Malas de reais

Igreja Universal não consegue reaver dinheiro apreendido

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25 de maio de 2006, 18h56

O Supremo Tribunal Federal indeferiu pedido da Igreja Universal do Reino de Deus e do deputado federal e bispo João Batista Ramos da Silva (PFL-SP) para que o dinheiro apreendido pela Polícia Federal fosse substituído por imóveis oferecidos como caução. O bispo foi detido em julho de 2005, no Aeroporto Internacional de Brasília, quando tentava embarcar com sete malas recheadas com R$ 10 milhões, aproximadamente.

A Igreja Universal sustentou que o valor apreendido seria meio indispensável para a manutenção das atividades religiosas. As investigações visam apurar suposto crime de lavagem de dinheiro, contra a ordem tributária e econômica e contra o sistema financeiro nacional, previstos nas Leis 9.613/98, 8.137/90 e 7.492/86.

O ministro Ayres Britto, relator do caso, entendeu que a caução de bens imóveis para garantir o levantamento do numerário não se enquadra nas hipóteses legais previstas na Lei 9.613/98 e pelo Código de Processo Penal. O ministro ressaltou que o dinheiro apreendido nas malas constituiu a própria materialidade do crime de lavagem de dinheiro. Laudo de exame de moeda, realizado pela Polícia Federal, atestou a presença de notas seriadas e de 16 cédulas falsas.

O relator destacou, ainda, que o pedido em questão “no sentido de que a constrição judicial recaia sobre bem imóvel de propriedade da Igreja Universal, edifício-sede da rede Record de televisão, não se enquadra em nenhuma das hipóteses legais autorizativas da restrição patrimonial”.

Para ele, a apreensão de valores em espécie, como ocorreu no caso, “tem a serventia de facilitar o desvendamento da respectiva origem e ainda evitar que este dinheiro vivo entre em efetiva circulação retroalimentando assim a suposta ciranda da delitividade”. O dinheiro está hoje retido na Caixa Econômica Federal.

INQ 2.248

Leia a íntegra da decisão

25/05/2006 TRIBUNAL PLENO

QUEST. ORD. EM INQUÉRITO 2.248-9

DISTRITO FEDERAL

VOTO

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO (Relator) Feito o relatório, passo ao voto. Ao fazê-lo, não me animo a deferir a pretendida substituição; ou seja, a substituição do dinheiro apreendido por imóveis oferecidos em garantia. É que o art. 4º da lei que dispõe sobre o crime de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98), ao cuidar das medidas assecuratórias de índole penal, diz que “O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou representação da autoridade policial, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão ou o seqüestro de bens, direitos ou valores do acusado, ou existentes em seu nome, objeto dos crimes previstos nesta Lei, procedendo-se na forma dos arts. 125 a 144…” do Código de Processo Penal.

É dizer: a lei admite o bloqueio cautelar de bens, direitos ou valores, desde que reputados como o próprio objeto do crime de lavagem. Se se prefere, e já numa visão includente do art. 1º desse mesmo diploma legal, somente se abre a possibilidade da apreensão de bens, direitos ou valores se presentes indícios razoáveis de que o seu detentor procura ocultar-lhes a natureza, a origem, a localização, a disposição e a movimentação, por saber serem provenientes dos denominados crimes antecedentes.

20. O que isso quer dizer? Que só podem ser indisponibilizados aqueles bens, direitos ou valores sob fundada suspeição de guardarem vinculação com o delito de lavagem de capitais. Patrimônio diverso, que nem mesmo indiretamente se vincule às infrações referidas na Lei nº 9.613/98, não se expõe a medidas de constrição cautelar, por ausência de expressa autorização legal.

21. Não é por outro motivo, creio, que o texto da Lei “Antilavagem”, ao disciplinar medidas assecuratórias, faz expressa remissão aos procedimentos descritos nos arts. 125 a 144 do Código de Processo Penal. E sobre o que versam tais dispositivos? Sobre as hipóteses de seqüestro (apenas admissível quando se tratar de bens “adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração”), de hipoteca legal (quando se tratar de “garantir” a responsabilidade civil ex delito) e de arresto (erroneamente nominado pelo art. 137 do CPP como seqüestro, e voltado a bens lícitos, desvinculados da infração, mas necessários à satisfação do valor total a garantir).

22. Daqui se segue que o pedido em exame, no sentido de que a constrição judicial recaia sobre bem imóvel de propriedade da Igreja Universal (Edifício sede da Rede Record) não se enquadra em nenhuma das hipóteses legais, autorizativas da restrição patrimonial. Pois não se trata de imóvel sob suspeita de aquisição com recursos provenientes da infração (donde se descartar a possibilidade do seqüestro); nem de bem unicamente apreendido para fins de futura reparação civil (o que impede o uso da hipoteca legal ou de arresto, hipóteses nem sequer mencionadas pela Lei nº 9.613). O dinheiro apreendido constitui, ao menos em tese, a própria materialidade do crime de lavagem, cuja prática se investiga.

