Decisão nos autos

TJ-SP não cedeu à opinião pública no caso do coronel Ubiratan

Autor

  • Ives Gandra da Silva Martins

    é professor emérito das universidades Mackenzie Unip Unifieo UniFMU do Ciee/O Estado de S. Paulo das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme) Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor honorário das Universidades Austral (Argentina) San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia) doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS catedrático da Universidade do Minho (Portugal) presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).

3 de março de 2006, 12h36

Robert O’Neil Bristow, em seu conto Beyond any Doubt (Law – A Treasury of Art and Literature – Hugh Lauter Levin Associates, Inc., 1990), narra a história de personagem que participa de um júri, em Estado, no qual, para a condenação à morte de um acusado, haveria a necessidade de os 12 membros do Conselho de Sentença votarem a favor da pena máxima.

Neste conto, o júri, reunido há 30 horas, encontrava-se num impasse, pois 11 dos jurados eram favoráveis à pena máxima, mas encontravam, no personagem principal, objeção intransponível para acompanhar tais votos. Não cedia a qualquer argumento, mesmo à ameaça de um dos jurados, que era banqueiro, de negar-lhe um empréstimo que solicitara, se ele não votasse pela pena máxima.

O juiz togado que presidia o Conselho, depois de verificar que todas as tentativas eram inúteis, perguntou-lhe “mas você não sente que ele é culpado”? E a resposta foi: “Eu sinto, mas o senhor deseja que eu decida pelo que eu sinto ou pelo que eu conheço dos autos”? A resposta, à evidência, encerrou a discussão e, na hora da votação, o próprio juiz togado acompanhou o obstinado defensor da necessidade de decidir de acordo com o conteúdo dos autos. Um outro jurado deixou de votar pela pena de morte e reconsiderou o seu voto.

Lembrei-me do conto em face da decisão do Tribunal de Justiça —órgão especial— de São Paulo, que absolveu o coronel Ubiratan, à luz dos elementos constantes dos autos, deixando de lado o subjetivismo do clamor popular, para restringir-se apenas ao que constava do processo, ou seja, de que teria agido, o referido cidadão, no exato cumprimento de suas funções, como havia considerado o Tribunal de Júri, por seis votos a um, portanto, a favor do acusado.

É interessante que dois excelentes juristas como são o desembargador Mohamed Amaro, relator do feito, e o revisor entenderam de forma diversa da esmagadora maioria, superando a preliminar (estrito cumprimento do dever) pelo aspecto a seguir examinado, em que a votação foi pela condenação (4×3), ou seja, de que teria havido excesso na ação de invasão do Carandiru.

Pessoalmente, não entro no mérito da questão, até porque está fora da minha área de reflexão, não estudei o processo e só tive conhecimento da decisão do TJ no dia, não tendo sequer assistido ao juri ou à sessão do Tribunal. O elemento que me parece, entretanto, fundamental para reflexão dos operadores de direito, neste e em outros processos de qualquer área, é que, nos tribunais, a Justiça só se faz a partir do que está documentado nos autos, não existindo para o julgador imparcial elementos externos que possam influenciá-lo na sua decisão. O magistrado só deve falar nos autos e sobre os autos, jamais fora do processo e sobre matéria de que não tenha tomado conhecimento pelos meios de instrução pertinentes.

Creio que, para todos os operadores do direito, tal lição está na essência da litigiosidade no processo, lembrando-se que a segurança jurídica decorre, exatamente, de o processo permitir a ampla defesa e a ampla produção de provas, mas não que as decisões sejam fundadas em meros elementos e ilações fora dele e sem relação direta com o conteúdo probatório dele emanente.

No caso, à evidência, o que houve foi o exame a partir dos quesitos colocados para o Tribunal de Júri, cabendo aos magistrados, exclusivamente, o exame do que os jurados responderam às perguntas formuladas. Não o exame do que a mídia achou que aconteceu, naquele dia.

Pessoalmente, creio que houve excesso na invasão que culminou com a morte de 111 seres humanos desarmados, parecendo-me difícil ter havido o estrito cumprimento do dever — que é o de evitar dano maior à pessoa que cabe à polícia militar prender ou acusar. É, todavia, opinião pessoal, decorrente do resultado lamentável de tantas mortes, com o que, pelo meu “sentimento”, talvez o condenasse, como cidadão. Se magistrado fosse, entretanto, teria que ficar adstrito exclusivamente aos autos e decidir não de acordo com as minhas impressões, mas, rigorosamente, conforme as provas e os elementos constantes do processo.

Parece ter sido esta a postura do órgão especial do Tribunal de Justiça, tendo a coragem de se ater ao conteúdo dos autos e não a elementos fora dele, e de não se curvar à opinião pública. Só assim é possível ofertar “segurança jurídica” aos cidadãos.

Artigo originalmente publicado no jornal Gazeta Mercantil, em 1º de março de 2006

Autores

  • Brave

    é advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.

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