Era ditatorial

Súmulas do STJ e STF que impedem recursos são inconstitucionais

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21 de maio de 2006, 11h27

1. A “nova ordem” no Judiciário brasileiro

Há recursos fundamentados e legítimos. Há recursos meramente protelatórios. Não há dúvida de que esses últimos precisam ser eliminados do processo. Todavia, sob a desculpa de atender a tal mister, têm sido introduzidas modificações no Código de Processo Civil que outorgam tanta discricionariedade ao Judiciário que violam os direitos e garantias individuais constitucionalmente assegurados. E eliminam os direitos dos litigantes de apresentar recursos legítimos.

Essa discricionariedade é tal que se pode afirmar ser garantido aos tribunais o direito de analisar somente as matérias que seus integrantes desejem, omitindo-se naquelas que sejam polêmicas ou que a exclusivo critério dos julgadores devam ser repelidas, não importando quais sejam os reais motivos. E isso em um sistema jurídico no qual os membros desses tribunais são para eles nomeados por indicações ou do Executivo ou dos órgãos de classe, para mandatos vitalícios, portanto, sem qualquer controle democrático.

Uma análise da evolução histórica das normas cerceadoras do processamento dos recursos auxiliará na compreensão do quadro que levou à situação ditatorial e arbitrária em que nos encontramos.

O primeiro mecanismo utilizado para tal cerceamento foi o do juízo de admissibilidade do Recurso Especial e do Recurso Extraordinário pelo tribunal inferior que proferiu a decisão desfavorável ao recorrente. Como é de se esperar, na imensa maioria dos casos, o autor da decisão entende que não se aplica à situação nenhum dos dois recursos. Com isso, obriga o recorrente a outro ato, consistente no Agravo de Instrumento contra a decisão denegatória do segmento daquele recurso. Esse mecanismo foi incorporado ao CPC desde o início da sua vigência, tendo sido apenas adaptado após a Constituição de 1988.

Em 1998, a Lei 9.756 alterou o artigo 557 do repositório citado para permitir que, ao receber qualquer recurso, o relator negue segmento àquele que considere “manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal ou de tribunal superior”.

É de se notar que nem o CPC e nem qualquer outra lei estabelece critérios objetivos para determinar os conceitos de jurisprudência dominante, recurso manifestamente inadmissível ou recurso improcedente. Além disso, não oferecem também os critérios objetivos para comparação com súmula ou jurisprudência. A palavra “confronto” expressa uma idéia que comporta avaliação subjetiva e, portanto, discricionária e arbitrária.

Em 2001, a Lei 10.352, carinhosamente apelidada de “Lei Gilmar”, provavelmente em homenagem ao saudoso “guarda-metas” da seleção brasileira de 1962, oriunda de um projeto de inspiração da Advocacia-Geral da União, impôs mais amarras aos recursos dos contribuintes e dos litigantes em geral. De um modo geral, estendeu o disposto no artigo 557 a todos os recursos e passou a permitir ao relator transformar Agravos de Instrumento em Agravos Retidos.

As recentes modificações operadas pelas Leis 11.187, 11.276 e 11.280 levaram ao extremo a discricionariedade, restringindo Agravos de Instrumentos e estabelecendo juízo de admissibilidade até para apelações, tomando sempre como parâmetro as disposições do artigo 557 do CPC.

Além das restrições legais, como as acima citadas, os tribunais costumam alegar outras, constantes de seus regimentos internos ou da sua “jurisprudência”, para negar seguimento ou para não admitir recursos.

Essas restrições são constitucionais? O que precisaria ser acrescido ao CPC para que elas não representassem, como representam, a possibilidade do arbítrio e, como conseqüência, um atentado ao Estado de Direito?

Lembremo-nos de que, quando os direitos de cidadania são violados, ainda mais pelo próprio Judiciário, a democracia e o Estado de Direito estão em risco.

2. Princípios constitucionais aplicáveis aos recursos em geral

O Brasil é um Estado Democrático de Direito. É um Estado de Direito porque possui uma Constituição que limita os poderes de todos os que são investidos de funções públicas, inclusive os membros do Poder Judiciário.

