Legislação do pânico

Crônicas de mortes anunciadas: breve ensaio sobre a cegueira

Autor

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado e cofundador e conselheiro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e da Sacerj (Associação dos Advogados Criminais do Estado do Rio de Janeiro).

23 de maio de 2006, 10h14

O tributarista Ives Gandra da Silva Martins, em entrevista concedida à Folha Online,[1] em 20/5/2006, citou o escritor Alvin Toffler para demonstrar como o apontado chefe do PCC, Marcos Willians Herba Camacho, o Marcola, teria conseguido espalhar o medo e a insegurança por toda São Paulo: “Qualquer batalha só se ganha à base de informação. Informação é a arma do futuro”.

Adiante, ao responder às indagações que lhe foram formuladas, o tributarista defende — embora reconheça que o “pacote[2] não é o ideal, mas é bom. E não está sendo feito na crise. Infelizmente ele estava parado e, em função da crise, [está sendo] reexaminado” — dentre outras (inócuas) propostas,[3] o agravamento das penas e a criminalização do uso de telefones celulares por presos, porque, em seu sentir, “o presídio não pode ter apenas uma barreira no sentido de uma parede, pela qual o preso pode comandar tanto de dentro como de fora, com toda a impunidade”. Recomenda, outrossim, para os crimes de homicídio, uma agravante minimamente curiosa: “tem de haver uma punição maior para um assassinato de um agente público”. Aqui, ficamos a imaginar qual a diferença da vida de um agente do poder público para a vida de um cidadão comum?! As vidas também hão de ser divididas em castas?!

E, por ter sido ex-integrante da Anistia Internacional, se sentiu “à vontade para escrever este artigo [o publicado na Folha de S.Paulo, de 22/5/2006], o que é de se louvar, porque contribuiu para o debate de idéias. Em seu escrito consigna, com todas as letras, ter sido sempre “contra a pena de morte e não contra a punição rigorosa. Fui contra o tratamento indigno de presidiários, mas não contra a prisão de criminosos. Fui contra a lentidão dos julgamentos e não contra a observância do devido processo legal. Prefaciei, inclusive, livros de detentos e de ex-detentos”.

Plantadas as premissas de seu pensar, assevera o tributarista haver “a necessidade de endurecimento das medidas a serem tomadas, mas com o absoluto respeito à dignidade dos marginais [marginais, não, professor, pessoa humana, para ficarmos nos exatos termos da Carta Política], visto que o Estado não pode retribuir na mesma medida o tratamento que a sociedade recebeu daqueles que não têm consideração com a vida humana e com a comunidade em que vivem.”

Encrudelecer o sistema de penas, para ele, consistiria “em isolar, sem possibilidade de comunicação, a não ser com seus advogados em dias determinados [e quem vai determinar as necessidades?! O carcereiro de plantão?! E se houver necessidade, em homenagem ao princípio constitucional da ampla defesa, do defensor se reunir com o seu cliente por causa de certas especificidades do processo (seja ele de natureza criminal, tributário, cível, administrativo etc.)?! O “guarda da esquina”, para parafrasear Pedro Aleixo, é quem será o senhor desta necessidade e tempo?!], os chefes da quadrilha encarcerados, separando-os dos demais presos e, principalmente, dos companheiros soltos, para que não tenham qualquer contato com seus parceiros.” O enrijecimento, continua o tributarista, “residiria, por exemplo, não apenas em não permitir celulares, mas em agravar a penas daqueles que fossem apanhados com esses equipamentos [que pena, se não existe crime algum?!], como dito na entrevista antes referida.

No atinente ao uso de aparelhos celulares por prisioneiros, socorremos-nos de Maurício Zanoide de Oliveira, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, para lembrar que “o Poder Legislativo tem em suas mãos, desde 2001, projeto de lei de reforma da Lei de Execução Penal, proposta que a atualiza e a moderniza de forma sistêmica, e não apenas pontual. Nele se aumenta o rigor da disciplina e, já em 2001, se previa como falta grave o porte de celular, além de se estabelecer um sistema de faltas disciplinares extremamente controlador e útil para tratar cada preso de forma diferenciada, fazendo com que os melhores possam progredir, e os piores, regredir no cumprimento da pena.”[4]

