Reflexos da Anaconda

Revista IstoÉ Dinheiro não terá de indenizar delegado

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27 de maio de 2006, 7h00

A 1ª Vara Cível da Lapa, em São Paulo, julgou improcedente ação interposta pelo delegado federal Nivaldo Bernardi contra a revista IstoÉ Dinheiro. O delegado pedia indenização por danos morais por conta de reportagem publicada em dezembro de 2003, que o apontava como suspeito de receber propina de fabricante de computadores, para acobertar o contrabando de componentes eletrônicos. A notícia se baseava em investigações da Operação Anaconda, comandada pela Polícia Federal.

A IstoÉ Dinheiro veiculou informações a respeito de empresas investigadas por suspeita de pagar propina a autoridades, em troca de sentenças favoráveis ou outros benefícios escusos. De acordo com a reportagem, gravações da Polícia Federal indicavam que o delegado teria recebido suborno.

O delegado pediu indenização de R$ 30 mil por danos morais, alegando que a revista “extrapolou os limites legais estabelecidos para o exercício do direito de liberdade de informação”. Argumentou, ainda, que a reportagem usou palavras ofensivas que denegriram sua imagem diante da sociedade. Em sua defesa, afirmou que “nunca recebeu qualquer propina, não foi intimado pelas autoridades para fornecer informações sobre os fatos da “Operação Anaconda” e tampouco foi alvo de qualquer tipo de investigação”.

A revista, representada pela advogada Claudia Regina Soares dos Santos da área jurídica da Editora Três, alegou que “limitou-se a transmitir a notícia de alto interesse público referente a suspeita de envolvimento de pessoas públicas, no exercício de função pública, com corrupção, e com processo criminal em andamento”. A defesa argumentou também que o nome do delegado só foi citado na reportagem porque aparece em gravações telefônicas autorizadas feitas pela Polícia Federal.

O juiz Júlio César Silva de Mendonça Franco, da 1ª Vara Cível, julgou a ação improcedente. Ele considerou que não houve abuso por parte da revista, que se restringiu a narrar fatos cumprindo o seu papel e sem extrapolar a liberdade de imprensa. Ressaltou, ainda, que o fato de o autor ainda não ter sido denunciado, não obsta a divulgação da notícia.

“Evidentemente a nossa Carta Magna prescreve que qualquer cidadão apenas pode ser considerado culpado após sentença penal transitada em julgado. Não poderia ser diferente. Mas isso não impede que a imprensa, no desempenho do seu regular dever de informar, venha a divulgar assunto de tal magnitude à coletividade”, argumentou o juiz.

E terminou a sua decisão destacando que “a vergonha e a afronta à moral, nesse caso, não decorrem da notícia em testilha, mas sim do envolvimento do autor na prática de atos tão desairosos e repugnantes, o que continua a ser objeto de investigação no inquérito no qual o demandante se viu envolvido.”

Processo 004.04.002016-2

Leia a íntegra da decisão

Vistos, etc.

I. NIVALDO BERNARDI movimentou a presente Ação de Indenização por Danos Morais – Rito Ordinário em face de TRÊS EDITORIAL LTDA alegando em resumo, que atua como Delegado da Polícia Federal, sendo um profissional exemplar e respeitado por todos.

Ocorre que a Ré veiculou na revista “IstoÉ – Dinheiro”, do dia 17/12/2.003, uma matéria sobre sua pessoa, extrapolando os limites legais estabelecidos para o exercício do direito da liberdade de informação.

Disse que na publicação foram usadas palavras ofensivas que denegriram sua imagem diante da sociedade, sendo que a Ré divulgou na imprensa uma matéria sobre as empresas envolvidas na “operação Anaconda”, onde mencionou seu nome como recebedor de propinas da empresa Metron para dar cobertura no contrabando de componentes eletrônicos.

Acontece que o Autor nunca recebeu qualquer propina, não foi intimado pelas autoridades para fornecer informações sobre os fatos da “operação anaconda” e tampouco foi alvo de qualquer tipo de investigação.

Disse que a conduta abusiva da Requerida lhe causou diversos constrangimentos e aborrecimentos, razão pela qual deseja receber indenização pelos danos morais suportados em valor a ser arbitrado pelo Juízo, em quantia não inferior a R$ 30.000,00.

Requer a condenação da Ré à publicação da sentença, na íntegra, em órgão de imprensa indicado pelo Demandante. Devidamente citada (fls. 23 verso), a Requerida apresentou sua contestação as fls. 35/44. Em síntese, alegou que limitou-se a transmitir notícia de alto interesse público referente a suspeita de envolvimento de pessoas públicas, no exercício de função pública, com corrupção, e com processo criminal em andamento.

