Direitos humanos

Anistia denuncia situação nas prisões e violência policial

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23 de maio de 2006, 14h18

Exclusão social, execuções extrajudiciais pela polícia, maus tratos e torturas nas prisões, mortes e ameaças de ativistas rurais. Para a Anistia Internacional, mais conhecida organização de defesa dos direitos humanos, estes são os principais problemas na área dos direitos humanos no país no último ano. A organização considera que a situação da observância dos direitos da pessoa no país continua sendo grave e que o governo pouco fez para melhorar a situação.

As conclusões estão no relatorório anual da Anistia, divulgado nesta terça-feira. No relatório a organização faz uma análise sobre os direitos humanos em todo o mundo. Ainda sobre a situação no Brasil, o relatório destaca a impunidade e lembra que os responsáveis pelo massacre do Carandiru e do massacre de Carajás continuam soltos, sem punição.

Relata também o assassinato da freira americana Dorothy Stang, no Pará, em um cenário de conflito de terras. Apesar de apontar a condenação de dois homens responsabilizados pela morte da freira, o relatório cobra que os mandantes ainda não foram punidos.

Na análise da situação mundial, a secretária-geral da Anistia, Irene Khan, faz referências à violência social e política que abala o Afeganistão e o Iraque, como exemplos da extrema debilidade da política de direitos humanos no mundo. Alude também à eleição de Evo Moralez á presidência da Bolívia, como uma conquista dos povos indígenas e um avanço dos direitos humanos.

A secretária-geral se diz animada com a situação, apesar de todas as dificuldades enfrentadas e dá as razões: “O número global de conflitos em todo o mundo continua a baixar, graças à resolução internacional de conflitos e às iniciativas de prevenção de conflitos e construção da paz, dando esperança a milhões de pessoas em países como Angola, Libéria e Serra Leoa.Reformas institucionais foram iniciadas nas Nações Unidas (NU) com vista a reforçar os mecanismos internacionais dos direitos humanos, apesar das tentativas de alguns governos cínicos e “desmancha-prazeres” para bloquearem os progressos”

Leia o relatório referente ao Brasil, a mensagem da Secretária Geral, e o relatório relativo às Américas:

Brasil

Chefe de Estado e de Governo: Luiz Inácio Lula da Silva

Pena de morte: abolicionista para os crimes comuns

Tribunal Penal Internacional: ratificado

Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women, CEDAW): ratificado com reservas

Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Optional Protocol to the Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women, CEDAW-OP): ratificado

Os brasileiros, principalmente os pobres e socialmente excluídos, continuaram a sofrer elevados índices de violações dos direitos humanos. Houve poucas iniciativas políticas na área dos direitos humanos, com várias propostas do governo federal ainda a aguardarem implementação e poucas, senão nenhumas, autoridades locais a introduzirem as prometidas reformas na segurança pública. As violações dos direitos humanos sob custódia policial, incluindo execuções extrajudiciais, tortura e uso excessivo da força, continuaram em todo o país. A tortura e os maus-tratos foram generalizados no sistema prisional, onde as condições eram muitas vezes cruéis, desumanas e degradantes. A população indígena foi alvo de ataques e assassinatos, bem como de expulsões forçadas de suas terras ancestrais, e o governo federal não cumpriu a promessa de demarcar todas as terras indígenas até 2006. Os defensores dos direitos humanos e os ativistas rurais sofreram ameaças, ataques e foram mortos. A impunidade em relação às violações dos direitos humanos foi a regra, conseqüência da lentidão dos processos judiciais e da relutância de parte do poder judiciário em julgar este tipo de casos.


Contexto

O ano foi marcado por uma crise política devido ao surgimento de indícios de corrupção envolvendo membros do governo e do Congresso. Acusações de que o Partido dos Trabalhadores (PT), no poder, tinha estado envolvido na arrecadação de fundos eleitorais não-declarados, na concessão desonesta de contratos públicos e na compra de votos no Congresso abalou o governo e levou à demissão de José Dirceu, Chefe da Casa Civil da presidência, e à sua consequente expulsão do Congresso. Foram abertos três inquéritos parlamentares sobre as alegações de corrupção, sendo que vários congressistas estavam a ser investigados pela comissão de ética do Congresso. O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva se desculpou publicamente, aceitando a responsabilidade por algumas das acusações contra o seu partido, negando qualquer involvimento.

Foram tomadas medidas importantes a favor do desarmamento, tendo a lei de controle do porte de armas, introduzida em 2003, aparentemente contribuído para o declínio do número de homicídios em nível nacional. Contudo, os brasileiros rejeitaram a proibição total de venda de armas a civis num referendo nacional realizado em outubro, que refletiu a ansiedade da população com relação aos elevados índices de criminalidade. As autoridades federais registaram uma queda de 8,2 por cento no número de homicídios em nível nacional, o que aconteceu pela primeira vez desde 1992, enquanto o Estado de São Paulo registou reduções consideráveis nos últimos cinco anos. Este declínio foi atribuído a uma combinação dos esforços para controlar as armas de pequeno porte, às políticas de segurança pública alternativas e ao investimento social realizado a nível local..

Em outubro, a Comissão dos Direitos Humanos da ONU manifestou a sua preocupação com relação a vários assuntos, incluindo execuções extrajudiciais e tortura por parte das forças policiais e ameaças às populações indígenas.

Segurança pública e homicídios cometidos pela polícia

Persistiram os relatos de execuções extrajudiciais, uso excessivo de força e uso sistemático da tortura pelas forças policiais. Muitos estados continuaram a defender ações rigorosas da polícia para combater os elevados índices de criminalidade.

O número de pessoas mortas pela polícia em situações oficialmente registadas como “resistência seguida de morte” (sugerindo que a polícia teria agido em legítima defesa) continuou elevado nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Entre 1999 e 2004, foram registados mais de 9,000 casos de “resistência seguida de morte” naqueles dois estados. As investigações sobre este tipo de mortes continuaram a ser mínimas.

Houve ainda relatos recorrentes de violações dos direitos humanos por parte de policiais federais e estaduais envolvidos em atividades corruptas e criminosas, e de homicídios cometidos por “esquadrões da morte” dos quais fazem parte policiais da ativa e ex-policiais. Os governos estaduais falharam na implementação consistente das reformas de segurança pública delineadas na proposta de criação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e o governo federal concentrou a sua atenção na formação policial em vez de introduzir reformas mais abrangentes com base no respeito pelos direitos humanos. Como resultado, os residentes de comunidades carentes continuaram a sofrer ações policiais discriminatórias, invasivas e violentas que não combateram o crime nem ajudaram a criar qualquer tipo de segurança.

*A 31 de março, 29 pessoas foram mortas na região da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Os homicídios foram atribuídos a um “esquadrão da morte” formado por agentes da Polícia Militar, que percorreram as ruas de Queimados e Nova Iguaçu disparando ao acaso contra os transeuntes. Dez agentes da Polícia Militar e um ex-policial foram detidos e acusados de assassinato. A investigação conjunta das polícias Federal e Civil relacionou os suspeitos do massacre a, pelo menos, 15 outros homicídios anteriores. As autoridades acreditavam ainda que os suspeitos estiveram envolvidos no seqüestro e extorsão de caminhoneiros.


Embora as estatísticas oficiais de homicídios cometidos pela polícia tenham diminuído em São Paulo, os grupos de defesa dos direitos humanos e os residentes das comunidades carentes relataram vários homicídios múltiplos alegadamente cometidos por agentes da polícia.

*A 22 de junho, cinco jovens do sexo masculino, entre 14 e 22 anos, foram alegadamente executados por membros da Polícia Civil na comunidade de Morro do Samba, em Diadema. Durante uma operação policial naquela área, 35 políciais alegadamente encurralaram os cinco jovens numa casa e dispararam rajadas de metralhadora através da porta e do telhado. As investigações foram encerradas depois de a Corregedoria ter alegado que as vítimas eram todas traficantes de drogas. Os familiares de alguns dos jovens mortos foram obrigados a deixar o bairro por receio de represálias.