A Constituição Federal confere direitos de cidadania a todos os que litigam no território nacional. Esses direitos se aplicam às pessoas naturais e às pessoas jurídicas. Aplicam-se aos brasileiros, a empresas sob controle de capital nacional ou estrangeiro, e até mesmo aos estrangeiros, pessoas naturais ou jurídicas, que busquem a tutela jurisdicional no território brasileiro em homenagem ao princípio da soberania nacional.

Esses direitos de cidadania garantem a tais pessoas e organizações a possibilidade de litigar em todo o território nacional e de apresentar recursos aos tribunais superiores, sempre que as instâncias inferiores não fizerem a melhor aplicação das leis. Os principais direitos conferidos aos litigantes pela Constituição Federal são lembrados nos parágrafos seguintes.


O primeiro deles é o direito à igualdade ou isonomia. O caput do artigo 5º estabelece a igualdade absoluta de todos perante a lei, o que engloba, portanto, também aqueles que busquem a tutela jurisdicional. Assim sendo, em ações judiciais os órgãos responsáveis pela administração da Justiça, em todas as instâncias, devem zelar pela igualdade entre os litigantes.

A isonomia se aplica mesmo quando uma das partes seja uma sociedade empresária e a outra a União, um dos estados ou um dos municípios. Aplica-se mesmo quando uma das partes for contemplada por proteção especial, como é o caso do consumidor ou do empregado na relação trabalhista. Nesses casos, a igualdade deverá se refletir em todos os aspectos que não estejam refletidos na proteção legal expressa, especialmente nas normas de Direito Processual.

Por exemplo, o consumidor tem direito a propor a ação no foro do seu domicílio e à inversão do ônus da prova por força do disposto nos artigos 101, I e 6º, VIII da Lei 8078/90, respectivamente. Mas ambos, fornecedor e consumidor, têm igual direito de recorrer a instâncias superiores contra decisões injustas ou ilegais de instâncias inferiores, pelo princípio da isonomia. E devem fazê-lo contra decisões que precisem ser reformadas para refletir uma aplicação mais precisa e justa do direito.

O segundo princípio constitucional protetor dos litigantes é o da estrita legalidade. Ele está expresso no inciso II do artigo 5º da Constituição: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Isso significa que nenhuma jurisprudência, súmula, regimento interno de tribunal, resolução, portaria ou qualquer outro ato de qualquer instância poderá criar requisito de acesso ao Judiciário que não esteja refletido em lei. Tal preceito se aplica tanto aos processos em primeira instância quanto aos recursos.

O princípio da legalidade é um dos pilares do Estado de Direito. Sem a garantia da legalidade, a cidadania seria parcial. Sem ela, o sistema jurídico fiaria sujeito a todo tipo de arbitrariedade, autoritarismo, protecionismo e até mesmo a corrupção cada vez maior.

Se fosse dada a cada julgador ou a qualquer outra autoridade a prerrogativa de determinar quem, como e quando teria acesso à tutela jurisdicional, não haveria sequer um Estado democrático, já que um dos poderes disporia de tal discricionariedade que o tornaria um ditador por vias indiretas.

Portanto, é importante que os operadores do Direito tenham em mente que, quando permitem que os tribunais se afastem dos requisitos expressos na Constituição e no Código de Processo Civil, nas avaliações de admissibilidade dos recursos, e que enveredem por misteriosos fundamentos regimentais ou jurisprudenciais, estão abrindo mão de muito mais do que dos seus direitos processuais. Na verdade, estão abrindo mão do Estado de Direito.

E que não se enganem aqueles operadores que cultuam esses desvios do Judiciário porque se apresentam aos clientes como os “oráculos” dos templos gregos, únicos intermediários entre os mortais e os deuses. Apresentam-se hoje como detentores do monopólio do conhecimento de tais “mistérios”, que são os requisitos não expressos em lei para apresentação de recursos. Mas um dia, podem estar certos, os mistérios serão usados também contra eles. Democracia e Estado de Direito só existem quando há respeito à legalidade, transparência e fundamentação das decisões judiciais.

O terceiro princípio constitucional que protege os litigantes é o da garantia da apreciação obrigatória pelo Judiciário de lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5º, XXXV).

Essa lesão ou ameaça pode decorrer de um ato ou omissão civil. Pode decorrer de igual postura de autoridade. Ou pode, ainda, resultar de decisão judicial de qualquer instância.

