Poder efetivo

Entrevista: Luís Roberto Barroso — Parte 1

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14 de maio de 2006, 7h01

Barroso - por SpaccaSpacca" data-GUID="barroso.png">Se por um lado a ampliação do rol de legitimados a propor ações ao Supremo Tribunal Federal provocou uma revolução benéfica no quadro jurídico do país, por outro vulgarizou as decisões da mais alta corte nacional. “Quando você trata questões transcendentais misturadas com questões do varejo da vida, você tira a dignidade dessas questões transcendentais”.

A análise é do advogado Luís Roberto Barroso, um dos mais importantes constitucionalistas brasileiros, em entrevista à revista Consultor Jurídico. Em mais de duas horas de entrevista, o professor fez uma análise do atual quadro do STF e defendeu um mecanismo que restrinja o acesso ao tribunal.

Ao discorrer sobre o objeto de seu trabalho, Barroso criticou e apontou as qualidades da Constituição Federal de 1988. “Um documento excessivamente analítico, prolixo”, mas que, segundo ele, é o que garante a estabilidade institucional ao Brasil em momentos de crise. Isso porque a partir dela a Justiça surgiu como uma novidade no jogo entre os poderes no Brasil. “Deixou de ser um departamento técnico especializado e passou a ocupar um espaço político onde ele disputa efetivamente com o Legislativo e com o Executivo.”

O advogado atribuiu parte da culpa da lentidão do Judiciário brasileiro a uma “visão romântica de que não se deve impedir a parte de postular até o limite do possível”. Mas pondera: “a avalanche de processos que imobiliza o Judiciário também frustra direitos”.

Formando em Direito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 1980, Luís Roberto Barroso participou ativamente do movimento estudantil da época e foi editor do jornal Andaime, publicado pelo centro acadêmico. É Master of Laws pela Universidade americana de Yale, professor de Direito Constitucional da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro e do curso de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas.

Barroso se destacou na atuação recente junto ao Supremo Tribunal Federal ao defender a permissão para que gestantes de fetos anencefálos possam interromper a gravidez — o que para muitos é o único motivo que impediu sua indicação para ministro — e o poder normativo do Conselho Nacional de Justiça.

A entrevista concedida pelo constitucionalista será publicada em duas partes. A primeira está publicada abaixo. Na segunda parte da entrevista, que irá ao ar nesta terça-feira (16/5), o professor discute o que chama de instâncias justiceiras que ocupam o vácuo deixado pelo Judiciário (CPIs, imprensa), liberdade de expressão e censura, e criminalidade no Brasil. Participaram da entrevista também os jornalistas Márcio Chaer, Maurício Cardoso e Priscyla Costa.

Leia a entrevista

ConJur — Como o senhor vê o novo Supremo Tribunal Federal?

Luís Roberto Barroso — Nos últimos anos, se verificou no Brasil uma mudança substantiva do papel do Judiciário de uma maneira geral, e do Supremo Tribunal Federal em particular. O acesso ao Supremo foi facilitado e a sua importância foi ampliada com a Constituição de 1988. O artigo 103 passou a prever que um conjunto amplo de pessoas e entidades poderia propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o Supremo e, além disso, nesses últimos anos criaram-se novas ações, como a Ação Declaratória de Constitucionalidade. Em três anos de governo, o presidente Lula nomeou os ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e, agora, Cármen Lúcia, mais da metade da composição do tribunal.

ConJur — Esse novo quadro revolucionou a Corte.

Luís Roberto Barroso — O que produziu uma revolução no Brasil foi a ampliação dos legitimados ativos para propor ação perante o Supremo e a pluralidade de ações que permitem o acesso direto ao tribunal. Isso fez com que determinadas questões políticas e sociais, que em outros tempos não chegavam ao STF, começassem a chegar.

ConJur — E o Supremo passou a decidir os principais temas do país.

Luís Roberto Barroso — Sim. A separação de poderes, os limites das competências das CPIs, a competência do Ministério Público de atuar na investigação criminal. Duas das principais políticas públicas do governo, a Reforma da Previdência e a Reforma do Judiciário, foram decididas pelo STF, inclusive, a criação do Conselho Nacional de Justiça. Outras questões decisivas como a interrupção da gestação de feto anencefálico, as pesquisas com células-tronco, a progressão de regime para condenados por crimes hediondos, o direito à privacidade. Todas essas questões ligadas a direitos fundamentais estão sendo decididas pelo Supremo. Ocorreu a judicialização de questões cotidianas, com destaque para o STF.

