontadas de fato surgirão, ou se foi acertada a inserção desse dispositivo à nova legislação. Temerário é esperar de uma norma que aprovisione dar condições de recuperação às empresas em dificuldades, tache-as de fracassada.

Essa, entre as diversas outras “Letras Escarlates” do ordenamento jurídico, devem ser repensadas para que no futuro não sejam parte intrínseca de uma lei, tornando-as fortes, concretas e com finalidades condizentes aos mecanismos utilizados.

Notas de rodapé

1 – Hollywood Pictures. The Escarlet Letter, direção de Roland Joffé, produção de Andrew G. Viajna, roteiro de Douglas Day Stewart. 1995.

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