Em novembro, a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados publicou o seu relatório final sobre a atividade dos “esquadrões da morte” no Nordeste, apresentando informações detalhadas sobre casos em nove estados. Segundo um dos responsáveis parlamentares pelo relatório, todos os casos envolveram políciais da ativa ou antigos agentes das forças de segurança. O relatório encontrou ainda ligações entre autoridades públicas, interesses empresariais e o crime organizado por todo o Nordeste.

Tortura e maus-tratos

A tortura e os maus-tratos continuaram a ser utilizados no momento da detenção, durante os interrogatórios e como forma de controle no sistema prisional. Houve ainda vários relatos de torturas usadas por agentes das forças de segurança com fins criminosos.

A impunidade continuou, e a ausência de informações publicadas sobre os casos julgados segundo a Lei da Tortura, de 1997, fez com que a verdadeira dimensão do problema continuasse a ser desconhecida. A campanha contra a tortura prometida pelo governo federal foi finalmente lançada em dezembro. As propostas para a ratificação pelo Brasil do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Optional Protocol to the Convention against Torture and Other Cruel, Inhuman or Degrading Treatment or Punishment – OP-CAT) continuavam pendentes no Congresso.

Durante 2005 houve relatos de tortura nos centros de detenção juvenil da FEBEM de São Paulo. As unidades de castigo, de acordo com informações, empregavam guardas do sistema prisional de adultos, contrariamente à lei. Na unidade de Vila Maria, que era alegadamente usada como centro de castigo, os detentos eram alegadamente torturados e trancafiados durante todo o dia. A preocupação foi reforçada pelas tentativas das autoridades de bloquear o acesso aos detentos.

Motins nos centros de detenção juvenil conduziram à morte de pelo menos cinco jovens detidos. Numa aparente tentativa de sabotar o trabalho dos grupos de defesa dos direitos humanos, o governador Geraldo Alckmin acusou dois proeminentes ativistas dos direitos humanos – Conceição Paganele e Ariel de Castro Alvez – de incitarem os motins. Em novembro, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ordenou que o governo brasileiro adotasse medidas para melhorar o sistema FEBEM.

*Em setembro, a mãe de um dos jovens detidos na unidade de Vila Maria afirmou que o filho tinha sido agredido de forma tão violenta pelos guardas que estava a urinar sangue. Outro jovem ali detido mostrou à mãe hematomas e sinais de tortura, e contou-lhe que o director da FEBEM tinha ordenado pessoalmente que não lhe dessem comida. Ele foi mantido quatro dias na solitária depois de ter sido arrastado de uma aula por um guarda que disparou cinco vezes para o teto para o intimidar.


Em abril, dois agentes da Polícia Civil da localidade de Xinguara, no Estado do Pará, foram condenados por terem torturado um rapaz de 15 anos em 1999. O rapaz foi violentamente agredido e sofreu problemas psicológicos recorrentes. Esta foi a primeira condenação por tortura na região.

Em novembro, foi exibido na televisão um vídeo que mostrava soldados veteranos de uma unidade de infantaria blindada do Estado do Paraná a infligirem choques eléctricos, afogarem e queimarem com ferros em brasa novos recrutas durante uma cerimonia de iniciação. O Exército anunciou imediatamente a suspensão do comandante da unidade e a abertura de uma investigação interna.

Condições nas prisões

As condições nas prisões equivaliam a tratamento cruel, desumano e degradante, e a população prisional continuou a aumentar. A superlotação, as más condições sanitárias e a falta de instalações de saúde contribuíram para a ocorrência de motins freqüentes e para os elevados índices de violência entre prisioneiros. Houve ainda relatos sustentados de comportamento violento e abusivo por parte dos guardas, incluindo o uso de tortura e maus-tratos. Continuaram a ser usados regimes especiais para punir prisioneiros considerados culpados de cometer crimes dentro do sistema prisional, embora em julho o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça os tenha considerado inconstitucionais e contrários aos padrões internacionais de proteção dos detentos.

Grupos de defesa dos direitos humanos denunciaram as condições no centro de detenção preventiva da Polinter, no Rio de Janeiro. Em agosto, a unidade albergava 1.500 detentos num espaço concebido para 250, com uma média de 90 homens numa cela de 3×4 metros. Entre janeiro e junho, três homens foram mortos em incidentes entre prisioneiros. Os responsáveis pelo centro de detenção obrigavam os detentos a escolher com qual facção criminosa queriam ser segregados no interior da Polinter. Em novembro, a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos ordenou que o governo brasileiro adotasse medidas para melhorar a situação.

Em junho, durante um motim no centro de detenção Zwinglio Ferreira, em Presidente Venceslau, no Estado de São Paulo, cinco detentos foram decapitados por outros prisioneiros de uma facção criminosa rival.

Em novembro, a Comissão de Direitos Humanos do Congresso realizou uma audiência pública sobre as mulheres mantidas sob custódia. A Comissão recebeu relatos de violações dos direitos humanos de mulheres detidas em São Paulo, que tinham de enfrentar condições de superlotação, principalmente os 52 por cento de mulheres detidas, muitas delas irregularmente, em celas de delegacias de polícia.

Abusos relacionados com disputas de terras

Trinta e sete trabalhadores rurais foram mortos entre janeiro e novembro, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT). Contudo, de acordo com a CPT, muitos ainda morreram devido à falta de assistência médica e social depois de terem sido expulsos das terras onde se tinham estabelecido. Muitos trabalhadores rurais e pessoas que lutavam contra a construção de barragens foram ameaçados de morte e perseguidos, como o foram, nas cidades, os ativistas dos movimentos dos sem-teto.


Em novembro, os membros de uma comissão de inquérito do Congresso sobre violência no campo aprovaram um relatório final que exortava as autoridades a considerarem como “atos terroristas” as invasões de propriedades rurais conduzidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Foi rejeitada uma versão do relatório que citava a falta de uma reforma agrária como uma das principais causas do conflito.

Continuaram os relatos sobre o uso de escravos e exploração de mão-de-obra. Em dezembro, delegados da AI foram informados por membros da Câmara de Vereadores da cidade de Araquara de que muitos trabalhadores em plantações de cana-de-açúcar no interior do Estado de São Paulo tinham morrido, alegadamente, de exaustão. De acordo com essas informações, os trabalhadores eram obrigados a cortar várias toneladas de cana-de-açúcar por dia.

Propostas de legislação que permitiriam ao governo confiscar as terras onde fosse usado trabalho escravo permaneceram no Congresso. Segundo dados da CPT, a campanha do governo para combater o trabalho escravo tinha recebido, até agosto, denúncias de 173 casos, envolvendo um total de 5.407 pessoas.

As populações indígenas que fizeram campanha por mais terra e maior respeito pelos direitos humanos enfrentaram violentos ataques e expulsões forçadas. Como resultado, muitas sofreram privações extremas. No Estado do Mato Grosso do Sul, o antigo processo de demarcação de terras dos Guarani-Kaiowa foi atrasado por processos judiciais que culminaram na expulsão forçada dos Guarani-Kaiowa. Embora o governo federal tenha homologado alguns territórios importantes, ficou muito longe de cumprir a promessa de demarcar todas as terras indígenas até 2006.

*A 12 de fevereiro, pistoleiros contratados assassinaram a irmã Dorothy Stang, uma freira que há muito tempo estava envolvida em campanhas relacionadas com assuntos ecológicos e de terras no Estado do Pará. Dois dias antes ela tinha-se encontrado com o secretário especial do governo federal para os Direitos Humanos e afirmara ter sido alvo de ameaças de morte. Dois homens foram condenados pelo crime em dezembro, mas aqueles que ordenaram sua morte não foram julgados. Após este assassinato, o governo federal enviou a Polícia Federal e soldados para ajudar nas investigações e apoiar a criação de uma área ecológica protegida. No entanto, segundo os grupos de defesa dos direitos humanos, muitos ativistas rurais da região continuavam ameaçados. Outros 15 ativistas rurais foram mortos nos primeiros seis meses de 2005 no Estado do Pará. Um pedido para transferir o caso da irmã Dorothy para o sistema judicial federal foi recusado pelo Supremo Tribunal de Justiça. Este foi o primeiro caso no qual se tentou usar a nova legislação que permite que os crimes contra os direitos humanos sejam julgados no sistema federal.