Em se tratando de lesão ou ameaça proveniente de decisão judicial, o remédio jurídico será um recurso a uma instância superior, a ser apresentado nas hipóteses previstas na Constituição e nas leis. Qualquer tentativa legal, regulamentar ou jurisprudencial, direta ou indireta, de cercear o direito de recurso a uma das partes, permitindo a prevalência do direito de outra, será uma violação a esse princípio.

O quarto princípio é o do devido processo legal (art. 5º, LIV). No que se aplica ao presente artigo, o dispositivo estabelece que ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal.

É legal o processo quando são assegurados a todos os litigantes os direitos e garantias previstos na Constituição e nas leis aplicáveis. Quando lhes são impostos requisitos constantes de jurisprudência ou de atos administrativos, ou até da simples opinião pessoal do julgador, como condições para a prática de qualquer ato processual, principalmente para a apresentação e conhecimento de recursos, não se atende ao princípio do devido processo legal.


O quinto princípio é o do contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV). A Constituição assegura aos litigantes em processo administrativo ou judicial o direito ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

A ampla defesa de um interesse deduzido em juízo ou da resistência a ele pressupõe a utilização de meios de prova e de recursos. Os recursos precisam e devem ser apresentados, aceitos e apreciados, sempre que previstos na legislação própria e desde que resultantes da opção de uma das partes.

O recurso é uma prerrogativa da parte e não do Judiciário. O Judiciário não pode, por métodos diretos ou indiretos, cercear esse direito. Não pode nem mesmo desencorajar a parte a apresentar um recurso que ela, em boa fé e nos termos da Constituição e da lei, tenha a possibilidade de fazê-lo.

A cada direito corresponde sempre um dever. A esse direito da parte corresponde o dever do Judiciário de não impor restrições à apresentação de um recurso fundamentado. Isso não quer dizer que o Judiciário tenha o dever de prover todos os recursos. Ao contrário, ele pode analisá-lo, deixar de conhecê-lo pela ausência de pressupostos materiais, como é, por exemplo, o da violação de lei federal. Pode até impor ao recorrente pena de litigância de má fé.

Mas o que efetivamente não pode o Judiciário fazer, sob pena de violar o princípio da ampla defesa, é cercear o direito de apresentação de recursos por meio de procedimentos internos, disposições regimentais, decisões judiciais ou administrativas que criem requisitos formais ou materiais inexistentes na lei. E acima de tudo, não pode permitir que a simples vontade, simpatia ou até comprometimentos do julgador determine o não conhecimento do apelo.

O artigo 22, I, da Constituição atribui à União o poder, que ao mesmo tempo é um dever, de legislar sobre Direito Processual. Deve-se entender por Direito Processual o conjunto de normas que estabelecem todos os direitos e deveres das partes em litígio, dos órgãos judiciais, assim como a forma, local e momento da prática dos atos nos processos.

O Direito Processual sobre o qual a União é obrigada a legislar engloba todos os aspectos da litigância, inclusive os requisitos materiais e formais para apresentação de recursos. Qualquer dispositivo de legislação estadual, ou de regimento interno de tribunal ou de jurisprudência que crie outro requisito será nulo de pleno direito por representar usurpação da competência da lei federal (artigo 25, parágrafo 1º).

A melhor interpretação desse dispositivo, em conjunto com os demais preceitos constitucionais já comentados, leva à conclusão da existência do dever inexorável da União de dispor também sobre as custas processuais relativas a todos os atos, mesmo que tais valores sejam devidos às Justiças Estaduais. Não há novidade em a União legislar sobre valores a serem arrecadados pelos cofres estaduais. Basta tomar como exemplo a legislação complementar relativa ao ICMS.

No seu artigo 96, I, “a”, a Constituição atribui aos tribunais o poder de elaborar os seus regimentos internos. Entretanto, impõe-lhes o dever de fazê-lo “com a observância das normas de processo e das garantias processuais das partes”. Portanto, os regimentos internos não podem exceder os limites dessa atribuição.

3. Disposições constitucionais e legais sobre recursos específicos aos tribunais superiores

O artigo 102, III, estabelece em suas alíneas “a” a “d” os requisitos materiais dos Recursos Extraordinários, que podem ser apresentados ao Supremo Tribunal Federal. É possível apresentar tal recurso contra decisão judicial que contrarie a Constituição, que declare a inconstitucionalidade de lei federal ou tratado, que julgue válido ato de governo ou lei local que contrarie a Constituição ou lei federal.