ConJur — O senhor concorda que, com a velha guarda, tínhamos um Supremo mais passivo, mais defensivo. E hoje a Corte tem um perfil mais ativo?


Luís Roberto Barroso — Havia no Supremo, até há pouco tempo, uma liderança conservadora notável que era o ministro Moreira Alves. O ministro era um homem inteligente, de grande capacidade de argumentação e que tinha essa postura mais conservadora, de maior contenção. Era muito difícil discordar dele, porque era um argumentador eficiente e veemente. O ministro Moreira Alves liderava uma posição muito restritiva em relação ao acesso de entidades de classe e de confederações sindicais ao Supremo por via de ação direta e outros mecanismos. Com a saída dele, houve de fato a flexibilização desta legitimação ativa, desse direito de propositura de ações diretas. A perda de uma liderança que tinha uma visão mais tradicional talvez tenha permitido ao Supremo expandir a sua atuação. Mas o que houve também foi um momento de demanda. O Supremo vive, para bem e para mal, esta situação de que algumas questões podem seguir muito rápido para o tribunal. Na Suprema Corte americana, quando uma questão chega para ser decidida, já chega madura. Raramente a Suprema Corte americana vai ser chamada a se manifestar em primeiro lugar sobre uma determinada questão. Quando isso acontece, ela, às vezes, não se manifesta. Invoca uma doutrina que considera que a questão ainda não está madura, e não decide.

ConJur — O Supremo cumpre uma função política? Como na questão do foro privilegiado, por exemplo?

Luís Roberto Barroso — Na questão do foro privilegiado tem se colocado o Supremo em uma arena onde a política sofre um embate com o Direito Penal, que é um espaço difícil de atuação. O Supremo não gosta dessa competência e tem tentado se livrar dela ou minimizá-la. E eu entendo as razões, porque ele fica sujeito a determinadas circunstâncias do jogo político que seria melhor que não estivesse sujeito a elas.

ConJur — É possível um tribunal se manifestar com qualidade sobre esse amplo rol de questões? A qualidade das decisões do Supremo não está em risco com esse volume de processos enorme que ele recebe para examinar?

Luís Roberto Barroso — A quantidade compromete não apenas a qualidade, mas, sobretudo, a visibilidade das decisões do Supremo. É um ponto dramático. Custo a acreditar que o STF ainda não tenha se rebelado contra isso. A jurisdição constitucional lida com questões delicadas, sofisticadas, com questões que exigem reflexão. Quando o Supremo decide uma dessas questões, as pessoas devem parar, prestar atenção e ouvir. Quando você trata questões transcendentais misturadas com questões do varejo da vida, você tira a dignidade dessas questões transcendentais. Portanto, deveria ter um mecanismo defensivo relativo ao acesso ao Supremo. As cortes constitucionais de todo o mundo selecionam os casos que querem decidir. Deve haver uma discricionariedade na seleção dos recursos que serão apreciados pelo STF. Hoje, ele é chamado para discutir, em primeira mão, questões que não fazem parte da rotina da vida. Questões em relação às quais existem o que em filosofia se denomina de desacordo moral razoável, em que pessoas inteligentes e esclarecidas professam opiniões totalmente divergentes, e cada uma com o seu conjunto de bons fundamentos. Esta expansão da jurisdição constitucional no Brasil tem sido um fator positivo, ela corresponde às circunstâncias brasileiras desse momento.

ConJur — Qual é a qualidade das decisões do Supremo?

Luís Roberto Barroso — São equiparáveis ou estão acima das decisões das cortes supremas em geral, inclusive da americana.

A nossa circunstância terceiro-mundista nos obriga a ter janelas para o mundo. E, portanto, um jurista brasileiro bem formado terá conhecimentos de decisões e de doutrina norte-americana, terá conhecimento e informações de material alemão, espanhol, italiano. O nível do jurista brasileiro e do ministro do Supremo é equiparável ou superior ao dos que estão em cortes supremas de outras partes do mundo.

ConJur — A Súmula Vinculante já foi aprovada. Há quem considere a Súmula Impeditiva de Recursos desnecessária, já que a própria legislação processual prevê a litigância de má-fé, a lide temerária e outros mecanismos de bloqueio ou de filtro para quem recorrer. O senhor não vê certa timidez por parte do juiz em bloquear o recurso?