*Em fevereiro, dois ativistas do movimento dos sem-teto foram mortos a tiro por agentes da Polícia Militar durante a sua expulsão forçada de um edifício em Goiânia, no Estado de Goiás.

*Em junho, Adenilson dos Santos e o seu filho Jorge foram mortos quando quatro homens armados, alegadamente políciais à paisana pertencentes a um “esquadrão da morte”, abriram fogo durante uma festa realizada pela comunidade Truká, em Cabrobó, Pernambuco. A polícia alega que houve uma troca de tiros, mas representantes dos Truká garantiram que ninguém na festa estava armado. Os Truká alegaram que o ataque foi motivado pela sua luta pela terra e pela sua oposição ao crime organizado e ao tráfico de drogas no seu território.

Defensores dos direitos humanos


Os defensores dos direitos humanos, incluindo aqueles que defendem os grupos marginalizados, os que se opõem ao crime organizado e à corrupção, e os que desafiaram os interesses políticos e econômicos vigentes, sofreram difamações, ameaças, ataques e foram mortos. O programa de proteção dos defensores dos direitos humanos prometido pelo governo federal não foi implementado. Em dezembro, o representante especial das Nações Unidas para os Defensores dos Direitos Humanos visitou o Brasil.

*Em setembro, a Polícia Militar invadiu o escritório de António Fernandez Saenz, um advogado que trabalha com os moradores carentes de São Bernardo do Campo, a sul de São Paulo. Segundo informações, os agentes não apresentaram qualquer mandado de busca e levaram vários documentos com declarações de moradores locais acusando a Polícia Civil e Militar de tortura, extorsão e abuso sexual de crianças. Quando António Fernandez Saenz tentou apresentar queixa do incidente junto da Polícia Civil foi ameaçado e intimidado. Há relatos de que ele continuou a receber ameaças de morte anônimas.

Impunidade

O sistema penal continuou a não trazer justiça àqueles que sofreram violações dos direitos humanos, uma vez que poucos responsáveis por essas violações responderam perante a Justiça. Houve poucos avanços em vários casos antigos. Os comandantes da Polícia Militar condenados pelo massacre de detentos na prisão do Carandiru, em 1992, e pelo massacre de ativistas rurais em Eldorado dos Carajás, em 1997, continuaram em liberdade enquanto aguardavam os resultados dos respectivos pedidos de recurso. Em ambos os casos, outros policiais envolvidos individualmente continuavam a aguardar julgamento.

Os grupos de defesa dos direitos humanos manifestaram o seu desapontamento na sequência da decisão do governo em abrir apenas alguns arquivos selecionados relativos aos “desaparecimentos” e mortes de prisioneiros políticos durante a ditadura militar.

Relatórios/visitas da AI

Relatórios

Brasil: “Estrangeiros no seu próprio país” – Os povos indígenas no Brasil (Índice AI: AMR 19/002/2005)

Brasil: Informações sobre o Segundo Relatório Periódico sobre a Implementação do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (Índice AI: AMR 19/021/2005)

Brasil: “Eles entram atirando” – Policiamento de comunidades socialmente excluídas no Brasil (Índice AI: AMR 19/025/2005)

Visitas

Delegados da AI visitaram o Brasil em janeiro, abril e novembro.

Mensagem da Secretária-Geral da Anisitia Internacional


UM ANO EM PERSPECTIVA:

UM COPO MEIO CHEIO

POR IRENE KHAN, SECRETÁRIA-GERAL, AMNISTIA INTERNACIONAL

Krishna Pahadi, um activista dos direitos humanos de Nepal, foi detido 28 vezes pelo governo. Quando o conheci num centro de detenção policial em Kathmandu, em Fevereiro de 2005, pouco depois de ter sido preso pela 27ª vez, a sua mensagem foi surpreendentemente positiva. Quanto mais o regime encarcerar manifestantes pacíficos como ele, disse-me, mais fortalece a causa dos direitos humanos. A agitação política generalizada e a condenação internacional do governo nepalês confirmam a sua opinião. Privado de qualquer leitura na prisão com excepção de livros religiosos, tinha acabado de ler o Bhagavad Gita e estava prestes a começar a ler a Bíblia, que seria seguida pelo Corão. Ele não duvida de que a sua luta e a de outros como ele irá sair vencedora. É apenas uma questão de tempo, afirma.

Krishna não está desanimado. Eu também não, apesar dos abusos e das injustiças, da violência e das violações documentadas por todo o globo no Relatório de 2006 da Amnistia Internacional.

A paisagem dos direitos humanos está pejada de promessas quebradas e falhas de liderança. Os governos proclamam defender a causa dos direitos humanos mas demonstram reflexos repressivos quando se trata das suas próprias políticas e práticas. Os graves abusos cometidos no Afeganistão e no Iraque ensombram grande parte do debate sobre os direitos humanos, enquanto a tortura e o terror se alimentam entre si num ciclo vicioso. A brutalidade e intensidade dos ataques perpetrados por grupos armados nestes e noutros países aumentou, reclamando um elevado preço em vidas humanas.

No entanto, um olhar mais atento aos acontecimentos de 2005 dá-me razões para ter esperança. Houve sinais claros de que poderá estar à vista um ponto de viragem após cinco anos de retrocessos nos direitos humanos em nome do combate ao terrorismo. Ao longo do ano que passou, alguns dos governos mais poderosos do mundo foram rudemente despertados para o perigo de subestimarem a dimensão dos direitos humanos nas acções no seu território ou no estrangeiro. Os seus subterfúgios e mentiras foram denunciados pelos meios de comunicação social, desafiadas pelos activistas e rejeitadas pelos tribunais.

Também encontro outros sinais que me permitem estar optimista. O número global de conflitos em todo o mundo continua a baixar, graças à resolução internacional de conflitos e às iniciativas de prevenção de conflitos e construção da paz, dando esperança a milhões de pessoas em países como Angola, Libéria e Serra Leoa.


Reformas institucionais foram iniciadas nas Nações Unidas (NU) com vista a reforçar os mecanismos internacionais dos direitos humanos, apesar das tentativas de alguns governos cínicos e “desmancha-prazeres” para bloquearem os progressos.

Os apelos a que seja feita justiça para alguns dos piores crimes ao abrigo de lei internacional ganham mais força em todo o mundo, da América Latina aos Balcãs. Embora os poderes judiciais corruptos, ineficazes e politicamente parciais continuem a constituir um dos principais obstáculos à justiça, a maré está a mudar contra a impunidade nalgumas partes do mundo. Em 2005, vários países abriram investigações ou julgaram pessoas suspeitas de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Apesar da oposição dos EUA, o apoio ao Tribunal Penal Internacional (TPI) cresceu, com o México a tornar-se o centésimo Estado-membro a ratificar o Estatuto de Roma do TPI. A decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas de transferir o caso de Darfur para o TPI abriu um importante precedente, demonstrando a relação entre a segurança e a justiça.

Pessoas comuns saíram para a rua para reclamar os seus direitos e exigir mudanças políticas. Na Bolívia, o país mais pobre da América do Sul, os protestos massivos das comunidades indígenas, camponeses e mineiros levaram à demissão do presidente e à eleição do primeiro chefe de Estado indígena. Mesmo os governos repressivos se viram apertados pelos protestos de massas, e foram obrigados a fazer concessões.

Há-de haver quem conteste a minha sensação de optimismo. Mas sinto-me encorajada por estes desenvolvimentos e, mais importante ainda, pelas extraordinárias manifestações de activismo global e solidariedade humana além-fronteiras: pela energia e firmeza dos membros da Amnistia Internacional (AI) em todo o mundo; pelas enormes multidões que responderam à chamada para “fazer da pobreza História” no período que antecedeu a Cimeira do G8; e pelo transbordante apoio das pessoas comuns às vítimas do tsunami na Ásia, do furacão Katrina nos EUA e do terramoto na Caxemira.