Ainda sobre esse assunto, concordando com Zanoide, temos a experimentada voz do juiz de execução penal de Pernambuco, Adeildo Nunes (que fez dissertação de mestrado após estudar as legislações nacional e internacional e percorrer prisões brasileiras, portuguesas, espanholas, inglesas e norte-americanas), o qual, sem rebuços e sem ambages, disse não ser o uso de telefones celulares a grande arma para os reclusos. Para ele, não é “preciso bloquear nada e o grande vilão da história não pode ser o aparelho celular. O problema é mais complexo, pois o celular não poderia entrar na prisão de jeito algum. Dizer que depende das operadoras é conversa. Tem de punir quem deixa entrar o aparelho. Em 1999 determinei que o preso com celular estaria praticando falta grave. Em 7 anos, só um aparelho foi apreendido.”[5]


Demais isto, por comungar das lições de Zanoide e de Nunes, não há como não dissentir, com o mais vivo empenho, do posicionamento do Diretor Nacional Penitenciário, Maurício Kuene, quando este alude que, no presídio federal que está para ser inaugurado, em 20/6/2006, na cidade de Catanduvas, no Paraná, pretende filmar as conversas mantidas entre os advogados e os seus constituintes. Para ele, “a lei proíbe a gravação desse tipo de conversa sem a autorização judicial[6] mas (…) nada impede a filmagem de cenas. A idéia é dificultar que advogados do crime levem armas, drogas, celulares, entre outros itens proibidos, para dentro da cadeia. — Nosso objetivo é ter nos presídios as lideranças negativas (…).

Antes da entrada na ala dos detentos, advogados terão ainda que passar por detectores de metais, raios-X e até por espectrômetro, aparelho que detecta a presença de maconha e cocaína, entre outras drogas. Se houver algum sinal de alerta, os advogados poderão ser submetidos ainda a revista manual. — O advogado em situação suspeita que não quiser abrir a mala não entra. Fazemos isso nos aeroportos e ninguém chia, diz o diretor.

O rigor também será extensivo aos 172 agentes já contratados para trabalhar no presídio. Eles serão submetidos à revista diariamente ao chegar nos locais de trabalho, além de usar uniforme, deixando roupas e objetos pessoais em escaninhos de uma sala da ala administrativa.”[7]

No atinente ao isolamento celular [o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) — ou, na feliz expressão de René Ariel Dotti, um dos pais da Lei de Execução Penal, o Regime da Desesperança — nada mais é do que a forma tupiniquim das Supermax norte-americanas], quem no-lo responde é Ray Lavasseur, quando “descreve uma viagem ao inferno”, assim por ele considerado “os cinco anos que passou trancado 23 horas por dia numa cela de 3 metros por 3 na Supermax de Florence, uma unidade da prisão federal de segurança máxima no Colorado, que guarda ‘o pior dos piores’ criminosos dos Estados Unidos.”[8]

“Para Lavasseur, a prova definitiva de que esse tipo de prisão, além de ser desumana, é ineficaz mesmo do ponto de vista do carcereiro, está num fato. ‘Nos últimos 20 anos, o número de gangues só aumentou dentro das prisões’, disse ele.”[9]

Devagar com o andor que o santo é de barro…

Com efeito, as privacidades do preso e de seu advogado não devem ser violadas sob pretexto algum; não por mero capricho corporativo, como podem imaginar os mais afoitos, mas por que assim desejou o legislador constituinte, quando, em seu art. 5º, inc. X, erigiu a intimidade e a privacidade dos cidadãos em cláusulas pétreas e, em seu art. 133, patenteou que “que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

Assim, deve, sim, o Estado, sem qualquer margem de dúvida, estabelecer hígidos critérios para o ingresso de pessoas nos estabelecimentos prisionais. Porém, esses tais critérios não podem ser direcionados, tão-somente, aos advogados e agentes penitenciários. Devem eles ser estendidos, também, para todos que lá adentrem no exercício de seu múnus, ou seja: juízes, promotores de Justiça, defensores públicos, funcionários do Ministério da Justiça, do Judiciário, do Legislativo etc.

Com certeza, passar por detectores eletrônicos similares aos existentes em aeroportos espalhados mundo afora não pode vexar ninguém. Agora, dizer que as filmagens entre advogado e o seu cliente encontram respaldo na legislação em vigor é um disparate, para falar o menos. Isso sem levar em consideração que estaremos enterrando, por vez, princípios dos mais caros da República, como os da intimidade, da privacidade e o da ampla defesa.