Disse que o nome do Autor foi mencionado por estar envolvido nas investigações da Polícia Federal sobre o assunto e por existir gravação de conversa telefônica autorizada vinculando sua pessoa com a empresa Metron, onde o primeiro daria cobertura às atividades ilícitas da última em troca de patrocínio de carro de corrida.


Asseverou que a matéria é clara, objetiva, exclusivamente de caráter informativo, sem qualquer opinião pessoal dos jornalistas subscritores e embasada em fontes confiáveis de informação. Impugnou o pleito indenizatório e as verbas exigidas a este título, por não ter dado causa a prejuízo algum e por ser muito superior àquela prevista nos artigos 51 a 53 da Lei de Imprensa.

O Autor replicou as fls. 64/65 os termos das respostas oferecidas e na oportunidade reiterou os argumentos e pedidos constantes da peça vestibular. Em despacho proferido a fls. 70 foi determinada a expedição de ofício ao Tribunal regional Federal da 3ª Região para solicitar informações sobre o envolvimento do Autor no inquérito que ensejou a propositura da ação referida a fls. 68, o que foi atendido a fls. 77/81 e 84.

Através dos petitórios de fls. 91/92 e 96/97 as partes teceram novas considerações nos autos. É o breve relatório. D E C I D O . II. A ação é improcedente. Antes de mais nada, cumpre denotar que a matéria cerne da celeuma está a dispensar a ampliação do leque instrutório, motivo pelo qual se mostra viável o julgamento antecipado da contenda.

Através da presente demanda o Acionante pretende o recebimento de indenização por danos morais suportados pelo mesmo, em decorrência de notícia veiculada pela Requerida na revista “Isto É – Dinheiro”. Ressaltou que o periódico em questão teria vinculado o seu nome e cargo à empresa Metron em esquema de corrupção, o que lhe causou danos de ordem moral.

Acontece que uma criteriosa leitura da reportagem cerne desta contenda (pág. 40 do periódico – fls. 17 dos autos), nos conduz à ilação segura de que não houve abuso algum por parte da Requerida, a qual se restringiu a narrar fatos de interesse público, cumprindo o seu dever de ofício, sem com isso extrapolar as bitolas da liberdade de imprensa.

A reportagem teve por base informações de investigações oficiais sobre o caso, o que ensejou a instauração do inquérito policial número 533/SP (fls 84). Não se olvida que ainda não tenha havido denúncia contra o Acionante em razão do inquérito policial instaurado.

Mas isto é de somenos importância para o deslinde desta contenda, pois o que se mostra relevante mesmo é o fato de que a pessoa jurídica Demandada e os demais órgãos de imprensa tiveram contato com documentos contundentes acerca da prática de atos gravíssimos na sociedade (relatórios parciais da Polícia Federal), os quais se prestaram perfeitamente bem para justificar a sua subseqüente vinculação a inquérito policial.

Evidentemente a nossa Magna Carta prescreve que qualquer cidadão apenas pode ser considerado culpado após sentença penal transitada em julgado. Não poderia ser diferente. Mas isso não impede que a imprensa, no desempenho do seu regular dever de informar, venha a divulgar assunto de tal magnitude à coletividade.

Aliás, o interesse público nesse caso, justificador da propagação da notícia em análise, se acha demonstrado pela notoriedade profissional do Autor, que exercia cargo público de Delegado Federal e se encontrava envolvido em investigações.

E o “animus narrandi” que imbuiu o espírito da Ré e norteou a reportagem em testilha deflui da realidade de haver sido consignado nesta última que “a Metron é suspeita de pagar propina para os delegados federais José Augusto Bellini, Nivaldo Bernardi e Dirceu Bertin para que dessem cobertura no contrabando de componentes eletrônicos” (fls. 17 – pág. 10).

Portanto, a despeito da existência da citação de seu nome na matéria, o que não basta para os fins perseguidos pelo Autor, fica claro que em momento algum a Acionada pretendeu imputar a prática de crime ao Requerente ou de expor a sua pessoa ao descrédito ou mesmo ofender-lhe a honra pessoal.

Isto sim, restringiu-se à narração dos fatos havidos, reproduzindo o que fora constatado nas investigações em curso e denotando, sobretudo, que o mesmo era apenas SUSPEITO de receber propina, sem afirmar conclusivamente tal fato.