Dos camponeses que protestaram contra a apreensão de terras na China às mulheres que reafirmaram os seus direitos no 10º aniversário da Conferência Mundial das Mulheres das NU, os acontecimentos de 2005 demonstraram que o ideal dos direitos humanos – juntamente com o movimento global das pessoas que o fazem avançar – está mais poderoso e forte que nunca.

Tortura e combate ao terrorismo

Quando bombistas suicidas atacaram no coração de Londres em Julho de 2005, o primeiro-ministro britânico Tony Blair respondeu com o anúncio de planos que iriam restringir drasticamente os direitos humanos e mostrar ao mundo que “as regras do jogo estavam a mudar”. Lorde Steyn, um magistrado reformado do sistema judicial britânico, respondeu de forma adequada: “A manutenção do Estado de Direito não é um jogo. Tem a ver com o acesso à justiça, os direitos humanos fundamentais e os valores democráticos”.

Felizmente, alguns dos artigos mais abusivos da legislação proposta pelo governo britânico foram rejeitados pelo Parlamento O governo sofreu duas derrotas parlamentares relacionadas com a legislação anti-terrorismo em 2005 – as primeiras derrotas parlamentares do primeiro-ministro Blair em nove anos de governo.


O poder judicial também enfrentou o governo. A mais alta instância judicial britânica, a Câmara dos Lordes (House of Lords), rejeitou a intenção do governo de usar informações obtidas por governos estrangeiros através de tortura como prova nos tribunais britânicos. Noutro caso, o Tribunal de Relação rejeitou a alegação do governo de que as forças militares britânicas no Iraque não estavam sob a alçada das leis internacionais e domésticas dos direitos humanos. O Tribunal afirmou ainda que o sistema de investigação das mortes de prisioneiros iraquianos sob custódia das forças armadas britânicas era gravemente deficiente.

Nos EUA foram questionadas de forma idêntica as alegações da Administração Bush de que, no contexto da guerra contra o terrorismo, os EUA estavam isentos da proibição da tortura e maus-tratos. Uma emenda legislativa procurou reafirmar a proibição total da tortura e do tratamento cruel e degradante de todos os prisioneiros por parte dos responsáveis e agentes dos EUA, independentemente do país onde se encontrassem. Não só o presidente ameaçou vetar a proposta, como o vice-presidente ainda procurou isentar a Agência Central de Informações (CIA) desta medida. A própria CIA admitiu usar o “afogamento simulado” como método de interrogatório, e o Procurador-Geral alegou que os EUA podiam maltratar detidos no estrangeiro, desde que não fossem cidadãos norte-americanos.

No fim, foi o presidente Bush o primeiro a ceder neste braço-de-ferro, retirando a sua oposição à proposta. Contudo, a lei continha um grave retrocesso, uma emenda que retirava aos detidos de Guantánamo o direito de apresentaram pedidos de habeas corpus num tribunal federal e os impedia de pedirem ao tribunal para rever a forma como eram tratados ou as condições de detenção. Contudo, o recuo público do presidente foi indicativo da pressão que estava a ser colocada sobre a Administração pelas fortes divisões interna nos EUA e pela crescente preocupação entre os seus aliados no estrangeiro.

Os governos europeus estremeceram à medida que foi sendo revelado publicamente o seu papel como parceiros dos EUA na sua “guerra contra o terrorismo”. Houve indignação pública após a comunicação social ter revelado a possível conivência entre a Administração norte-americana e alguns governos europeus relativamente os “locais negros” da CIA – alegados centros de detenção secretos em território europeu. As crescentes provas de que prisioneiros estavam a ser ilegalmente transferidos através de aeroportos europeus para países onde havia o risco de serem torturados (“rendições extraordinárias“) também provocaram uma condenação pública generalizada.

As exigências de encerramento do centro de detenção da Baía de Guantánamo ganharam nova força, com as NU, várias instituições europeias e líderes políticos e de opinião, incluindo proeminentes responsáveis norte-americanos, a somarem as suas vozes à crescente pressão. O que antes era apenas a voz isolada da AI no meio do vazio tornou-se um crescendo de condenação contra o mais gritante símbolo do abuso de poder por parte dos EUA. Este apoio reforça ainda mais a nossa determinação de continuar com a nossa campanha até que a Administração norte-americana encerre o campo de Guantánamo, revele toda a verdade sobre os centros de detenção secretos sob o seu controlo e reconheça o direitos dos detidos em serem julgados de acordo com os padrões da lei internacional ou serem libertados.

As mudanças que identifiquei não significam que o apoio às medidas restritivas tenha desaparecido ou que os ataques contra os direitos humanos em nome da luta contra o terrorismo tenham diminuído. Os EUA não rejeitaram categoricamente a utilização de certas formas de tortura ou maus-tratos. Falharam também na abertura de uma investigação independente ao papel de altos responsáveis norte-americanos nos abusos cometidos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, e noutros locais, apesar da acumulação de provas que apontam para envolvimento superior.


Quando os tribunais britânicos declararam ilegal a detenção de cidadãos estrangeiros sem acusação ou julgamento, o governo britânico imediatamente introduziu nova legislação que colocou estas pessoas sob virtual detenção domiciliária. E continua a tentar obter “garantias diplomáticas” que lhe permitam devolver pessoas para países onde podem ser vítimas de tortura.

O “valor de exportação” da “guerra contra o terrorismo” também não diminuiu. Com a aprovação tácita ou explícita dos EUA, países como o Egipto, Jordânia ou Iémen continuaram a prender, sem acusação ou julgamento justo, pessoas suspeitas de envolvimento em terrorismo.

O que foi diferente em 2005 relativamente a anos anteriores foi que a posição da opinião pública está a mudar, graças ao trabalho dos defensores dos direitos humanos e outros, que está a colocar na defensiva os governos dos EUA e dos países europeus. As pessoas já não estão dispostas a aceitar o falacioso argumento de que a redução da nossa liberdade irá aumentar a nossa segurança. Cada vez mais governos estão a ser responsabilizados pelas suas acções – perante os Parlamentos, nos tribunais e noutros fóruns públicos de discussão. Cada vez mais existe a compreensão de que o desprezo pelos direitos humanos e pelo Estado de Direito, longe de vencer a “guerra contra o terrorismo”, apenas serve para criar ressentimento e isolar as comunidades visadas por essas medidas, fazendo o jogo dos extremistas e enfraquecendo a nossa segurança colectiva.

Limites, embora frágeis, estão a ser traçados. As vozes levantam-se. Estes factos trazem consigo a esperança de um ponto de viragem no debate e de uma abordagem futura aos direitos humanos e à segurança mais baseada em princípios.

Contrariamente ao afirmado pelo primeiro-ministro britânico, as regras do jogo não mudaram. Nem a segurança nem os direitos humanos são bem servidos por governos que jogam jogos com estas regras fundamentais.

Devemos continuar a condenar da forma mais veemente possível os ataques cobardes e odiosos dos grupos armados contra civis. De forma igualmente veemente, devemos também resistir às estratégias insanas e perigosas dos governos que procuram combater o terror com a tortura.

Iniciativas reformistas

A crescente desilusão e as duras críticas contra os mecanismos dos direitos humanos das Nações Unidas levaram finalmente os governos a iniciarem importantes reformas como parte da reavaliação do papel da ONU na governação internacional.


Os Estados-membros das Nações Unidas concordaram duplicar o orçamento do Gabinete do Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, e em concentrar o seu trabalho na protecção dos direitos humanos através da presença no terreno.

