Panela de pressão

Reina no sistema prisional a máxima: prende e depois pergunta

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22 de maio de 2006, 14h25

O filme A Queda, baseado no relato da secretária de Hitler sobre seus últimos dias, foi criticado quando de seu lançamento sob a acusação de ‘”humanizar” o ditador. O diretor se defendeu dizendo que Hitler — gostemos ou não — era, de fato, um ser humano e que o filme procurava mostrar que quem faz monstruosidades é o ser humano e não os animais irracionais.

À condição humana não se renuncia, nem pode ela ser “cassada” por piores que sejam os atos cometidos por alguém. Mas não é assim que funciona nosso sistema policial-prisional.

Raimundo Pascoal Barbosa, o grande cearense que tanto dignificou a advocacia de São Paulo, dizia que até a implantação do regime militar só os pobres eram torturados. Mas que a ditadura “democratizou a tortura”, passando a bater indiscriminadamente em pobres e ricos, pois algumas das vítimas dessa fase negra são próceres do regime que democratizou a humilhação e a desumanização de detidos, suspeitos e condenados.

São corriqueiras as imagens de pessoas que não ostentam a menor periculosidade física sendo exibidas com algemas, como se fossem troféus de caça, ou enfiadas em camburões como frangos em jacá. Cada vez que há uma reportagem sobre presídio, não há como esconder as condições em que vivem os detentos, muito abaixo do mínimo de salubridade exigido pela Sociedade Protetora dos Animais, para lembrar a feliz intervenção de Sobral Pinto. E se o DOI-Codi se orgulhava de bater primeiro e perguntar depois, o instituto inconstitucional da prisão temporária se presta hoje ao “prende primeiro e pergunta depois”.

Os presos são amontoados em pocilgas, sem a menor condição de higiene ou decência, animalizados em todos os aspectos. Pior que isso: se o crime é “hediondo” (e, como diria José Carlos Dias, lá existem crimes adoráveis?) a situação é, sem exagero, dantesca: Lasciate ogni speranza voi che entrate. Aquilo que René Ariel Dotti chamou de “RDD — regime da desesperança” é, para Dante, a essência do inferno. Não há esperança, não há objetivo a atingir, não há vantagem alguma em ter bom comportamento, não há benefício em resistir aos “donos” do canil. O sistema empurra o condenado para a quadrilha desde o primeiro dia, pois, pertencendo ou não a ela, a pena a cumprir será a mesma.

Não sei que proveito há em discutir se o que vivemos é ou não terrorismo. Que diferença faz? O que é importante é entender que é a panela de pressão, aferventada pelo Estado, que está vazando. Ela ainda não explodiu, mas se persistir a fervura não se pode prever outro desfecho.

Chovem, nesta hora, opiniões dos que se nivelam aos bandidos e acham que o Estado deveria agir como eles, “endurecendo” ainda mais o processo de desumanização, aumentando a fervura. A se concordar com isso, é melhor deixar de lado o sadismo e partir logo para a pena de morte, desde que aplicada de imediato.

Pior ainda é achar que cerceando direitos — ou seja, reduzindo ainda mais a condição humana, suprimindo o pouco que dela, às vezes, resta — vai-se obter algum resultado. Nesse aspecto é insuperável a afirmação do professor Miguel Reale Júnior: “O preço da liberdade é o eterno delito”.

É possível suprimir de vez a criminalidade? É, sim. Basta que cada um de nós passe a viver trancafiado numa cela individual. Prefiro a liberdade.

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