Esses requisitos comportam amplas avaliações subjetivas, permitindo por si mesmos que o STF aprecie apenas as matérias que os seus ministros desejem, sem qualquer necessidade de prestar contas à sociedade civil e muito menos aos litigantes. Não há no Brasil qualquer obrigação de fundamentação mínima para as decisões judiciais. Basta ao tribunal decidir que “não estão presentes os requisitos constitucionais para apreciação do recurso” que será ele devidamente encaminhado ao “grande arquivo” dos esforços em vão.

Só essa possibilidade de interpretação subjetiva já é suficiente para arranhar a credibilidade do sistema jurídico brasileiro junto à comunidade internacional de investidores e de produtores de bens, direitos e tecnologia.

O Código de Processo Civil estabelece os requisitos formais para apresentação do Recurso Extraordinário (CPC, artigos 498, 508,541 a 543). Neles são especificados os prazos, o conteúdo do recurso e sua divisão ao longo da peça, documentos que devem ser juntados, e as atribuições de responsabilidades pela tramitação e apreciação.


Tal recurso é submetido, em primeiro lugar, ao tribunal que profere a decisão contra a qual se quer recorrer. Assim sendo, depois de alguns meses (às vezes anos), em 99,999% dos casos o litigante, se for ele uma pessoa jurídica empresária, receberá a notícia de que o tribunal negou seguimento ao seu recurso.

Embora não seja razoável supor que um tribunal inferior entenderá, em alguma circunstância, espontaneamente, que uma decisão sua deva ser submetida a outro tribunal de nível mais elevado, a legislação brasileira exige mais essa formalidade, permitindo uma dilatação desnecessária do prazo de tramitação do feito.

Uma vez obtida a demorada e inexorável negativa de seguimento do recurso, o recorrente pode fazê-lo chegar ao conhecimento do STF ou do STJ por meio de Agravo de Instrumento, regulamentado nos artigos 544 e 545 do CPC. Nesses artigos, alarga-se a lista de cópias de peças processuais e documentos que devem ser juntados.

Dentre tais documentos, consta um cuja obtenção depende de ato de serventia da Justiça: é a abominável certidão de intimação. O fato de ela precisar ser obtida dentro de um prazo preclusivo para o recorrente certamente gera muitas dificuldades para os litigantes sérios, submetidos a diretrizes éticas estritas, como é o caso da imensa maioria das empresas sob controle de capital estrangeiro. Pior ainda para os escritórios de advocacia comprometidos com as práticas éticas.

Isso tudo sem esquecer que, pairando sobre todos os direitos de recursos, está o artigo 557 do CPC, carinhosamente apelidado pelos advogados militantes de “Ato Institucional 557”, em uma alusão ao tempo em que as normas dessa espécie podiam ferir a Constituição como desejassem.

No artigo 105, III, a Constituição estabelece os requisitos para a propositura de Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça. Ele poderá ser interposto basicamente contra decisões que contrariem leis federais, inclusive por meio de prestígio a ato de governo local, ou contra decisões que estejam divergentes com outras de outros tribunais ou do próprio STJ.

Os requisitos formais do CPC são os mesmos aplicáveis aos Recursos Extraordinários. E a possibilidade — que na prática é única — de fazê-lo ser conhecido por meio de Agravo de Instrumento também se aplica.

O recurso ao Tribunal Superior do Trabalho não tem princípios constitucionais específicos que lhe sejam aplicáveis. Mas a Constituição estabelece que a lei disporá sobre a competência do TST (parágrafo 1º do artigo 111-A). E de fato a Lei 9.756/98 introduziu mudanças nos artigos 896 e seguintes da CLT para disciplinar tal recurso. Em resumo, pode-se afirmar que ele possui os mesmos pressupostos materiais do Recurso Especial, só que aplicável em relação às leis e tribunais trabalhistas.

Já os recursos aos tribunais estaduais de segunda instância estão totalmente regulamentados pelo Código de Processo Civil nos seus artigos 496 a 538. Lá estão disciplinados os procedimentos para a interposição dos agravos, dos embargos e das apelações. Em seu conjunto, são um desafio para o litigante. Mas, de qualquer modo, são requisitos constantes de um texto de lei conhecido e válido em todo o território nacional.