Os Estados-membros decidiram dissolver a desacreditada Comissão dos Direitos Humanos da ONU, e propuseram substitui-la por um Conselho dos Direitos Humanos, eleito e subordinado à Assembleia Geral das NU, e com poderes para investigar todos os países, incluindo, prioritariamente, os seus próprios membros. Embora produto do compromisso, a proposta representa uma oportunidade significativa para melhorar os mecanismos dos direitos humanos das NU. Lamentavelmente, o futuro do Conselho era incerto na altura em que este relatório foi impresso, devido à recusa dos EUA em apoiá-lo, ostensivamente por conter demasiadas “deficiências”. Um país, por mais poderoso que seja, não devia poder enfraquecer um consenso amplo e internacional. Espero que os outros governos resistam à pressão dos EUA, unam esforços em defesa da resolução e consigam criar o Conselho.

Sinto-me encorajada pelo apoio manifestado pelos governos às mudanças nos mecanismos dos direitos humanos das NU. Este facto é ainda mais notável dada a forma como grande parte do ambicioso e visionário pacote de reformas apresentado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas – incluindo propostas para alargar o Conselho de Segurança, reforçar os esforços de não-proliferação de armas e melhor equipar a ONU para agir eficazmente no combate ao genocídio – foi rejeitado ou destroçado.

Sinto-me também encorajada por alguns avanços menos publicitados ocorridos no ano passado. As Nações Unidas terminaram o rascunho da Convenção Internacional para a Protecção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados (International Convention for the Protection of All Persons from Enforced Disappearance), destinada a combater a detenção secreta, prisão, tortura e, frequentemente, morte de prisioneiros às mãos dos agentes do Estado. A AI, que começou a fazer campanha a favor dos “desaparecidos” há 35 anos, saúda esta importante contribuição para a protecção dos direitos humanos.

As Nações Unidas nomearam um Representante Especial para os assuntos relacionados com os direitos humanos e a empresas transnacionais. Embora as empresas possam ser uma força positiva para o desenvolvimento social e económico, o impacto de algumas actividades comerciais sobre os direitos humanos é altamente prejudicial, conforme foi demonstrado pela violência provocada pelos interesses petrolíferos e minerais em locais como o Delta do Níger, na Nigéria, a República Democrática do Congo ou o Sudão, ou a prontidão da indústria de tecnologia e informação em acatar as restritivas políticas da China em matéria de liberdade de expressão. Contudo, uma poderosa combinação de interesses políticos e empresariais conseguiu resistir aos esforços internacionais para fazer avançar a responsabilização das empresas pelos direitos humanos. Apesar da considerável controvérsia que rodeou os Regulamentos da ONU relativamente às empresas e aos direitos humanos, a questão da responsabilização das empresas permanece firmemente na agenda internacional. Avançando a partir da experiência dos Regulamentos, a tarefa agora é definir um conjunto claro de padrões e princípios internacionais dos direitos humanos para as empresas.


Retórica e realidade

As instituições têm a força daqueles que as governam. Demasiadas vezes, governos poderosos manipulam as Nações Unidas e as instituições regionais para satisfazerem os seus estreitos interesses nacionais. Os USA são o principal exemplo, mas infelizmente não estão sozinhos, conforme ficou provado pelo historial da Rússia no Cáucaso e na Ásia Central, e pela crescente cooperação económica da China com alguns dos governos mais repressivos de África.

Aqueles que têm uma maior responsabilidade na salvaguarda da segurança global no Conselho de Segurança da ONU mostraram em 2005 que estão entre aqueles que estão mais dispostos a paralisar o Conselho e a impedi-lo de tomar medidas efectivas relacionadas com os direitos humanos. Este facto foi claramente demonstrado pelos EUA e o Reino Unido na questão do Iraque, e pela Rússia e pela China no caso do Sudão. Eles pareciam ignorar as lições da História, que dizem que o caminho para o reforço da segurança global passa pelo respeito dos direitos humanos.

A hipocrisia do G8 foi particularmente notada durante o ano de 2005. Os governos do G8 alegaram que tinham colocado a erradicação da pobreza como prioridade na sua agenda, enquanto continuaram a ser os principais fornecedores de armas aos governos africanos Seis dos oitos países do G8 estão entre os 10 maiores exportadores mundiais de armas, e todos os oito exportam grandes quantidades de armamento convencional ou armas ligeiras para países em desenvolvimento. Este facto devia implicar uma responsabilidade particular do G8 em ajudar a criar um sistema eficaz de controlo global das transferências de armamento. Mas, apesar da pressão do governo britânico, os líderes do G8 não chegaram a acordo quanto à necessidade de um Tratado sobre o Comércio de Armas durante a Cimeira de Gleneagles, em Julho de 2005.

Contudo, os apelos no sentido da criação de um tratado global para controlar as armas ligeiras conquistaram o apoio de pelo menos 50 países em todo o mundo. A mensagem da campanha, liderada em conjunto pela AI, a Oxfam e a Rede Internacional de Acção contra as Armas Ligeiras (International Action Network for Small Arms, IANSA), é clara: o comércio de armas está fora de controlo, e deve ser travado com urgência.

No que diz respeito às instituições regionais, sinto-me desapontada por a União Europeia (UE) continuar a ser, na maior parte das vezes, uma voz muda no que diz respeito aos direitos humanos. A UE não pode esperar manter a credibilidade em matéria de direitos humanos e a supremacia moral se enfia a sua cabeça colectiva na areia quando confrontada com os abusos cometidos pelos seus principais parceiros políticos e comerciais, ou quando fecha os olhos às políticas e práticas dos seus próprios Estados-membros em relação aos refugiados e requerentes de asilo e ao combate ao terrorismo. A UE deve ser mais determinada em enfrentar os chocantes abusos dos direitos humanos cometidos pela Rússia na Chechénia. Deve também resistir às pressões das empresas para levantar o seu embargo de venda de armas à China. Este embargo foi originalmente imposto após a brutal repressão na Praça de Tiananmen, em 1989, para mostrar a determinação da UE em promover os direitos humanos na China. Não deve ser removido até que o governo chinês faça concessões significativas no campo dos direitos humanos.


A União Africana (UA) desenvolveu uma estrutura progressiva de direitos humanos, e desempenhou um papel importante na resolução da crise no Togo, mas infelizmente não tem a capacidade ou a vontade política necessárias para cumprir as suas promessas de forma consistente. Prejudicada por problemas logísticos e pela recusa do governo sudanês e das milícias armadas em acatarem a lei internacional, os monitores dos direitos humanos da UA não foram capazes de fazer a diferença no terreno na região de Darfur. A organização não teve estômago para enfrentar a chocante situação dos direitos humanos no Zimbabué. Não conseguiu convencer a Nigéria ou o Senegal a cooperar nos esforços para trazer perante a justiça os antigos presidentes da Libéria e do Chade, respectivamente, Charles Taylor e Hissène Habré. Os líderes africanos prestam um triste serviço a eles próprios e ao povo africano quando usam a solidariedade africana para se protegerem uns aos outros da justiça e da responsabilização.

Face à letargia institucional e os fracassos dos governos, a opinião pública, quer seja em África, na Europa ou noutro local qualquer, exige um compromisso mais firme dos governos para com os direitos humanos, quer no plano doméstico quer internacional. Graças aos defensores dos direitos humanos e outros, e à crescente pressão da opinião pública, a comunidade internacional está a ser obrigada a reconhecer os direitos humanos como a estrutura base a partir da qual a segurança e o desenvolvimento devem ser imaginados e implementados. Sem respeito pelos direitos humanos, nem a segurança nem o desenvolvimento podem ser sustentados.

Tanto no contexto internacional como regional, os direitos humanos são cada vez mais reconhecidos como um marco de credibilidade e autoridade das instituições e estados individuais. Essa foi uma das razões pelas quais vários governos contestaram a atribuição da presidência da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)[1] a Myanmar. Essa foi a razão pela qual a UE acabou por decidir não acabar com o embargo de venda de armas à China. Essa foi a razão pela qual a Índia adoptou os direitos humanos como elemento-chave na abordagem à questão do Nepal.