Ademais, partindo daquela falsa premissa traçada por Kuene, talvez possamos fazer, no Brasil, o que fez Andy Warhol no seu pan-óptico. Vamos filmar, durante as 24 horas do dia, todos os passos e todas as conversas mantidas pelos juízes, promotores, defensores públicos, delegados de polícia, agentes penitenciários, funcionários do Executivo, do Judiciário, do Legislativo etc., no regular exercício de suas funções, com os detentos (quem sabe não aproveitam para filmar, também, as conversas que estes mantêm com os diretores e os agentes penitenciários?!), porque, todos, a princípio e sem qualquer exceção, também podem se utilizar destas prerrogativas para levar, para dentro das penitenciárias, o que lá não deveria jamais adentrar.


O controle, já se comentou, é indisputável, não existe quem possa ser contrário. Mas ele não pode ser implementado como se estivéssemos a viver sob a égide do Estado Leviatã e, não, em um Estado Democrático de Direito.

De retorno aos projetos de emergência recentemente aprovados pelo Senado, força concordar que alguns deles já tramitavam pelas frias e empoeiradas prateleiras das Casas Legislativas. Porém, força dizer, de outro lado, que a esmagadora maioria deste nefasto “pacote legislativo do pavor” está sendo produzida açodadamente; e se ele está sendo elaborado ou votado com a velocidade da luz, pecam, mortalmente, os legisladores, mais uma vez, porque leis, principalmente as de natureza penal e processual penal, não devem ser paridas a fórceps. Neste campo é preciso ter calma. Muita calma. Imperfeitas as leis, imperfeit os serão os seus fins.

Por oportuno, é bom destacar que a desgraça que se abateu em São Paulo já está na agenda dos candidatos à Presidência de República: “Depois do terror dos atentados em São Paulo, a segurança pública vai se tornar, ao lado do crescimento econômico e da corrupção, um dos principais temas na campanha eleitoral. Os candidatos ainda rascunham seus programas de governo, mas tucanos e petistas já caminham em rumos diferentes: o ex-governador Geraldo Alckimin defende o endurecimento da legislação penal como principal bandeira, enquanto auxiliares do presidente Luiz Inácio Lula da Silva apostam em investimentos na geração de emprego e na educação como saída a médio prazo. A crise em São Paulo abriu flancos nos dois lados. Os tucanos podem ser criticados porque governam o estado há 12 an os e os petistas, pela queda dos investimentos federais em segurança pública”[10]

Mas não só os tucanos e os petistas que divergem sobre solução da grave problemática.

A senadora Heloísa Helena (PSOL) defende a “instituição de defensorias públicas nos presídios para atender à comunidade carcerária; instalação de conselhos de segurança nos bairros para fiscalizar a polícia; investimento na ressocialização do preso, com diminuição da duração das penas; aumentar as fiscalizações nos presídios; investimentos na construção de mais presídios estaduais, para diminuir a lotação nas cadeias”.[11] O senador Cristovam Buarque (PDT) diz ser necessária a “instituição de um serviço militar desarmado, aumentando o ingresso anual de jovens nas Forças Armadas; criação de uma agência de inteligência da polícia, voltada para o combate ao crime organizado; transferência periódica das tropas policiais entre os estados; criação de um Ministério da Segurança Pública”.[12] Já para o ex-governador Anthony Garotinho, deve haver “maior controle nas fronteiras, com a criação de uma guarda especializada; investimento na construção de presídios federais de segurança máxima; revisão do Código Penal, com a adoção de penas mais duras para crimes hediondos e tráfico de drogas; criação de um Ministério da Segurança Pública.”[13]

Para se ter uma singela noção do que pensa um cidadão comum a respeito da questão penitenciária, vamos ouvir Armando Fraga Moreira: “É um absurdo, um atentado contra a cidadania, o governo prejudicar parte da população com o bloqueio de sinal dos celulares nos presídios. É jogar para debaixo do tapete. Não será esta medida restritiva que inibirá a ação dos criminosos. O maior desafio é e sempre será a corrupção, dentro e fora das cadeias. Com dinheiro, o preso compra os privilégios que quiser. Recorde-se de um antigo banqueiro do bicho que saía diariamente do xadrez para jantar em restaurantes de luxo e retornava com a quentinha para os carcereiros. O país precisa de uma ampla reforma na estrutura da segurança pública. Reprimindo-se os pequenos delitos e valorizando-se o policial, com melhores salários, equipamentos e critérios de promoção, a violência diminuirá e a polícia resgatará a auto-estima e a admiração do povo.”[14]

Em resumo: a sociedade civil saberá, no próximo pleito, distinguir qual a política mais consentânea com a realidade brasileira.