Um requisito formal importante está no artigo 511. Lá, sob o diáfano eufemismo da “obrigação de preparo”, encontra-se na verdade o dever do recorrente de recolher as custas, inclusive as de porte e remessa.

O litigante é obrigado ao recolhimento de custas para o processo como um todo. Não obstante, para certos atos processuais, ele precisa também proceder a um recolhimento específico. É o reflexo no Judiciário da chamada “síndrome de Marta”, em uma referência a determinada prefeita que governou uma grande capital do Brasil no início do século XXI e que, apesar de arrecadar os tributos constantes da discriminação constitucional de rendas, ainda cobrava taxa específica para custear cada serviço público colocado à disposição da população.

No parágrafo 2º do artigo 511 está estabelecido que a insuficiência do valor das custas implicará em deserção do ato. Mas isso, segundo o mesmo dispositivo, somente se o recorrente, depois de intimado, não regularizar o recolhimento em cinco dias. E é claro que a tal intimação precisa ser feita por meio de uma das formas previstas nos artigos 236 a 239 do mesmo código.

Se é verdade que só a Constituição federal ou as leis federais cujos textos estejam em conformidade com a carta magna podem impor restrições aos recursos, é preciso reconhecer que a prática dos tribunais revela uma realidade muito diferente.

4. Ideário contrário à imparcialidade

A aplicação de todos os princípios aqui expostos de per si afasta a legitimidade de idéias e ideários que atentem contra a imparcialidade. A Justiça que protege uma parte em detrimento de outra não é imparcial e nem justa. Portanto, ao agir assim, não é Justiça, mas sim um ente híbrido, confuso, vacilante entre aplicador de políticas públicas e responsável por exercer a função jurisdicional.


A realização das políticas públicas é um dever do Poder Executivo. A função jurisdicional é uma atribuição do Poder Judiciário. Ao Judiciário compete declarar o que é devido a cada um, de acordo com o direito expresso nas leis. Executivo e Judiciário são poderes distintos da República, que precisam ser independentes, conforme já ensinava Montesquieu no seu lendário O Espírito das Leis. Toda vez que o governante é juiz ou que o juiz é também governante, os direitos e garantias individuais são comprometidos. A cidadania é comprometida.

Assim sendo, as idéias contrárias ao fornecedor que se defende nos Juizados Especiais, por exemplo, não têm respaldo nos princípios constitucionais estudados, principalmente nos da isonomia, legalidade, devido processo legal, apreciação obrigatória pelo Judiciário, contraditório e ampla defesa.

Com a aplicação plena do CDC, as organizações empresariais são obrigadas a se defender de pretensões indevidas em comarcas distantes das suas sedes. A criação de barreiras ao exercício regular dessa litigância a qualquer pretexto não se justifica à luz dos princípios constitucionais expostos. Nem mesmo sob a alegação de proteger o hipo-suficiente.

Não encontram respaldo na Constituição os dispositivos de leis estaduais, regulamentos ou resoluções que exigem a presença física do fornecedor ou de seu advogado no foro de litigância como condição para interpor um recurso. Esse requisito geralmente é disfarçado por outros, como o que consiste na exigência de contagem de atos processuais para cálculo das custas, ou reserva para um serventuário da prerrogativa de emitir a guia de recolhimento das custas.

O mesmo acontece com a idéia de proteção ao reclamante na Justiça do Trabalho, facilitando-lhe a litigância e dificultando a do reclamado. No mesmo rol se inserem as proteções abertas ou veladas às Procuradorias nas causas tributárias. É preciso ter em mente que, da tendência de proteger uma das partes para um julgamento parcial, há uma distância muito curta.

Ao magistrado compete aplicar a lei, sem ideologias. Se há na lei o direito a um recurso do qual uma parte pode se valer em boa fé, a ela deve ser outorgado o poder de exercitá-lo.

Os defensores da desigualdade processual justificam-na pelo que chamam de hipo-suficiência das partes protegidas. Não levam em conta que essas partes protegidas muitas vezes deduzem em juízo pretensões ilegais e ilegítimas, gerando custos de defesa pela parte contrária.