Tanto por razões de princípio como por razões pragmáticas, os direitos humanos devem ser encarados como um elemento crucial das estratégias de segurança globais e regionais sustentáveis, e não como um extra opcional para melhores dias. Não tenho qualquer dúvida de que os acontecimentos de 2005 indicam que a autoridade política e moral dos governos será, cada vez mais, julgada pela sua posição relativamente aos direitos humanos, tanto no plano doméstico como internacional. Esta é uma das principais conquistas do movimento dos direitos humanos nos últimos tempos.

Os desafios que se avizinham são claros. Ataques traiçoeiros de grupos armados, crescente instabilidade no Médio Oriente, a crescente raiva e isolamento das comunidades muçulmanas por todo o mundo, os conflitos esquecidos de África e outros locais, as desigualdades crescentes e a pobreza gritante – são todos prova de um mundo perigoso e dividido no qual os direitos humanos são diariamente ameaçados. Mas longe de me sentir desmotivada, acredito que estes desafios reforçam ainda mais o impulso para passar à acção.

Ao estabelecermos a nossa agenda para 2006, a AI e os seus milhões de membros e apoiantes sentem-se encorajados pelos avanços notáveis do movimento dos direitos humanos e pela fé das pessoas comuns no poder dos direitos humanos. Nós na AI não subestimamos esse poder. Usá-lo-emos para combater aqueles que semeiam o medo e o ódio, para desafiar a visão míope dos líderes mais poderosos do mundo e para responsabilizar os governos pelos seus actos.


COMPROMISSOS DA AMNISTIA INTERNACIONAL

Em 2006, a Amnistia Internacional compromete-se a:

Resistir aos ataques contra os padrões dos direitos humanos, principalmente contra a proibição absoluta da tortura e dos maus-tratos.

Exigir o encerramento do campo de detenção da Baía de Guantánamo e dos centros de detenção secretos, e a revelação de toda a verdade sobre as “rendições extraordinárias” e os “prisioneiros fantasma”.

Condenar veementemente os ataques deliberados de grupos armados contra civis.

Lutar para acabar com a impunidade e reforçar os sistemas judiciais nacionais e internacionais.

Denunciar os abusos dos direitos humanos cometidos durante os conflitos armados, e fazer campanha pela criação de um tratado internacional sobre o comércio de armas destinado a controlar a sua venda.

Procurar uma moratória universal sobre a pena de morte como passo para a sua abolição.

Defender o direitos das mulheres e das raparigas a serem livres da violência e discriminação.

Promover a protecção dos refugiados, pessoas deslocadas e migrantes.

Expor a ligação entre a pobreza e os abusos dos direitos humanos e responsabilizar os governos pela erradicação da pobreza através do respeito pelos direitos humanos.

Fazer campanha para responsabilizar as empresas e os agentes económicos pelos abusos dos direitos humanos.

Lutar pela ratificação universal dos sete tratados fundamentais dos direitos humanos cruciais para a segurança e dignidade humanas.

Apoiar os defensores dos direitos humanos e os activistas na sua luta pela igualdade e justiça.

LEGENDAS:

Krishna Pahadi (à esquerda), membro fundador da Sociedade dos Direitos Humanos e da Paz e antigo presidente da AI no Nepal, com Irene Khan no centro de detenção policial de Kathmandu, Nepal, 2005.


Ciganos búlgaros numa manifestação contra a discriminação no centro de Sofia, Fevereiro de 2005. A manifestação coincidiu com o início da iniciativa internacional “2005-2015 Década de Inclusão dos Ciganos”, que foi lançada em oito países do sudeste da Europa.

Mulheres protestam contra a discriminação baseada no género na capital iraniana, Teerão, em Junho de 2005.

Dia Internacional da Mulher, Beni, Província de Kivu do Norte, República Democrática do Congo, Março de 2005. As mulheres estão a desfilar descalças com os sapatos na cabeça em protesto contra as violações generalizadas na região.

Membros da Coligação Internacional para a Abolição da Tortura e Apoio aos Sobreviventes manifestam-se junto à Casa Branca, Washington D.C., EUA, Junho de 2005.

Defensores dos direitos humanos no exterior do edifício onde se encontrava detido o antigo presidente peruano Alberto Fujimori em Santiago, Chile, Dezembro de 2005. Alberto Fujimori foi acusado no Peru de violações dos direitos humanos, incluindo ter ordenado assassinatos e tortura.

O antigo presidente iraquiano Saddam Hussein em tribunal, Bagdad, Outubro de 2005.

Membros da AI provenientes de todo o mundo participam na marcha que abriu o Fórum Social Mundial, Porto Alegre, Brasil, Janeiro de 2005. © AI

PANORAMA REGIONAL 2005

AMÉRICAS

A negação dos direitos humanos continuou a ser uma realidade diária para muitas pessoas nas Américas, particularmente para aqueles que se encontravam nos sectores mais vulneráveis da sociedade, como as comunidades indígenas, as mulheres e as crianças. Contudo, a sociedade civil, incluindo o movimento de defesa dos direitos humanos, continuou a ganhar força e influência na sua luta por melhores condições de vida, transparência e responsabilidade governamental e respeito pelos direitos humanos.

A vida da maior parte das pessoas continuou a ser afectada pela discriminação e pobreza, as quais deram origem a descontentamento social e instabilidade política em vários países. Os movimentos indígenas, representando alguns dos povos mais pobres e marginalizados das Américas, reforçaram o seu desafio às estruturas políticas tradicionais, principalmente na região Andina.

Os abusos, torturas e maus-tratos de detidos cometidos pela polícia continuaram a ser generalizados. Continuaram a ser relatados “desaparecimentos” no contexto do conflito interno da Colômbia. A violência contra as mulheres foi endémica em toda a região e os assassinatos de mulheres em El Salvador, Guatemala e México, assim como a aparente indiferença das autoridades, causaram a indignação geral. O conflito na Colômbia e os elevados índices de criminalidade organizada por toda a região continuaram a afectar adversamente os direitos de um grande número de pessoas.


As políticas conduzidas pelos EUA em nome da segurança enfraqueceram os direitos humanos quer no interior do país quer em muitos outros países por todo o mundo.

Desastres naturais, incluindo uma série de furacões devastadores, afectaram vários países das Caraíbas e da América Central e alguns estados do sul dos EUA, agravando os níveis já preocupantes de pobreza e marginalização. Em muitos casos, tal como sucedeu em Nova Orleães e outras comunidade do estado norte-americano da Louisiana, as autoridades não providenciaram protecção adequada e a distribuição de ajuda foi lenta e insuficiente.

Segurança nacional e ‘guerra ao terrorismo’

A hipocrisia e o desrespeito pelos princípios básicos dos direitos humanos e pelas obrigações legais internacionais continuaram a marcar a “guerra ao terrorismo” dos EUA.

Milhares de pessoas continuaram detidas sem qualquer acusação debaixo de custódia norte-americana no Iraque, no Afeganistão e na Baía de Guantánamo, em Cuba, e em centros de detenção secretos conhecidos como “locais negros” supostamente existentes na Europa, no Norte de África e noutros locais. Continuaram os relatos de torturas e maus-tratos e surgiram novos indícios de que as autoridades norte-americanas “deslocalizaram” a tortura através de vários meios, incluindo o uso de “rendições” – a transferência, por vezes em segredo, de indivíduos para outro país sem qualquer forma de processo judicial ou administrativo.

Cerca de 500 pessoas continuavam detidas na Baía de Guantánamo, onde eram mantidas em condições equivalentes a tratamento cruel, desumano ou degradante e continuavam a ver ser-lhes negado o direito de contestar a legalidade da sua detenção.

Apesar da acumulação de provas de que o governo norte-americano sancionou “desaparecimentos” e técnicas de interrogatório equivalentes a tortura e outros maus-tratos, ninguém foi responsabilizado ao mais alto nível, incluindo indivíduos que podem ter sido responsáveis por crimes de guerra e crimes contra a humanidade.