Luís Roberto Barroso — Há um pouco de timidez e também uma visão romântica de que não se deve impedir a parte de postular até o limite do possível. Mas a avalanche de processos que imobiliza o Judiciário também frustra direitos. Aqui mesmo, em São Paulo, leva-se três, quatro anos para a distribuição de um recurso em um tribunal de grande número de juízes. E de juízes de grande competência técnica, mas o sistema não funciona.

ConJur — Isso está jogando a Justiça paulista para trás na fileira da jurisprudência, porque os casos demoram mais para ser julgados.


Luís Roberto Barroso — Vejo como inevitável a criação e uso de mecanismos que ajudem a conter a litigiosidade ou a acelerar o processo decisório. Sou a favor de se prestigiar a jurisprudência, de se prestigiar o precedente, a Súmula Vinculante, a Súmula Impeditiva de Recursos. Não podemos lidar com as realidades do século XXI, com a sociedade de massa, com uma visão romântica de um individualismo libertário. As demandas são demandas de massa e é preciso ter soluções capazes de solucioná-las. O Direito ordinário deve ser litigado em primeiro grau e em segundo grau, por isso sou a favor de se criarem ônus suplementares para o acesso aos tribunais superiores. O acesso aos tribunais superiores em toda parte do mundo é um acesso seletivo, para formar jurisprudência, para ditar grandes linhas, e não para resolver casos concretos. É claro que como, às vezes, a Justiça estadual comete barbaridades, o acesso ao Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, acaba sendo o caminho de fuga desesperada em determinadas situações. É preciso ter uma dimensão dos limites e possibilidades dos instrumentos que nós temos, sob pena de destruí-los.

ConJur — Historicamente, o Brasil vem de um Executivo hipertrofiado e de um Legislativo atrofiado. Há equilíbrio entre esses poderes?

Luís Roberto Barroso — Há uma novidade no jogo entre os poderes no Brasil que é o Poder Judiciário, que se tornou um poder efetivo. Deixou de ser um departamento técnico especializado e passou a ocupar um espaço político onde ele disputa efetivamente com o Legislativo e com o Executivo. Há um reequilíbrio de poderes que começa pela ascensão do Judiciário. A questão do déficit de legitimidade de Judiciário é muito discutida pela circunstância de que os juízes são agentes públicos que não são eleitos. Os juízes são recrutados como regra geral por critérios técnicos, concursos públicos e o fundamento de legitimidade de atuação dos juizes é precisamente conhecimento técnico, a imparcialidade, o distanciamento crítico, mas eles não são agentes políticos eleitos.

ConJur — Mas o Judiciário tem um papel político.

Luís Roberto Barroso — O papel do Judiciário é aplicar a Constituição, as leis, é aplicar as decisões políticas que foram tomadas pelos outros poderes: pelo constituinte e pelo Legislativo mais o Executivo, porque a lei normalmente será obra do Legislativo com a sanção do Executivo. De modo que sempre se discute a legitimidade democrática do Judiciário e os limites da sua atenção tendo em conta o fato de que ele não é eleito. Mas é importante considerar que o Judiciário, sobretudo o Supremo, funciona muitas vezes como o órgão de defesa da Constituição e da legalidade e das minorias contra as maiorias políticas. Portanto contra a lei, contra o Executivo e no caso brasileiro até, às vezes, contra a imprensa. Quando a imprensa cria um rolo compressor pela punição, cabe ao Judiciário o papel, nem sempre bem compreendido, de dizer que não é porque o veiculo x, y ou z está com pressa que o réu deve estar com pressa. O réu quer exercer o seu direito de defesa e tem o direito de exercê-lo. Portanto, o Judiciário tem este papel de dizer à maioria: “vocês podem muito, mas não podem tudo, há direitos fundamentais a serem respeitados e há um devido processo legal”.

ConJur — E o déficit de legitimidade dos outros poderes?

Luís Roberto Barroso — Esse déficit é muito mais complicado de ser equacionado. No caso do Legislativo brasileiro o déficit de legitimidade advém, sobretudo, de um sistema político, eleitoral e partidário que frustra a autenticidade do sistema representativo. O sistema brasileiro extrai de cada um o que há de pior. As pessoas que estão no Legislativo não são feitas de matéria-prima diferente daquelas que estão no Executivo ou daquelas que estão no Judiciário. O sistema é muito ruim, o sistema é feito para não funcionar. O Brasil deve fazer propostas para daqui a oito anos, para não ter nenhum interesse posto na mesa. Um sistema político, eleitoral e partidário realista, mas puro-sangue na sua autenticidade. Que permita superarmos esse sistema que temos atualmente.

