Governos retardatários

Dizer agora que deve bloquear celular é menosprezar passado

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18 de maio de 2006, 18h16

Lembro quando, em 2001, escutei a mídia noticiar a maior rebelião da história do país. Sinceramente, não fiquei surpreso com o acontecimento de grandes rebeliões ao mesmo tempo no estado de São Paulo. A falência do sistema prisional paulistano, o descaso da sociedade civil com os presos e a má gestão da administração pública eram anunciadas por criminólogos e penitenciaristas desde há muito. Surpreendeu-me, isto sim, o poder, a organização e o sincronismo dos eventos então atribuídos ao Primeiro Comando da Capital, o PCC.

Agora, a ação criminosa inovou. Rompeu os muros das penitenciárias e atingiu as supostas forças de segurança do estado. Ninguém foi poupado, desde delegacias, postos policiais, veículos militares, guardas municipais, corpo de bombeiros e policiais em trabalho ou de folga. A imprensa noticiou que houve revolta em 78 penitenciárias, centros de detenção e cadeias públicas. Foram mais de 200 reféns e já contamos 115 mortos em uma centena de ataques. Este é o quadro de um sistema prisional em colapso. É a legítima “crônica da morte anunciada”.

Há quem diga que as ações são desenvolvidas em resposta à decisão do governo estadual de recorrer ao denominado Regime Disciplinar Diferenciado, com a transferência de muitos presos. Para o cidadão incrédulo e que não conhece a realidade prisional, vou explicar.

O Regime Disciplinar Diferenciado é uma invenção desumana para seres não humanos. É uma espécie de regime prisional do terror. É originário da Lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, a “invenção” mais recente do pessoal que “combate” violência com violência, sem qualquer política social — dizem que nasceu em São Paulo, no berço da administração penitenciária que se pretende desjuridicionalizar.

O RDD, em resumo, afasta o preso do convívio de sua família e dos demais detentos, colocando-o num isolamento celular que pode perdurar até 720 dias. Alterando a Lei de Execução Penal de 1984, a Lei 10.792/03 estabeleceu o recolhimento em cela individual pelo prazo de um ano, prorrogável pelo lapso temporal da pena aplicada.

O fato é que, diante da ausência de efetivas políticas públicas, nos últimos anos, o estado tem “enfrentado” a criminalidade com uma política penal legislativa cada vez mais severa. Sempre há uma “lei penal de ocasião”, um “discurso de intolerância” que, invariavelmente, resulta em pena mais grave. É o chamado direito penal simbólico.

Em contrapartida, inseridos num sistema absolutamente podre, estigmatizante, injusto, seletivo e sofrendo o recrudescimento das leis penais, os presos acabaram por se organizar. Os líderes impõem suas forças sobre os demais. Esta é a triste constatação.

A verdade é que a sociedade sempre esteve marcadamente divida em segmentos “desviantes” e “não desviantes”, e esta noção está ainda mais presente com o atual paradigma prisional. Existem novos modelos de relações sociais e relações de poder. Essas relações sociais que envolvem o cotidiano comportam outras formas de relações de poder que ensejam que certas coletividades adquiram uma força política paralela e que conquistem um sistema de poder localizado. Diga-se, um brutal sistema de poder paralelo.

Essas organizações voltadas para o crime não gozam, é verdade, da legitimidade do estado. Entretanto, como coletividades que vivem à margem da sociedade, utilizam dos mesmos recursos do aparelho repressivo estatal e acabam empregando meios mais violentos quanto os utilizados pelo estado para manter a hegemonia do poder.

A lógica da cadeia não é a lógica do estado. O poder legislativo parece acreditar na lógica matemática, no uso da violência contra a violência. Quanto mais pena, menor a criminalidade. Ou, quanto mais transferências, menor o poder de reação dos presos. Ocorre que a lógica penitenciária é outra. É a lógica do “homem é o lobo do homem”. É a irracionalidade do homem sem perspectiva, sem valores e que nada tem a perder. O homem esquecido. O homem “coisificado”.

Se todos os ataques que aconteceram são, de fato, fruto da ação do PCC, há de se fazer uma constatação objetiva. Desde 2001, os presos organizaram-se mais do que o estado. O estado foi omisso e, por isso, deixou o sistema explodir. Agora, como sempre, depois do fato acontecido, surgem idéias que deveriam ter sido implantadas há alguns anos.

Dizer, no ano de 2006, que devemos retirar antenas para celular das regiões próximas aos presídios é menosprezar todos os acontecimentos anteriores. É atestar que o gestor da segurança pública não teve contato com a realidade prisional na última década.

Pior, estão surgindo inúmeras reações repressivistas de última hora, que tratam de generalizar todos os presos do país, rasgando a legalidade constitucional e desrespeitando postulados básicos do Estado de Direito. É o momento oportuno para os projetos absurdos e eleitoreiros.

O sistema faliu, mas há de se ter prudência na apresentação dos projetos legislativos. O problema é grave, mas há de ser mantida a racionalidade do Direito Penal. É triste ver que o nosso país resolve os problemas sociais com o aumento de penas.

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