As políticas da “guerra ao terrorismo” dos EUA que eram contrárias aos padrões dos direitos humanos foram contestadas durante o ano de 2005. Foi aprovada legislação proibindo a tortura e tratamento desumano de prisioneiros, apesar das objecções iniciais da administração Bush, que afirmava que a proibição iria colocar em causa a sua capacidade de obter informações dos detidos. Contudo, a legislação também limitava seriamente o acesso dos detidos de Guantánamo aos tribunais federais e colocava em causa o futuro de cerca de 200 casos pendentes movidos por detidos para contestar a legalidade da sua detenção.

Os EUA reforçaram o seu programa de assistência militar à Colômbia, apesar da prevalência de indícios de graves violações dos direitos humanos por parte das forças militares e grupos paramilitares que actuavam com o seu apoio activo ou tácito.

Conflito e criminalidade

O estado de direito estava ameaçado em vários países por políticas governamentais abusivas, corrupção, discriminação e desigualdades que geraram contestação por parte das comunidades marginalizadas, principalmente nos países Andinos. Mais uma vez, os movimentos indígenas estiveram na primeira linha dos protestos e exigiram de forma cada vez mais activa os seus direitos e uma maior participação na vida política. Os governos do Equador e da Bolívia foram obrigados a demitir-se devido à forte contestação popular.


Na Colômbia, o estado de direito estava ameaçado pelas políticas governamentais no contexto do duradouro conflito. Todas as partes envolvidas no conflito continuaram a cometer abusos dos direitos humanos de forma generalizada, principalmente contra a população civil.

Os direitos humanos e o estado de direito estavam ainda ameaçados devido aos elevados índices de violência em vários países, especialmente nas áreas urbanas. Nalgumas cidades do Brasil, América Central e Caraíbas, bairros inteiros estavam encurralados entre a violência criminosa, muitas vezes relacionada com grupos organizados, e a violenta e repressiva resposta das forças de segurança, cujos métodos violavam os direitos de comunidades inteiras. Embora a maior parte da atenção pública estivesse virada para os crimes contra os ricos, foram as vidas dos urbanos pobres que mais foram dominadas pela violência, devido à ausência de protecção estatal.

A tendência para a militarização das forças de segurança continuou a aumentar. Na América Central, o papel das forças armadas esteve cada vez mais ligado à manutenção da ordem pública a ao combate ao crime.

No Haiti, grupos ilegais armados e agentes da polícia estiveram implicados na morte e sequestros de civis.

A proliferação das armas ligeiras continuou a ser uma preocupação, apesar das tentativas de alguns governos para as restringir. Num referendo realizado no Brasil, 64 por cento dos eleitores votaram contra uma proposta para proibir a venda de armas de fogo.

Impunidade e justiça

Membros das forças de segurança continuaram a cometer violações generalizadas dos direitos humanos com impunidade. Por toda a região foram relatados casos de tortura e outras formas de maus-tratos, por vezes resultantes em mortes sob custódia, mas poucos responsáveis foram punidos. As vítimas, os seus familiares ou aqueles que os representaram quando apresentaram queixa, bem como as testemunhas, membros do poder judicial e investigadores, foram frequentemente intimidados, perseguidos, ameaçados de morte e por vezes assassinados.

Muitas prisões estavam seriamente sobrelotadas e não tinham serviços básicos. Frequentemente, as condições eram equivalentes a tratamento cruel, desumano e degradante. Esta situação provocou vários motins por toda a região, que resultaram em dezenas de mortes, na sua maior parte de jovens pobres do sexo masculino. Sistemas judiciais ineficazes, corruptos e discriminatórios faziam com que detidos provenientes de comunidades pobres e marginalizadas agonizassem durante meses ou até anos na prisão, antes de serem julgados e condenados, frequentemente sem acesso a advogados de defesa.

O uso excessivo da força pelas forças de segurança para combater a criminalidade e a desordem pública foi denunciado no Brasil, Colômbia, Equador, Jamaica, Paraguai e noutros países da região. Nalguns casos, pessoas foram mortas.

A falta de independência e imparcialidade do poder judicial na região – causada pela corrupção ou influências políticas, ou pelos interesses corporativos no interior da polícia e dos tribunais militares – continuou a constituir uma grave preocupação e a alimentar o ciclo de impunidade para as violações dos direitos humanos.


Registaram-se progressos significativos na resolução de legados antigos de violações dos direitos humanos nalguns países da América Latina. O antigo líder chileno Augusto Pinochet foi colocado sob prisão domiciliária por acusações relacionadas com violações dos direitos humanos. O facto de lhe ter sido retirada a imunidade legal e de ter sido declarado “mentalmente capaz” para ser julgado animou as vítimas e os seus familiares, que esperam que a sua luta de mais de 30 anos pela justiça possa finalmente ser compensada.

As vítimas de violações mais recentes dos direitos humanos e respectivos familiares viram o direito à justiça mais perto de ser realizado quando o antigo presidente do Peru, Alberto Fujimori, foi detido no Chile enquanto aguarda o resultado de um pedido de extradição por assassinatos, desaparecimentos forçados e torturas.

O Supremo Tribunal de Justiça[2] da Argentina declarou nulas as leis de Ponto Final e Obediência Devida[3], abrindo caminho à obtenção de verdade e justiça para os milhares de vítimas das violações dos direitos humanos cometidas na Argentina entre 1976 e 1983.

Adolfo Scilingo, um antigo oficial da Marinha argentina que admitiu ter estado a bordo dos aviões em que eram transportados prisioneiros, os quais eram drogados, despidos e atirados ao mar durante o regime militar argentino, foi julgado e condenado em Espanha por crimes contra a humanidade. Noutro caso, um veredicto do Tribunal Constitucional espanhol abriu caminho ao julgamento do antigo presidente da Guatemala Rios Montt e outros responsáveis do regime militar por violações dos direitos humanos.

Contudo, houve igualmente reveses significativos. Na Colômbia, a Lei da Paz e Justiça[4] ameaçou conceder impunidade aos membros dos grupos armados ilegais implicados em abusos dos direitos humanos, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade, que aceitassem a desmobilização. No Haiti, inúmeros responsáveis militares e paramilitares a cumprir as respectivas penas por envolvimento em massacres no passado fugiram da prisão e a alguns foi concedida liberdade incondicional sem qualquer razão aparente. Apesar de estar no cargo há cinco anos, o Procurador Especial nomeado para apresentar perante a justiça os responsáveis pelas violações generalizadas dos direitos humanos ocorridas no México nas décadas de 60, 70 e 80, ainda não tinha conseguido fazer qualquer progresso nas suas investigações.

Violência baseada no género

A violência contra as mulheres continuou a ser um dos desafios mais prementes no campo dos direitos humanos nas Américas. Incontáveis mulheres e raparigas enfrentaram diariamente a violência e não podiam contar com os respectivos governos para lhes dar os níveis mínimos de protecção e segurança que são o seu direito fundamental.


Por toda a região, os governos continuaram a ignorar o que está escrito nos tratados de defesa dos direitos humanos das mulheres. Embora a maior parte dos países da região tivesse leis para proteger as mulheres da violência no lar e na comunidade, as investigações da polícia às alegações de violência contra mulheres raramente foram eficazes, o poder judicial raramente levou a sério a violência contra as mulheres e os perpetradores quase nunca foram punidos.

O número de mulheres e raparigas assassinadas em Ciudad Juarez, no México, continuou a aumentar e não foram feitos progressos suficientes para acabar com a impunidade dos autores de raptos e assassinatos passados quer nesta cidade quer em Chihuahua. O número de mulheres assassinadas na Guatemala aumentou para 665, comparativamente a 527 no ano de 2004, e o número de casos de abusos sexuais e assassinatos de mulheres em El Salvador, que começara a subir em 2002, continuou a aumentar. Poucos progressos foram feitos na investigação destes casos e na prevenção contra a sua repetição.

A ausência de definições específicas na legislação para criminalizar a violência contra as mulheres continuou a constituir um obstáculo para a obtenção de justiça numa região onde a discriminação baseada no género continuou a ser endémica nas instituições estatais. Contudo, foram feitos alguns progressos. No México, o Supremo Tribunal considerou a violação no casamento como um crime, pondo fim a uma batalha legal de 15 anos durante a qual membros do sistema judicial chegaram a alegar que, uma vez que a procriação era o objectivo do casamento, as relações sexuais forçadas não podiam ser consideradas violação mas antes “um exercício indevido de um direito (conjugal)”. Na Guatemala, o Tribunal Constitucional suspendeu uma lei que permitia aos violadores, em certas circunstâncias, escaparem ao julgamento se casassem com a vítima.