23. Não me custa enfatizar, neste lanço, que a medida cautelar prevista no art. 4º da Lei nº 9.613/98 se distingue das demais medidas assecuratórias de que tratam os arts. 125 a 144 do Código de Processo Penal. Diferenciação que se deve ao fato de que a indisponibilidade de bens, direitos ou valores, quando decretada no curso de inquérito ou de processo penal pelo suposto crime de lavagem de dinheiro, caracteriza função extrapolante daquela que se traduz na garantia dos efeitos secundários da condenação (inciso I do art. 7º da Lei de lavagem), in verbis:

“Art. 7º. São efeitos da condenação, além dos previstos no Código Penal:

I – a perda, em favor da União, dos bens, direitos e valores objeto de crime previsto nesta Lei, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;”

24. Dizendo de outro modo, o préstimo da medida acautelatória que se decreta no curso de procedimento penal pelo crime de lavagem de dinheiro ultrapassa aquele de cunho simplesmente patrimonial (voltado, este, a assegurar o direito dos lesados, de terceiros ou da própria União). Isto porque sua precípua finalidade está em inibir a própria continuidade da conduta delitiva. Quero dizer: o crime de lavagem de dinheiro consiste em introduzir na economia formal valores, bens ou direitos que provenham, direta ou indiretamente, de crimes antecedentes (incisos I a VIII do art. 1º da Lei nº 9.613/98). Daí que a apreensão de valores em espécie (caso dos autos) tenha a serventia de facilitar o desvendamento da respectiva origem e ainda evitar que esse dinheiro vivo entre em efetiva circulação, retroalimentando a ciranda da delitividade. Sabido que dinheiro é daqueles bens de que somente se usufrui com sua real movimentação. Nesse preciso sentido é a lição de José Bonet Correa, no estudo “El Denero como Bien Jurídico”1[1]. Estudo que põe em realce o fato de que o uso ou consumo do dinheiro, enquanto moeda, pressupõe a sua “translação”.

25. Em palavras outras, se o crime de lavagem de dinheiro é uma conduta que lesiona as ordens econômica e financeira, além de prejudicar a administração da justiça; se o numerário objeto do crime em foco somente pode ser usufruído pela sua inserção no meio circulante; e se a constrição que a Lei “Antilavagem” franqueia é de molde a impedir tal inserção retroalimentadora de ilícitos, além de 1[1] In Estúdios de Derecho Civil em Honor Del Prof. Castan Tobeñas, vol. IV, 1969, Ed. Universidad de Navarra. possibilitar uma mais desembaraçada investigação quanto à procedência das coisas, então é de se persistir no bloqueio do numerário apreendido e até agora posto à disposição da Justiça Federal (em conta remunerada, volta-se a dizer).

26.Leia-se, no sentido deste nosso equacionamento, o estudo de Rodolfo Tigre Maia, autor da obra Lavagem de Dinheiro: Lavagem de Ativos Provenientes de Crime2[2], in verbis:

“De se ver que o legislador, ao exigir a presença de indícios suficientes, restringiu o alcance de exigência contida no Código de Processo Penal, para decretação do seqüestro, e de que tais indícios da proveniência ilícita dos bens fossem veementes. O ‘perigo da demora’ estará de modo geral na relevância de se coartar imediatamente o atingimento à administração da justiça através da indevida fruição de produtos de crime e nos riscos causados ao sistema financeiro e à ordem econômica pela circulação de bens ilícitos, bem como na potencialidade de lesão a terceiros de boa-fé e, conforme o caso particular, no interesse da investigação ou do processo criminais (e.g., perecimento de bens, remessa ao exterior de valores, concretização de negócios jurídicos com terceiros, etc)”.

27. Também assim o magistério de Marco Antonio de Barros (Lavagem de Capitais e Obrigações Civis Correlatas, São Paulo: 2004, RT, fls. 233), segundo quem “Para o legislador, a apreensão e o seqüestro de bens do 2[2] São Paulo: Malheiros, 2004, fls. 129. indiciado ou denunciado constituem dois eficientes meios de prevenção e repressão ao ‘crime de lavagem’, além de garantirem interesses do Estado ligados à proteção da saúde econômico-financeira e os da vítima da infração quanto ao eventual ressarcimento civil do dano”.

28. Cite-se, ainda, a observação do promotor Marcelo Batlouni Mendroni3[3], no sentido de que “o dinheiro lavado é normalmente investido no incremento da própria empresa criminosa, gerando-lhe maior poder de ofensa à sociedade”.

29. Presente esta ampla moldura, não vejo como acolher a pretendida substituição do numerário apreendido pelo imóvel ofertado em garantia. Até porque, já o dissemos, em se tratando de inquéritos policiais e instruções criminais da espécie, o numerário retido não perde a sua condição usual de bem fungível para se tornar, ele mesmo, o insubstituível objeto da constrição? Bem fungível para fins civis, por certo, porém não exatamente assim para fins penais?

30. Respondo afirmativamente, escudado na doutrina reportada, especialmente o mencionado artigo espanhol que se intitula “El Dinero Como Bien Jurídico”.

31. Bem vistas as coisas, aqui reside o motivo por que a Lei “Antilavagem” não previu a substituição dos bens, direitos ou valores apreendidos. Pois somente hão de 3[3] Opus Cit., p. 127. ser apreendidos aqueles bens que se qualifiquem como o próprio objeto ou, então, como produto do crime.

32. Nesse rumo de idéias, é de se lembrar que a Magna Carta Federal proclama a garantia de que “ninguém será privado (…) de seus bens sem o devido processo legal”. E isto já me parece traduzir que medidas restritivas do patrimônio privado, ou encontram suporte em clara determinação legal, ou perdem a sua necessária condição de validade.

33. Tenho, finalmente, que não é de se considerar vencido o prazo a que alude o § 1º do art. 4º da Lei nº 9.613/98, que é de 120 dias. Isso porque, nos termos do parecer da Procuradoria-Geral da República, ainda se encontram inconclusas as diligências por ela requeridas, em ordem a não se poder iniciar a contagem do lapso temporal.

34. Por tudo quanto posto, resolvo a presente questão de ordem no sentido do indeferimento do pedido de caucionamento dos bens imóveis oferecidos em garantia.

35. É como voto.

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MCBP/ggd

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