Os justiceiros e o Judiciário

Crítica a decisões tem de ser baseada em critérios técnicos

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3 de março de 2006, 10h35

Sem debater o caso concreto, trago algumas considerações sobre as críticas formuladas ao Tribunal de Justiça de São Paulo por ter absolvido um oficial da reserva da Polícia Militar, o qual fora condenado pelo Tribunal do Júri como responsável pelas mortes de 111 pessoas no chamado “massacre do Carandiru”. Tais críticas guardam semelhança com as que se fazem a outras decisões que desagradam a “opinião pública”, que, normalmente, é o pensamento que determinado grupo transforma em “senso comum” a respeito de determinado fato, especialmente quando se trata de causa criminal.

O curioso é que os “donos da verdade e da justiça” se alternam no papel de críticos das decisões judiciais: ora são os adeptos da “direita penal” a vociferar contra a “benevolência” com que os juízes tratariam os acusados de crimes comuns; doutras vezes são os integrantes da “esquerda punitiva” a bradar contra a “proteção” que os juízes dariam aos “criminosos poderosos”.

No meio dos dois grupos, há os que fazem da prática acusatória profissão de fé, aqui inclusos os que se consideram cidadãos “de bem”, mas que não hesitam, por exemplo, em adquirir produtos sabidamente de origem ilegal, desde que mais baratos, nem se pejam de procurar um “jeitinho” para resolver pequenos imprevistos que enfrenta toda pessoa “de bem”.

O discurso é sempre igual: quando absolve alguém, o Judiciário é responsabilizado pela violência e pela criminalidade, e todos se unem no grito contra a impunidade. É verdade que, quando um dos grupos protesta, o outro celebra, e vice-versa-mas não nos esqueçamos de que sempre haverá os posicionados eternamente de dedo em riste…

Assim, a pretexto de dessacralizar o Judiciário, atacam-se as decisões por ele proferidas-mas somente aquelas tidas por “benevolentes”, que, de qualquer forma, tenham reconhecido direito a um acusado-, e, para sustentar o ataque, buscam-se fundamentos em opiniões de “especialistas”, os quais discorrem sobre o “erro” do julgamento, mesmo que nem conheçam os autos ou o ordenamento jurídico. O Estado democrático de Direito é de somenos para os críticos, que preferem a “justiça” das opiniões “especializadas”, embora estas, muitas vezes, se assemelhem ao “palpite infeliz” que inspirou Noel Rosa a compor seu belo samba.

Não pretendo sustentar que os juízes não erram e não possam ter suas decisões debatidas e criticadas; erram, sim, mas, infelizmente, erram muito mais quando condenam do que quando absolvem ou reconhecem alguma circunstância favorável ao acusado. E quando o juiz erra, há quase sempre a possibilidade de reparar o erro por meio de recursos legalmente previstos.

Aqueles, porém, para quem o Estado democrático de Direito não passa de expressão pomposa, sem significado intrínseco, não se conformam ao devido processo legal e, por isso, não aceitam decisões que absolvam os “criminosos do lado de lá”. Não aceitando as decisões que os contrariam, mas não confiando em seus argumentos jurídicos, valem-se da mídia para coagir os que julgarão eventuais recursos. Busca-se, com isso, transferir o poder decisório atribuído constitucionalmente ao Judiciário para grupos organizados, que se encarregam de criar o “senso comum”.

Não trato do caso concreto, mas é impossível não observar que, no julgamento efetuado pelo Tribunal do Júri, há vários aspectos técnicos envolvidos que podem levar a diferentes decisões, conforme as respostas dadas aos quesitos pelos jurados. E quando o TJ analisa esses aspectos técnicos ao julgar recurso interposto contra decisão do júri, nada mais faz do que conferir às respostas dos jurados o seu valor jurídico próprio, o que é muito diferente de exercitar adivinhação sobre a vontade dos jurados. Se se quiser criticar decisão judicial, que se o faça com argumentos técnicos, não por meio da ridicularia que costuma caracterizar as gritas dos insatisfeitos.

Convém sempre lembrar que somente haverá verdadeira segurança jurídica para todos na exata medida do respeito às normas do devido processo legal, e o garantidor deste, num Estado democrático de Direito, é o Poder Judiciário. Ainda, porém, que se considere que este errou, é melhor não ceder à tentação de substituí-lo pelos “juízos de opinião”.

Afinal, se aceitarmos substituir o Judiciário por “justiceiros especialistas”, melhor talvez será pedir a Manuel Bandeira que nos apresente ao seu amigo e nos leve para Pasárgada, onde “(…) tem tudo / É outra civilização / Tem um processo seguro / De impedir a concepção / Tem telefone automático / Tem alcalóide à vontade / Tem prostitutas bonitas / Para a gente namorar; E quando eu estiver mais triste / Mas triste de não ter jeito / Quando de noite me der / Vontade de me matar / -Lá sou amigo do rei- / Terei a mulher que eu quero / Na cama que escolherei / Vou-me embora pra Pasárgada”.

Se Bandeira não nos ouvir ou não nos puder atender, então vamos pra Pocilga; qualquer uma, e não haverá diferença entre lá e aqui se o Judiciário houver sucumbido à coação das fiandeiras de cárceres, dos proxenetas da segurança, dos violadores da Constituição.

Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S. Paulo

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