Lésbicas, homossexuais, bissexuais e transexuais (LGBT) continuaram a ser vítimas de discriminação e violência. Nos EUA, um estudo conduzido pela AI revelou a existência de um padrão alarmante de conduta imprópria e abusos da polícia contra transexuais e todas as pessoas LGBT de cor ou contra jovens, imigrantes, sem-abrigo ou trabalhadoras sexuais. Na Nicarágua, as relações homossexuais e lésbicas continuaram a ser punidas por lei e vários países das Caraíbas continuavam a ter leis contra a sodomia.

Direitos económicos, sociais e culturais

De acordo com estudos realizados pelas NU, houve indícios de uma ligeira redução nos níveis de pobreza nalguns países da região. Contudo, estes números disfarçavam bolsas de declínio nalgumas regiões, incluindo o Haiti e algumas zonas rurais da Guatemala, Peru e outros países. As desigualdades sociais e de rendimentos continuaram a ser das mais elevadas no mundo, prejudicando o potencial de desenvolvimento global. Em muitos países, as comunidades marginalizadas das áreas rurais e urbanas continuaram a viver na pobreza extrema, e os seus direitos de acesso a cuidados de saúde, água potável, meios de subsistência, educação e alojamento continuaram a ser ignoradas.

A participação dos povos indígenas na vida política não foi acompanhada por uma melhoria dos seus direitos económicos, sociais e culturais, apesar dos repetidos apelos dos bancos internacionais e outros no sentido do desenvolvimento da ajuda e apoio aos povos indígenas e afro-descendentes e ao investimento nas comunidades rurais. Um estudo do Banco Mundial sobre os povos indígenas na Bolívia, Equador, Guatemala, México e Peru revelou que as populações indígenas tinham entre 13 a 30 por cento mais probabilidades de serem pobres do que as populações não-indígenas.


Estima-se que a epidemia de HIV/SIDA tenha causado a morte a cerca de 24 mil pessoas nas Caraíbas em 2005, fazendo dela a principal causa de morte dos adultos entre os 15 e os 44 anos. Um total de 300 mil pessoas estavam infectadas com HIV na região, incluindo cerca de 30 mil que foram infectadas durante o ano de 2005. Noutros países da região, as taxas de infecção aumentaram, especialmente entre os homens. As mulheres trabalhadoras sexuais também estavam gravemente afectadas.

Os conflitos por causa de recursos naturais, tais como água e terras, e por causa de planos de privatização, tiveram reflexos no número de ataques contra defensores dos direitos humanos devido aos seus esforços para discutir preocupações legítimas nestas áreas.

Uma cimeira dos governos das Américas que decorreu na Argentina em Novembro não logrou desbloquear as negociações sobre a criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), há muito num impasse. Alguns países, liderados pela Argentina, Brasil e Venezuela, opunham-se vigorosamente à iniciativa.

Contudo, a liberalização do comércio e do investimento continuou a prevalecer na região, através de acordos bilaterais ou sub-regionais. Houve protestos contra o efeito deste tipo de acordos sobre o entrincheiramento da pobreza em largos sectores da população e sobre o fracasso dos governos em garantir que tais acordos incluissem salvaguardas relativamente à defesa dos direitos humanos. Os direitos humanos continuaram a ser secundarizados relativamente aos interesses económicos, fazendo aumentar o risco de enfraquecimento dos direitos humanos através de práticas comerciais ou decisões de investimento irresponsáveis. Entre as áreas que causavam preocupação específica encontravam-se os direitos laborais, o acesso a medicamentos baratos e os direitos de propriedade intelectual.

Pena de morte

Vários países, incluindo o Belize e Trindade e Tobago, continuaram a condenar presos à morte. Contudo, as únicas execuções em toda a região ocorreram nos EUA. O México aboliu a pena de morte para todos os crimes.

Em Dezembro, os EUA levaram a cabo a sua 1000ª execução desde 1977, ano em que foram retomadas as execuções após uma moratória. Apesar desta marca vergonhosa, a tendência com vista a restringir a aplicação da pena de morte prosseguiu. Em Março, o Supremo Tribunal dos EUA[5] proibiu as execuções de criminosos juvenis (aqueles que tinham menos de 18 anos na altura do crime), colocando os EUA de acordo com os padrões internacionais que proíbem este tipo de execuções. Duas pessoas foram libertadas do corredor da morte por estarem inocentes. Contudo, entre as 60 pessoas executadas durante o ano de 2005 encontravam-se pessoas com deficiências mentais, arguidos que não tiveram acesso a representação legal eficaz e cidadãos estrangeiros a quem foram negados direitos consulares.


Defensores dos direitos humanos

Por toda a região, os activistas dos direitos humanos levaram a cabo uma campanha vigorosa no sentido de fazer com que os governos e grupos armados cumprissem as suas obrigações no respeito dos padrões domésticos e internacionais dos direitos humanos.

Os activistas dos direitos das mulheres lutaram para reformar leis antiquadas sobre a violação e violência doméstica, e foram frequentemente ameaçados ou intimidados por tentarem apoiar as vítimas de violência e abusos sexuais. Os activistas indígenas da América Central defenderam os direitos da sua comunidade em manter os seus meios de subsistência e o direito de serem consultados sobre assuntos que afectassem as suas terras ancestrais, tais como a extracção de recursos naturais ou a construção de barragens. A AI receava que alguns activistas dos direitos dos homossexuais, lésbicas e transexuais tivessem passado à clandestinidade devido à crescente homofobia na Jamaica e outros países das Caraíbas.

As dificuldades e riscos enfrentados pelos activistas nas Américas iam da intimidação e proibição de viajar à detenção arbitrária e a serem infundadamente acusados de terrorismo e outras actividades violentas. Frequentemente, as autoridades recusaram-se a levar a sério os relatos de abusos contra os defensores dos direitos humanos, chegando a sugerir que os relatos tinham sido inventados ou exagerados. Activistas que trabalhavam a nível local em projectos de desenvolvimento e combate à pobreza local, frequentemente em áreas isoladas, e jornalistas que cobriam assuntos como a corrupção foram assassinados no Brasil, Colômbia, Guatemala e México. No Equador, membros de uma organização não-governamental que faz campanha para proteger as comunidades indígenas e o meio ambiente dos efeitos adversos da prospecção de petróleo e da fumigação de plantações de coca foram ameaçados de morte. Em Cuba, os activistas dos direitos humanos, dissidentes políticos e sindicalistas continuaram a ser perseguidos e intimidados, e os ataques contra a liberdade de expressão e associação foram frequentes.

A utilização do sistema judicial para impedir o trabalho dos defensores dos direitos humanos, através de ameaças de investigação ou detenção por acusações infundadas, foi um problema grave na Colômbia, Cuba, Guatemala, Haiti, Honduras e México. Foram igualmente denunciados casos idênticos nos EUA.

Os esforços governamentais para proteger os defensores dos direitos humanos ameaçados foram prejudicados por atrasos consideráveis de algumas autoridades na implementação dos pedidos de medidas de protecção dos referidos indivíduos, conforme recomendado pela Comissão Inter-Americana dos Direitos Humanos. Alguns governos apenas conseguiram oferecer medidas de protecção tais como coletes à prova de bala, e não conseguiram reunir a necessária vontade política para combater a profunda hostilidade contra os defensores dos direitos humanos dentro do próprio governo ou corrigir as provisões legais restringindo o direito de defender os direitos humanos.


[1] Association of Southeast Asian Nations, ASEAN

[2] Corte Suprema de Justicia

[3] Leyes de Punto Final y Obediencia Debida

[4] Ley de Justicia y Paz

[5] United States Supreme Court

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