Pois bem, voltando à entrevista e ao artigo do tributarista Gandra Martins, o qual, por certo, expressa o pensamento de alguns, fácil sustentar que ele está equivocado. Como equivocados estão todos aqueles que pensam (ou sonham) que, com o agravamento das penas e a criminalização desta ou daquela conduta, com a reforma desta ou daquela lei, principalmente em situações em que tais, estaremos a resolver o problema social que a todos aflige. Não. Não estaremos. Estaremos, sim, a jogar a poeira para debaixo do tapete. Nada mais.


Não fosse isto o bastante, não podemos fingir que o Brasil não está a atravessar um turbulento período eleitoral e o Congresso, que anda envolto em sucessivas e infindáveis crises, pode pretender usar a tragédia paulista como escudo protetor para escapar do enfrentamento de suas próprias mazelas, fazendo editar mais “Leis de Pânico”. Editadas nesse clima passional, pagaremos, todos, em futuro breve, com os seus nefastos efeitos e, quando acordarmos deste pesadelo, é que daremos conta de seu resultado. Talvez, aí, seja tarde demais.

O tema não varia. Violência pela manhã. Violência à tarde. Violência à noite. Ela dá ibope e todos a temem. Ninguém a quer por perto. Câncer do qual se crêem imunes. Poucos admitem encontrar remédio com especialistas. Preferem, sem base ou com base científica distorcida de países primeiro-mundistas (Itália não é Brasil e Manhattan não é Rio de Janeiro), vender à população solução milagrosa: o fim da criminalidade com o aumento das penas. Cadeia, sustentam os defensores do rigor penal. Nesta seara não existem milagres, por fervorosas que sejam as rezas. Criminalidade não se combate com lei. Por ser fenômeno social, não tem fim, tem controle. Controle depende de política governamental séria e ininterrupta. O Estado não pode abandonar espaços sociais nos quais a sua presença se faz imprescindível. Abandonando esses espaços públicos, dá azo à criação do “Estado paralelo”, agora em grande voga, só porque restou vitimado o estado pulmão do Brasil.

Com efeito, nessa “aborrecente” República sempre houve os ideólogos das penas graves e da criminalização de certas condutas (como, por exemplo, aquelas citadas pelo tributarista), como mirabolantes fórmulas para extirpar, como num passe de mágica, com as causas da criminalidade, contribuindo, por conseguinte, com a política de segurança pública.

Agora, o que ninguém vem a público comentar — e quando vem, são logo rotulados de “defensores dos direitos humanos dos bandidos”; aliás, por falar nisto, como leciona Augusto Thompson: Quem são os criminosos?! —[15] é que o efeito do que hoje estamos assistindo é fruto dessas inconseqüentes e irresponsáveis “Leis de Ocasião”, que ganharam relevo, no Brasil, a partir da década de 90.

Sub o tema, como sustenta, com propriedade, Eduardo Carnelós, ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciário do Ministério da Justiça, “o PCC e os demais grupos criminosos surgidos nos presídios são filhos da Lei dos Crimes Hediondos que, ao acabar com a possibilidade de progressão no regime de cumprimento da pena apenas em razão do crime cometido, igualou os criminosos de crime único aos efetivamente perigosos e propensos à prática do crime comum. Sem esperança, aqueles viraram soldados destes últimos e o resultado é a carnificina que nos vitima.”[16]

