Excludente e dirimente

Deputado ofende, mas depoente é que comete desacato

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26 de maio de 2006, 7h00

Durante a tarde de 25 de maio, o cronista, perdido nas atividades profissionais, recebeu alguns telefonemas no sentido de se inteirar de dramático incidente concretizado durante a acareação dos advogados Sérgio Weslei Cunha e Maria Cristina de Souza Rachado, suspeitos de terem adquirido trechos de transcrição de reunião sigilosa mantida por uma determinada comissão da Câmara dos Deputados.

Instado a tanto, foi examinar a cena incessantemente pelas diversas redes de televisão do país. Captou um pequeno pedaço mas, do que viu e ouviu, testemunhou deselegante, deseducada e insultuosa forma usada pelo deputado Faria de Sá para inquirir o advogado posto na berlinda.

Diga-se que o cronista não conhece o doutor Sérgio, nunca soube que ele existisse e apenas o viu misturado na confusa história apurada pela CPI. Aliás, o fato de ser advogado não modifica de maneira alguma a péssima impressão deixada pelo parlamentar que deu origem ao bate-boca.

A Câmara dos Deputados, por suas comissões, funciona com uma sorte de jurisdição. Dir-se-ia que são elas, em certa medida, equiparadas a uma espécie de juízes de instrução. Têm eles imunidade penal quase absoluta e, nas hipóteses em que a perdem, a própria lei lhes garante, salvo exceções, julgamento em foro privilegiado. Assim, em certa medida, fazem o que querem enquanto integrando as propaladas Comissões Parlamentares de Inquérito.

A falta de educação verificada nos dois parlamentares se insere, evidentemente, nas dirimentes de culpabilidade asseguradas aos deputados e senadores da República. Dentro do contexto, incluindo-se o defeito do exercício arbitrário de função pública ou do abuso de autoridade, tudo se mistura, mesmo porque a imunidade penal dá ao parlamentar a possibilidade do uso de um açoite que, solidificado nas mãos do carrasco, não mais se desprega, incrustando-se na rotina.

Aconteceu isso nesta quinta-feira (25/5). Perdendo o controle, o primeiro deputado insultou o indiciado. Chamou-o de malandro só pelo fato de ter exercido o direito constitucional de se calar. Veio a volta merecida: “Aqui se aprende rápido”. Depois disso, instalando-se o desequilíbrio no Plenário, o deputado Alberto Fraga insultou outra vez indiciado, repetidamente, chamando-o de bandido e dizendo que merecia um par de algemas. Em seqüência, o indiciado apareceu com os pulsos presos por aquelas algemas costumeiramente usadas na ditadura.

Houve prisão em flagrante, por ordem do presidente, exatamente aquele responsável pela primeira parte da injúria. Desconheciam todos, inclusive o presidente, as particularidades reitoras das condutas de menor potencial ofensivo. Aliás, o primeiro autor do insulto, deputado Arnaldo Faria de Sá, é advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil secção de São Paulo sob o número 61.171, constando no cadastro geral, que é público, tratar-se de profissional ativo.

Não há nos assentamentos dedicados ao povo qualquer anotação de restrição, licença ou impedimento. Pode tratar-se de homônimo mas, cuidando-se do mesmo, deve apresentar-se à corporação, depositando sua carteira para as devidas providências. Presidentes de comissões não podem advogar. Deputados federais têm restrições.

Tocante ao segundo (aquele que chamou o indiciado de bandido), era coronel da Polícia Militar. Lá, aprendeu rudimentos da ciências jurídicas, aperfeiçoando-os no bacharelado e sabendo, portanto, que a Constituição garante ao cidadão o direito à intangibilidade.

Ultrapassado o breve comentário, prossiga-se. Houve, na verdade, três atitudes absolutamente ilícitas dos deputados: uma caracterizou injúria e difamação. Indiretamente, o deputado interrogador chamara o indiciado de malandro. Outra se tipificou quando o deputado Fraga assentou que o indiciado era um bandido. A terceira, quem sabe mais grave, se consumou quando o presidente, numa incrível demonstração de força, mandou algemar o indiciado, tudo à frente de milhões de brasileiros, tudo em razão de ter o indiciado defendido sua honra contra um parlamentar que se aproveitava de sua posição para ver gastar o couro daquele que, no fim das contas, se esperava fosse a vitima inerte de conduta misturada, até em certa dose de sadismo.

Perceba-se muito bem: o deputado tem imunidade penal, mas comete infração também, embora não possa ser punido. É a diferença entre uma excludente e uma dirimente. Não se sabe, na circunstância, qual será o comportamento das 27 seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil. Sabe-se apenas que o país tem hoje 500 mil advogados e alguns milhões de aparelhos de televisão.

Viram, os brasileiros, indelicadezas, grosserias, descortesia, no mínimo, tripudiando os inquisidores, sobre alguém que, posto em delicadíssima posição, não deveria retorquir, tendo a surpresa de ouvir uma resposta cujo único defeito, gerado pela emoção, foi aquele de abranger, porque generalizada, toda a casa legislativa.

É curioso, aqui, o doesto genérico: quando se afirma que um imóvel apodreceu, todos os cômodos podem ser postos nos maus odores, atingindo-se, com isso, aquelas repartições preservadas. Referisse-se o indiciado àqueles parlamentares postos na grande sacola das apurações de desvios, recebimento de dinheiros, participações em multifárias operações financeiras e, quem sabe, poderia ter partido para justificativa mais acentuada da revolta.

Fê-lo, na provocação, o inquisidor: chamou o indiciado de malandro. Individualizou. Este, na retorsão, arredondou: “Aqui se aprende rápido”. Nessa medida, os deputados ofensores mereceram o que tiveram, enredando-se a resposta na exclusão da ilicitude, na medida em que constituiu retorsão imediata.

Aprenderam, depois disso, que é mérito do magistrado respeitar os mandamentos constitucionais. Se todos os inquiridos fizessem, na medida certa, o que fez o indiciado, conduzir-se-iam melhor os interrogadores. Pecou o moço sim porque, pressionado, e com a boca entupida pelos arroubos do poder, não pôde enumerar um por um aqueles deputados envolvidos nos escândalos que assombram o país — uns inocentes, outros culpados, mas que não deixariam passar sem revide, certamente, se apontados como malandros, uma injúria ou difamação que se incrusta na carne do ofendido e o avilta perante toda a comunidade.

A conduta do deputado e a ação do presidente da CPI, ferindo a honra do indiciado e mandando lhe que pusessem algemas é, no mínimo, execrável. Quanto aos grilhões, mande o presidente da comissão pendurá-los atrás de si, junto aos painéis e balangandãns que ornamentam o plenário.

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