Crise na relação

Retenção de restituição até quitação de débito é confisco

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18 de maio de 2006, 7h00

Desde o último dia 14 de março, a pessoa jurídica contribuinte que tiver crédito de restituição ou ressarcimento junto ao Ministério da Fazenda só receberá a quantia se não tiver nenhuma dívida com o INSS. Caso contrário, o valor a ser recebido será utilizado para abater o débito previdenciário, por meio de compensação por procedimento de ofício, previsto na Instrução Normativa 629 das Secretarias da Receita Federal e da Receita Previdenciária.

A referida instrução normativa foi precedida pela Portaria Interministerial MF/MPS 23, de 2 de fevereiro de 2006, que regulamentou a aplicação do artigo 7º do Decreto-Lei 2.287, de 23 de julho de 1986, alterado pelo artigo 114 da Lei 11.196, de 21 de novembro de 2005.

Com isso, sempre que a empresa tiver débito com o INSS e crédito com a Fazenda, será intimada para se manifestar em 15 dias sobre a possibilidade de compensação, valendo o silêncio como anuência. Em caso de recusa, a empresa não receberá seu crédito até quitar sua dívida com a Previdência. Instituiu-se, assim, um “procedimento de ofício” para a compensação do débito previdenciário com o eventual crédito tributário da pessoa jurídica, atípico em nosso ordenamento jurídico, uma vez que pretende excepcionar os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, resguardados no artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal.

Nosso ordenamento constitucional assegura a inviolabilidade do direito à propriedade no caput do artigo 5º da carta magna e em seu inciso XXII, elevando este direito como princípio da ordem econômica no seu artigo 170, inciso II, prevendo somente duas formas jurídicas para a expropriação da propriedade privada: a desapropriação, atendendo ao interesse público, devidamente indenizada; e a pena de perda de bens advindos de prática ilícita. Ambas precedidas do devido processo legal.

Tanto assim que, dentre as limitações constitucionais ao poder tributário do Estado, encontramos o princípio do não-confisco, ou seja, o impedimento absoluto de que o ente estatal utilize o tributo com efeito de confisco da propriedade privada (artigo 150, IV, da Constituição Federal). O uso do termo “com efeito” permite a interpretação extensiva para sua aplicação às inúmeras possibilidades de uso da exação tributária para expropriar, suprimir, cercear ou dilapidar o direito de propriedade.

É preciso ressaltar que o direito de propriedade consiste na “faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”, nos termos em que a define o artigo 1.228 do Código Civil, cujo conceito se estende ao Direito Tributário, por força do artigo 110 do CTN. O princípio do não-confisco deve ser então entendido, no sentido lato, como qualquer exação ou ato do ente tributante que atinja a inviolabilidade constitucional do direito de propriedade, tendo em vista a vedação extensiva ao efeito confiscatório e não apenas ao confisco.

Neste sentido, destacamos a opinião de Aroldo Gomes de Mattos e Sérgio Sahione Fadel, segundo a qual: “qualquer tentativa, por parte do Estado, de colocar empeços à compensação, como um dos meios e recursos para garantir seu direito absoluto à propriedade, importaria em evidente animus confiscatório, o que é expressamente defeso pela Carta Magna” (Revista Imposto de Renda — Estudos. São Paulo: Ed. Resenha Tributária, novembro/1993, nº 38, pp. 39 e 40).

Pelo referido dispositivo, vemos que a Receita Federal reterá os valores de restituição ou de ressarcimento pertencentes à pessoa jurídica visada até que o débito com a Previdência Social seja liquidado. Ora, esta retenção constitui nítida utilização do tributo com efeito confiscatório, vez que redunda na efetiva privação do direito de propriedade.

Note-se que os recursos retidos envolvem verbas de restituição e ressarcimento que, apesar de recolhidas ou retidas na fonte, escapam completamente à hipótese de exação tributária. Portanto, são valores que constituem propriedade da pessoa jurídica, que impõe um dever do Estado em devolvê-las. Constata-se que o referido procedimento administrativo ex-offico, inaugurado com a referida IN 629, contraria frontalmente os direitos constitucionais do contribuinte, pessoa jurídica, ao impor a privação patrimonial sem o devido processo legal e com efeito de confisco.

Ademais, constata-se ainda que o referido procedimento viola o Princípio da Reserva Legal, artigo 5º, II e XXXIX da Constituição, uma vez que institui uma sanção (o bloqueio patrimonial) sem prévia cominação legal, tendo em vista que o artigo 114 da Lei 11.196/2005, nada dispõe sobre a retenção de valores, em caso de não aceitação pelo contribuinte da compensação ex officio. Tal disposição nasceu com a IN 629, o que afronta especialmente o Princípio Constitucional da Reserva Legal Qualificada (artigo 146, III, b da CF/88), que exige lei complementar para dispor normas gerais sobre obrigação tributária.

Algumas questões ainda não foram esclarecidas e, tudo indica, a aplicação da norma demonstrará inúmeras implicações e dificuldades, contra as quais o Judiciário será chamado a se pronunciar. Em caso de retenção, como ficarão os créditos tributários devolutos excedentes em relação ao débito previdenciário? Haverá liberação do excesso ou toda a restituição e ressarcimento ficarão bloqueados? Nos casos de depósito caução para recursos administrativos contra o débito previdenciário? Ou de existência de penhora em execução fiscal da Previdência? Estamos adentrando um novo capítulo das cada vez mais difíceis relações entre o Estado e o contribuinte.

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