Demais isto, na esteira do pensamento de Alexandre Wunderlich, coordenador geral do Movimento Antiterror: “Agora, a ação criminosa inovou. Rompeu os muros das penitenciárias e atingiu as supostas forças de segurança do estado. Ninguém foi poupado, desde delegacias, postos policiais, veículos militares, guardas municipais, corpo de bombeiros e policiais em trabalho ou de folga. A imprensa noticiou que houve revolta em 78 penitenciárias, centros de detenção e cadeias públicas. Foram mais de 200 reféns e já contamos 115 mortos em uma centena de ataques. Este é o quadro de um sistema prisional em colapso. É a legítima “crônica da morte anunciada”.[17]

Na mesma direção vamos encontrar a abalizada opinião de Maurício Zanoide de Moraes, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, quando professa que “essa violência teve como causa próxima a ineficiência dos entes públicos em controlar e estabelecer disciplina e ordem dentro dos presídios. Dizer que se pode controlar a ‘panela de pressão’ carcerária com o regime de isolamento e cárcere ‘duro’ ou ‘diferenciado’ é negar a realidade da superpopulação carcerária. Essa violência proveniente do cárcere passa por uma outra forma de ver e entender o sistema penitenciário. O Estado nunca percebeu que em um ambiente de superpopulação carcerária (criado, tolerado e incentivado pelo próprio Estado) não é possível haver controle, imposição de disciplina dura e imposição de tratamento diverso para cada grupo de condenados. O Estado, porém, em todas as esferas, poderá tomar, rapidamente, providências para, com essa mesma estrutura prisional, sem a construção de sequer mais um presídio ou cela, resolver a questão de forma mais racional, legal e eficiente. As três esferas de poder deverão, então, agir de modo integrado e harmônico.”[18]


Então, como tivemos a oportunidade de sacudir, nos idos de 2004, em antigo ensaio denominado Lei de Execução Penal: parabéns à você!, elaborado a partir de um evento patrocinado pela Ordem dos Advogados do Brasil — Seção do Estado do Paraná, “o sistema prisional brasileiro foi à garra e o Estado não tem a coragem (ou, o que é pior, a vontade política) para decretar, definitivamente, sua falência. Ninguém é ignorante o bastante para não perceber que discursos, normalmente mais acalorados em anos eleitorais, bem como as leis de pânico não resolvem os problemas da criminalidade que a tantos apavora. Em ambas as hipóteses, os oportunistas de plantão elejam, aqui ou acolá, o fato do momento ou o infeliz da vez, como a grande causa da ‘crescente’ criminalidade. Nada mais. Não, como nada mais: isto já é muito danoso para uma sociedade carente de políticos (e de políticas) sérios, não é verdade?!”

O Estado e seus dirigentes têm que começar a ser responsabilizados, nacional e internacionalmente, porque não podemos mais conceber, em pleno século XXI, homens sendo tratados com tamanha desumanidade. De fato, embora tenhamos a pétrea convicção, como Evandro Lins e Silva tinha, de que a cadeia é o reconhecimento mais explícito de que a sociedade dita moderna é incompetente para tratar de seus males, cremos que o Judiciário deva pensar (pensar muito, é dizer) antes de mandar, sem pejo, para as prisões, homens que lá não deveriam estar, porque os crimes por eles praticados não estão a merecer tamanha reprimenda. Aliás, por onde andam mesmo as penas alternativas?!

Mas é preciso mais. É preciso que o Judiciário se humanize. É preciso que o juiz tenha a consciência de que está ali, a mando da sociedade, para julgar um semelhante. Um ser humano como outro qualquer, e não um monte de folhas numeradas e sujas que formam, sem alma, um processo, no mais das vezes falho desde o seu nascedouro, por exclusiva culpa do Estado. Enfim, o Estado-juiz julga um cidadão, a princípio e por direito, inocente. Uma pessoa que tem o direito à vida e à dignidade de sua pessoa. (Não só ele, é fato, mas todos nós, inclusive os agentes públicos e seus familiares que foram massacrados nesse triste maio de 2006, é picar antes que pedras venham a ser lançadas imotivadamente).

É imprescindível que o juiz tenha coragem, ainda que esta venha na contramão da opinião pública (não, da opinião publicada, que, como sabemos, difere daquela). A cadeia, enquanto a civilização não encontrar fórmula outra (descartada, é óbvio, as penas que atentem contra a vida e a prisão perpétua), há de ser reservada para muito poucos, e, ainda assim, para estes raros casos, o tempo de reclusão há de ser parcimonioso, porque o que alimenta, na sociedade, a incredulidade no sistema penal, não são as penas baixas ou altas, mas a incerteza do efetivo cumprimento daquela pena que é ao réu imposta, depois de findo um processo justo.