Quaisquer proteções adicionais aos litigantes que não sejam aquelas previstas em leis federais não têm respaldo nos princípios constitucionais apontados. Não se justificam nem mesmo os dispositivos de leis e regulamentos estaduais que impõem ônus excessivos aos fornecedores que recorrem das decisões dos Juizados Especiais, fixando-lhes custas extorsivas, com o único propósito de desestimular o recurso.

5. A regulamentação dos recursos nas decisões dos tribunais superiores com competência geral

O direito de apresentar recursos está refletido nos princípios constitucionais expostos. Encontra-se também minuciosamente regulamentado no CPC e em outras leis federais.

Esses princípios não podem sofrer restrições por parte das decisões judiciais, sejam elas de aplicação individual, sejam genéricas, como é o caso das súmulas. Os tribunais não podem fazer uso dessas decisões para criar requisitos que não sejam aqueles constantes da Constituição ou das leis federais.

5.1. Restrições e requisitos inconstitucionais ou ilegais nas súmulas do STF

Apresentamos a seguir algumas súmulas do STF que ferem os conceitos expostos no presente artigo. Essas súmulas são inconstitucionais por estabelecerem requisitos que não se encontram previstos nem na Constituição Federal e nem no Código de Processo Civil, ou por impedirem ou restringirem o direito das partes de recorrerem em hipóteses nas quais as referidas normas não impedem e nem restringem.

– Súmula 253: “Nos embargos da Lei 623, de 19/2/1949, no Supremo Tribunal Federal, a divergência somente será acolhida, se tiver sido indicada na petição de Recurso Extraordinário”.

Além de ignorar a Constituição, esta súmula afronta também o disposto no inciso VIII do artigo 496 do Código de Processo Civil.

– Súmula 273: “Nos embargos da Lei 623, de 19/2/1949, a divergência sobre questão prejudicial ou preliminar, suscitada após a interposição do Recurso Extraordinário, ou do agravo, somente será acolhida se o acórdão-padrão for anterior à decisão embargada”.

– Súmula 282: “É inadmissível o Recurso Extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”.

Nesta Súmula 282, é feita a menção ao tormentoso problema do pré-questionamento. Atrás desse instituto consuetudinário esconderam-se, ao longo dos anos, os verdadeiros fundamentos para a prática das mais terríveis injustiças praticadas na história do Brasil.


Os tribunais sempre entenderam o pré-questionamento como um requisito que precisa constar da decisão atacada. Mas o advogado da parte não tem poder para exigir que uma matéria conste do referido texto. Ao invés de simplesmente aceitar o pré-questionamento constante da petição da parte, os tribunais, pela jurisprudência, passaram a impor aos recorrentes um mecanismo demorado e gravoso, consistente na apresentação de embargos de declaração.

No caso do STF, essa orientação jurisprudencial com efeito prático de lei federal encontra-se refletida na Súmula 356, citada abaixo. Uma vez que a parte ingresse com os embargos de declaração, o tribunal superior considerará a questão como constante da decisão recorrida. Pura perda de tempo e dinheiro do pobre contribuinte brasileiro, para atender a um requisito que não tem base constitucional ou legal.

– Súmula 283: “É inadmissível o Recurso Extraordinário quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles”.

– Súmula 285: “Não sendo razoável a argüição de inconstitucionalidade, não se conhece do Recurso Extraordinário fundado na letra “c” do artigo 101, III, da Constituição Federal”.

A referência é à Constituição de 1946.

Essa súmula é a lídima expressão do arbítrio absoluto. Onde está na Constituição ou no CPC o conceito de razoável argüição de inconstitucionalidade?

– Súmula 286: “Não se conhece do Recurso Extraordinário fundado em divergência jurisprudencial, quando a orientação do Plenário do Supremo Tribunal Federal já se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.

– Súmula 288: “Nega-se provimento a agravo para subida de Recurso Extraordinário, quando faltar no traslado o despacho agravado, a decisão recorrida, a petição de Recurso Extraordinário ou qualquer peça essencial à compreensão da controvérsia”.

O problema com essa súmula é o último requisito: qualquer peça essencial à compreensão da controvérsia. Uma peça que o julgador entenda como essencial, a seu exclusivo critério, pode não ser assim classificada pelo advogado do recorrente. O artigo 525 do CPC lista em seu inciso I quais são as peças que obrigatoriamente devem ser juntadas a um agravo. No inciso II, faculta a juntada de outras que o agravante julgue úteis.