E em casos que tais não se pode pretender a responsabilização do órgão de imprensa ou mesmo daqueles que atuam junto ao mesmo, pois, na espécie, não se caracteriza a prática de ilícito algum. A esse respeito, cabe pinçar o seguinte escólio doutrinário: “É dever de ofício do jornalista informar, transmitir ao público os acontecimentos de interesse geral, de modo que imune à sanção civil o profissional que, de forma objetiva e fiel, reproduz os fatos ocorridos na vida pública.

Na síntese de Darcy de Arruda Miranda: ‘a imprensa, como veículo de informações, veria cerceada a sua liberdade se não pudesse narrar os fatos ocorrentes em toda a sua crueza, em toda a sua pungente ou insultante realidade.

Para o jornalista, a narração da verdade sobreleva toda e qualquer consideração de ordem pessoal ou política, porque ela se lhe impõe como dever funcional’. (…) No exercício deste direito-dever o jornalista pode ser obrigado a relatar fatos desabonadores, situações que objetivamente são desprestigiosas para as pessoas retratadas.


Nem esta circunstância retira da conduta o caráter de licitude. ‘Há fatos que, por sua natureza, já são escandalosos e, por conseqüência, desprimorosos para quem os vive. Ora, se é função da imprensa a informação (a narração), não se poderia pretender efeitos de direito penal sobre a notícia de tal gênero, pois aí se vislumbraria, apenas, o ‘ius narrandi’. Existe, inquestionavelmente, um interesse publico, que reclama da imprensa, instantemente, notícias, informações, opiniões, exposições ‘et coetera’.

E é, em regra, com a atenção voltada sobre essa exigência que a imprensa se realiza'” (GARCIA, Enéas Costa. ‘Responsabilidade Civil dos Meios de Comunicação’. 1ª edição. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 322). No mesmo sentido converge a melhor jurisprudência, da qual fazem eco os seguintes excertos: “Indenização – Dano Moral – Pessoa jurídica no pólo ativo da demanda – Admissibilidade – Lei de Imprensa – Notícia verdadeira veiculada – Divulgação de fatos de interesse da coletividade – Ausência de intenção de expor as pessoas envolvidas ao descrédito e de ofender-lhes a honra – Verba não devida – Recurso provido, prejudicado o recurso adesivo” (RSTJESP 251/105);

“Divulgação, em jornal, de notícia de estupro, constante de Boletim de Ocorrência Policial, sem acréscimo de comentários ultrajantes ou ofensivos à dignidade do acusado, não traduz abuso do direito de informação, nem violação do direito à honra do alegado autor do delito. Mero desinteresse da vítima, manifestado em declarações prestadas à Autoridade Policial, na instauração de ação penal não pode ser equiparado à retratação. Negligência da ré não caracterizada. Improcedência do pleito indenizatório” (RSTJESP 258/110);

“Indenização – Danos materiais e morais decorrentes de ato ilícito atribuído a empresa jornalística – Divulgação não abusiva dos fatos constantes de documento policial – Irrelevante a circunstância de posterior absolvição por falta de provas suficientes – Ausência de propósito doloso ou culposo de ferir a honra do acusado – Notícia que embora não reproduza o auto de prisão em termo técnico, se atém nos limites aceitáveis – Inexistência de violações contempladas no artigo 4º da Lei n. 5.250, de 1967 – Decisão mantida – Recurso improvido” (RSTJESP 217/88);

“O texto jornalístico que se restringe a reproduzir acusações devidamente formalizadas por federação de sindicatos, perante o TST, de mau uso de verbas públicas, prática de nepotismo e tráfico de influência, não pode ensejar responsabilidade por dano moral porque não constitui abuso de direito de informar” (RT 820/172).

Para finalizar, cabe destacar que a vergonha e a afronta à moral, nesse caso, não decorrem da notícia em testilha, mas sim do envolvimento do Autor na prática de atos tão desairosos e repugnantes, o que continua a ser objeto de investigação no inquérito no qual o Demandante se viu envolvido (fls. 84).

III. ISTO POSTO, JULGO IMPROCEDENTE a Ação de Indenização por Danos Morais – Rito Ordinário movida por NIVALDO BERNARDI contra TRÊS EDITORIAL LTDA, à míngua da existência de qualquer abuso ou ofensa na notícia objeto da cizânia, de modo a configurar a prática de ato ilícito pela Ré, restando afastada, assim, a responsabilidade indenitária da mesma nesse caso.

Em conseqüência, condeno o Requerente ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios que ora arbitro eqüitativamente (artigo 20, § 4º, do CPC) em R$ 800,00 (oitocentos Reais).

P. R. I.

São Paulo, 28 de Abril de 2.006.

JÚLIO CÉSAR SILVA DE MENDONÇA FRANCO

Juiz de Direito

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