Este é o aviso que nos dá o ministro Eros Grau: “O Poder Judiciário e os juízes devem atuar com independência, de forma a não sucumbir ao clamor social”,[19] porque, complementou em palestra proferida, na USP, no seminário Reforma do Judiciário, promovido pelo Ministério da Justiça, a mídia constrói um imaginário social baseado no pensamento hegemônico e, por conseguinte, “as idéias dominantes são a expressão das opiniões materiais dominantes e é assim que os tribunais decidem.” Ademais, atento às prisões desnecessárias, o ministro Grau pontua que “a prisão de suspeitos baseada no clamor público que acredita ser ‘maior do que a capacidade de reagir do magistrado’. E fez questão de deixar claro que o Supremo Tribunal Federal tem se negado a acolher pedidos de Habeas Corpus fundamentados na vontade da sociedade, direcionada pela imprensa.”[20]

O Estado não pode esquecer que esses infelizes condenados à masmorra não perderam, e não perderão jamais, o direito de ter a sua dignidade pessoal preservada. Isso não é um sonho. É um dever cívico que deve brotar na alma de cada cidadão.

O povo brasileiro precisa saber, definitivamente, para que possa traçar as diretrizes do futuro que pretende ter, que, nos idos de 1994, tínhamos cerca de 150.000 presos. Em 2004 cerca de 300.000. Em 2006 cerca de 350.000 (existindo, hodiernamente, um déficit de cerca de 150.000 vagas, o que significa que temos que construir, para suprir as necessidades da população carcerária de hoje, ao custo médio de R$ 15.000.000,00, 300 unidades prisionais. Quase que uma por dia do ano!).[21] Em síntese, a continuar o crescimento da população carcerária nessa progressão geométrica, teremos, em 2010, conforme dados (de 2004) da Secretaria Nacional de Justiça, aproximadamente 500.000 presos. Isto mesmo, meio milhão de pessoas encarceradas. Como registrou, em 20/11/2004, o jornalista Ricardo Boechat, em sua coluna no Jornal do Brasil, “nenhum indicador — da produção de petróleo às exportações — exibirá tal performance.”


Mas tem um detalhe importante: a população carcerária de anteontem, como a de ontem e a de hoje, e, por ce rto, a de amanhã também, em sua grande parte não é constituída de presos definitivamente condenados. A grande parte é de presos provisórios. Ou seja: de pessoas presumidamente inocentes, nos dizeres da Constituição da República Federativa do Brasil.

Como se vê, muito há de ser feito, mas, tão-somente, depois de um profundo e democrático debate com a sociedade civil, ultrapassadas as fogueiras das paixões, porque, no Brasil, já temos leis demais. Precisamos é, com destemor, jogar no lixo a maioria delas e darmos efetivo cumprimento às poucas que devem viger na legislação patrícia.

Enquanto a questão penitenciária (e a de segurança pública também) não for encarada como uma política de Estado, vamos continuar a ouvir a velha ladainha de que precisamos de penas cada vez mais altas e da criminalização de certas condutas, até o dia em que nova desgraça venha a recair em pessoas inocentes, agentes do poder público e presos, que deveriam, sem qualquer exceção, estar a merecer mais respeito por parte de nossas autoridades.

A questão penitenciária, já profetizava Augusto Thompson,[22] em 1991, quando trabalhava a 3ª edição do seu clássico A questão penitenciária (a 1ª edição é de 1976), “não tem solução ‘em si’, porque não se trata de um problema ‘em si’, mas parte integrante de um outro maior: a questão criminal, como referência ao qual não desfruta de qualquer autonomia. A seu turno, a questão criminal também nada mais é que mero elemento de outro problema mais amplo: o das estruturas sócio-político-econômicas. Sem mexer nestas, coisa alguma vai alterar-se em sede criminal e, menos ainda, na área penitenciária”.

Enfim, a questão penitenciária tem solução?