A súmula poderia estabelecer a possibilidade de o julgador determinar a juntada de peça que ele considere essencial, mas jamais impor a negativa de provimento ao recurso pela falta de uma peça não listada como obrigatória pelo CPC.

Ao contrário do desejado, do alto do seu incontestável e ilimitado poder, a “Corte Real” do Judiciário brasileiro ainda baixou a seguinte súmula:

– Súmula 639: “Aplica-se a Súmula 288 quando não constarem do traslado do Agravo de Instrumento as cópias das peças necessárias à verificação da tempestividade do Recurso Extraordinário não admitido pela decisão agravada”.

– Súmula 296: “São inadmissíveis Embargos Infringentes sobre matéria não ventilada, pela turma, no julgamento do Recurso Extraordinário”.

Os defeitos desta súmula são os mesmos da 282.

– Súmula 322: “Não terá seguimento pedido ou recurso dirigido ao Supremo Tribunal Federal, quando manifestamente incabível, ou apresentado fora do prazo, ou quando for evidente a incompetência do tribunal”.

Como a súmula não diz o que é recurso manifestamente incabível, acaba por outorgar mais poder discricionário, arbitrário, aos julgadores.

– Súmula 356: “O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos Embargos Declaratórios, não pode ser objeto de Recurso Extraordinário, por faltar o requisito do pré-questionamento”.

Essa súmula deve ser lida em conjunto com as de números 282 e 296, sendo as três igualmente ilegais e inconstitucionais por estabelecerem requisitos para o exercício regular do direito de recorrer, que não tem respaldo na lei e muito menos na Constituição.

– Súmula 400: “Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza Recurso Extraordinário pela letra “a” do artigo 101, III, da Constituição Federal”.

O dispositivo citado é da Constituição de 1946, muito parecido com o atual. Autorizava o Recurso Extraordinário contra decisão “contrária a dispositivo dessa disposição ou à letra de tratado ou lei federal”. O fato da súmula não ter sido revogada sugere que ela será usada para restringir Recursos Extraordinários que sejam interpostos com fundamento nas alíneas “c” e “d” do inciso III do artigo 102 da Constituição.

Como o STJ também se utiliza das súmulas do Supremo, poderá também usar essa súmula para recusar Recursos Especiais com base no artigo 105, III, “a” da Constituição.


O conteúdo da súmula afronta todos os direitos e garantias individuais citados no presente artigo. Afronta até mesmo o bom senso.

– Súmula 454: “Simples interpretação de cláusulas contratuais não dá lugar a Recurso Extraordinário”.

A súmula é inconstitucional e ilegal porque a parte não pode ter o seu direito de recorrer elidido quando a decisão atacada conferir uma interpretação ao contrato que fira a Constituição.

– Súmula 599: “São incabíveis Embargos de Divergência de decisão de turma, em Agravo Regimental”.

– Súmula 636: “Não cabe Recurso Extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida”.

– Súmula 637: “Não cabe Recurso Extraordinário contra acórdão de Tribunal de Justiça que defere pedido de intervenção estadual em município”.

– Súmula 733: “Não cabe Recurso Extraordinário contra decisão proferida no processamento de precatórios”.

– Súmula 735: “Não cabe Recurso Extraordinário contra acórdão que defere medida liminar”.

Se os fundamentos da liminar ou seus efeitos ferirem a Constituição, o Recurso Extraordinário deveria poder ser utilizado como remédio legal. A súmula fere todos os preceitos constitucionais.

5.2 Restrições e requisitos inconstitucionais ou ilegais nas Súmulas do STJ

As seguintes súmulas do STJ padecem dos mesmos defeitos daquelas do STF listadas acima:

– Súmula 320: “A questão federal somente ventilada no voto vencido não atende ao requisito do pré-questionamento”.

A inconstitucionalidade aqui está na exigência da citação da questão federal na decisão atacada. Esse não é um requisito da lei. Valem aqui os mesmos comentários feitos acima para as Súmulas 282, 296 e 356 do STF.

– Súmula 315: “Não cabem Embargos de Divergência no âmbito do Agravo de Instrumento que não admite Recurso Especial”.

Se a decisão de não admitir o Recurso Especial utilizar um fundamento que já tenha sido usado por outra Turma do STJ para conhecer do recurso, a aplicação dessa súmula será inconstitucional.

– Súmula 211: “Inadmissível Recurso Especial quanto à questão que, a despeito da oposição de Embargos Declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal “a quo””.

Essa súmula contradiz a de número 98. Suas inconstitucionalidade e ilegalidade são notórias. Esse é um requisito inexistente na constituição e no CPC. O que tais normas exigem é que a decisão recorrida tenha divergido de outra de outro tribunal ou do próprio STJ, ou que tenha incorrido em violação de lei federal. Nada mais.

– Súmula 203: “Não cabe Recurso Especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos juizados especiais”.

A Constituição Federal, em seu artigo 105, III, estabelece que o Recurso Especial poderá ser interposto contra decisões de última instância dos tribunais dos estados e não faz qualquer exceção aos Juizados Especiais. A supressão de instância imposta por esta súmula é, portanto, inconstitucional.

– Súmula 187: “É deserto o recurso interposto para o Superior Tribunal de Justiça quando o recorrente não recolhe, na origem, a importância das despesas de remessa e retorno dos autos”.

Esse requisito não consta da Constituição Federal sendo, portanto, inconstitucional.

– Súmula 126: “É inadmissível Recurso Especial quando o acórdão recorrido assenta em fundamentos constitucional e infraconstitucional, qualquer deles suficiente, por si só, para mantê-lo, e a parte vencida não manifesta Recurso Extraordinário”.

A imposição desse requisito não é só inconstitucional. É diretamente atentatória ao Estado de Direito. Ele demonstra ter sido aprovado por mais um órgão judiciário que não possui limite constitucional de atuação.

– Súmula 98: “Embargos de Declaração manifestados com notório propósito de pré-questionamento não têm caráter protelatório”.

Eis aí a demonstração de que os tribunais adotaram o caminho mais oneroso para o Judiciário e para os litigantes. Essa súmula simplesmente institucionaliza os Embargos de Declaração como supridores da falta de menção da questão federal na decisão recorrida.

– Súmula 83: “Não se conhece do Recurso Especial pela divergência quando a orientação do tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida”.

Embora inconstitucional, essa súmula ganhou legitimidade com a esdrúxula e inconstitucional redação do artigo 557 do CPC.

– Súmula 7: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja Recurso Especial”.

Note-se que o teor da súmula não é o de que a prova não será apreciada pelo STJ. O conteúdo do dispositivo é o de que esse assunto — reexame de prova — não pode ensejar Recurso Especial.

Prova é matéria regulamentada em leis federais, principalmente pelo Código de Processo Civil. Se a decisão atacada contiver violação dessas regras, não há porque não ensejar o Recurso Especial.

– Súmula 5: “A simples interpretação de clausula contratual não enseja Recurso Especial”.

Semelhante à Súmula 454 do STF. A inconstitucionalidade desse dispositivo ocorrerá sempre que a decisão atacada conferir ao contrato uma interpretação que fira a legislação federal, ou que a faça se enquadrar em qualquer das demais hipóteses em que a Constituição permite o Recurso Especial.

6. Conclusões

O Direito Processual tem como principal regra matriz a Constituição Federal. Outras leis federais podem dispor sobre matéria processual.

As leis federais que regulamentam a matéria processual precisam estar em conformidade com a Constituição Federal. Se os seus textos ferirem a Constituição, serão inconstitucionais.

Os tribunais têm o direito de elaborar regimentos internos e súmulas refletindo os seus entendimentos reiterados. Tais regimentos e súmulas não podem confrontar o disposto na Constituição e nem nas leis federais. Quando criam requisitos que não constam dessas normas, ou negam recursos a hipóteses que não foram restringidas por elas, são ilegais ou inconstitucionais.

São inconstitucionais os artigos do CPC que elidem ou limitam os recursos, principalmente o artigo 557.

São inconstitucionais todas as súmulas mencionadas neste artigo.

Para conferir celeridade aos processos, não é necessário suprimir recursos legítimos. Basta criar mecanismos claros e objetivos para repelir os ilegítimos.

A forma de por f0im à era ditatorial do Poder Judiciário no Brasil consiste em obter do Congresso Nacional leis que estabeleçam critérios claros para a aplicação das ferramentas de retenção dos recursos. Por exemplo, o artigo 557 do CPC precisa de uma lei que esclareça com precisão todos os conceitos nele expostos.

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