Não saberia informar. Saberia informar sim, que ela não será solucionada pelas edições de “Leis de Terror”, já que estas servem, tão-só, como diz Raúl Zaffaroni, para inflacionar as tipificações, não fazendo “mais do que aumentar o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal e seus pretextos para o exercício de um maior poder controlador.”[23]

Com a palavra, o Estado e a sociedade civil brasileiros.


[1] A entrevista, pelo tributarista transformada em artigo denominado O crime organizado, foi veiculada na Folha de S.Paulo, de 22/5/2006, na seção Tendências/Debates, p. A 3.

[2] O substantivo masculino “pacote”, utilizado em sentido figurado, porque é nesse sentido que enxergamos os pacotes legislativos relativos às Leis do Terror, significa, conforme Aurélio Buarque de Holanda: logro, embuste, engano. Em síntese: não servem para os fins colimados.

[3] Como, por exemplo, a aprovação de um pacote emergencial de mudanças na Lei de Execução Penal (para os que não sabem ou não se lembram, esta data de 1984, e, até os dias atuais, nunca saiu do papel, infelizmente). Por certo, tivesse ela sido cumprida pelos operadores do direito, com certeza absoluta não seríamos obrigados a ter de conviver com as recentes e dantescas cenas paulistas, cariocas, mineiras, capixabas etc., que insistem em não sair de nossas mentes e almas; já no tocante ao Código de Processo Penal, não é demasiado relembrar que existe, há anos, no Congresso, não um “pacote pontual de emergência”, mas um anteprojeto de lei, oriundo do Ministério da Justiça, elaborado por notáveis processualistas penais brasileiros, os quais foram capitaneados, na comissão redatora, por Ada Pellegrini Grinover.


[4] In Folha de S. Paulo. Tendências/Debates. Opinião, A 3, 20/5/2006.

[5] O Globo, 21/5/2006, p. 16.

[6] Aliás, qualquer gravação, se for a telefônica, só por ser levada a efeito por ordem judicial e nos estritos e especialíssimos casos previstos na lei 9.296/1996. Já no atinente a gravação ambiental, não temos lei a regulamentá-la, devendo, nesse passo, anotar que a comissão (presidida por Ada Pellegrini Grinover, do qual o articulista teve a honra de integrar) que elaborou, a pedido do ministro Márcio Thomaz Bastos, o anteprojeto da nova Lei de Interceptações Telefônicas, regulamentou, também, a questão relativa às chamadas gravações ambientais, impondo, a estas, os mesmos rigores exigidos à gravação telefônica.

[7] O Globo, 22/5/2006, p. 4.

[8] O Estado de São Paulo, Aliás: a semana revista, 21/5/2006, J 8.

[9] Id ibidem.

[10] O Globo, 22/5/2006, p. 4.

[11] Jornal do Brasil, 22/5/2006, A 3.

[12] Id ibidem.

[13] Id ibidem.

[14] Id ibidem.

[15] Quem são os criminosos. Rio de Janeiro: Achiamé, 1993.

[16] Falta de esperança: criminosos são filhos da Lei dos Crimes Hediondos. In www.conjur.com.br, acessado em 21/5/2006.


[17] Governos retardatários. In www.conjur.com.br, acessado em 21/5/2006.

[18] Id ibidem.

[19] In www.conjur.com.br, acessado em 22/5/2006.

[20] Id ibidem.

[21] Para se tentar um paralelo, embora fique muito difícil dele ser traçado, porque estaremos a citar situações de países totalmente diferentes, quer sob o enfoque político, quer sob o enfoque jurídico, vamos ver que o governo federal e os 50 estados que integram os EUA investiram, nas Supermax, “U$ 30 bilhões de dólares na edificação de novos presídios para abrigar uma população carcerária de 2,3 milhões de sentenciados, que já é a maior do mundo, per capitã. Essa cifra não incluiu o número variável, mas certamente na casa das centenas de milhares, dos acusados que aguardam julgamento em cadeias municipais, estaduais ou federais.” (O Estado de São Paulo, id ibidem). O Brasil repassará, para esse ano de 2006, através do Fundo Nacional Penitenciário, para todos os estados membros, a módica quantia de R$ 26 milhões. Dá, pois, para se ter uma noção, ao menos, não é verdade?!

[22] A questão penitenciária. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 119.

[23] In Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, p. 27.

Autores

  • Brave

    é advogado criminal (RJ e BSB) e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Foi secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu, também, a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

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