ConJur — O grande problema é que quem pode fazer essa reforma é a própria classe política.

Luís Roberto Barroso — Por isso proponho para daqui a oito anos. A minha visão é uma visão crítica construtiva, porque não há democracia sem classe política, representativa e prestigiada. As pessoas boas que entram nesse sistema, em vez de terem exploradas as suas virtudes, têm potencializados os seus defeitos.

ConJur — Uma reforma política completa.

Luís Roberto Barroso — Uma reforma política, partidária e do sistema eleitoral.

ConJur — A partir desta readequação da escolha da representatividade da população é que se refariam as normas de funcionamento do país?


Luís Roberto Barroso — O grau de legitimidade democrática do Legislativo seria fortalecido por uma reforma que permitisse barateamento das eleições, autenticidade do processo político partidário, visibilidade e transparência na atuação política. Há um conjunto de providências relativamente simples que não são implementadas porque é preciso lidar com muitos interesses concretos postos na mesa. É necessária uma proposta de um sistema eleitoral para o futuro, um modelo puro-sangue e não um modelo pensando na eleição do ano que vem.

ConJur — Uma proposta feita por quem não se beneficiará diretamente dela?

Luís Roberto Barroso — Sim. Por exemplo, a privatização do setor de telecomunicações foi precedida de uma legislação bem elaborada. A privatização do setor de telefonia no Brasil foi uma privatização que deu certo no geral. A abertura de mercado no setor de petróleo foi precedida de um marco regulatório. No entanto, no setor elétrico, eles iniciaram a privatização antes de ter o marco regulatório definido e esta privatização está custando caro ao país até hoje. Quando eles tentaram regulamentar, os interesses já estavam na mesa. Já tinha credor, já tinha devedor. Então, é preciso fazer um modelo para vigorar quando os interesses que estão aí já não estejam na mesa. Vão ser outros interesses. Porque aí dá para você fazer um modelo que não seja influenciado pelas circunstâncias da próxima eleição. As circunstâncias da próxima eleição, por exemplo, levaram no Brasil a uma derrota fragorosa do parlamentarismo. Porque foi um debate feito quando já havia os candidatos à Presidência da República, que eram Leonel Brizola, Orestes Quércia. Curiosamente quem defendia o parlamentarismo era o PSDB e o Fernando Henrique Cardoso, que, aliás, foi o beneficiário mais duradouro do sistema presidencialista. Por isso, a questão da legitimidade democrática no processo político brasileiro tem que ser pensada em um horizonte mais longo para podermos nos libertar dessas amarras casuísticas.

ConJur — Essa crise de legitimidade de representatividade atrapalhou na tentativa de reforma do sistema judicial?

Luís Roberto Barroso — Não. A Reforma do Judiciário já vinha sendo debatida no Congresso Nacional há mais de uma década. O que favoreceu sua implementação, primeiro, foi o ministro Márcio Thomaz Bastos, que teve vontade política de fazer a reforma acontecer. Criou uma secretaria para a reforma, nomeou o Sérgio Renault e conferiu empenho e o peso político do governo para aprovar a emenda. Com todas as vicissitudes, esse foi um governo que teve um único ministro da Justiça, o que também facilita a continuidade das políticas públicas. A Reforma do Judiciário foi fruto de uma criação coletiva ao longo dos anos, mas que só foi possível porque se empenhou uma vontade política especifica. Ela precedeu a crise política que nós estamos vivendo. Ela era uma demanda da sociedade, indispensável.

ConJur — Mas não deu conta da demanda.

Luís Roberto Barroso — A Constituição de 1988 criou novos direitos, novas ações, aumentou a legitimação ativa para propô-las, com aumento expressivo na demanda aliada ao fato de que as pessoas passaram a ter mais consciência de cidadania. O Judiciário teve uma ascensão institucional, mas ele ainda não está equipado nem materialmente, nem por meios processuais, para atender a tempo toda a demanda por Justiça que se criou na sociedade brasileira.

ConJur — Qual a sua opinião sobre a Constituição de 1988?

Luís Roberto Barroso — Existem dois pontos de vista. Sob o ângulo virtuoso, ela desempenhou o insuperável papel de fazer uma transição democrática bem sucedida no Brasil. Passamos de um regime autoritário, intolerante e por vezes violento, para um Estado Democrático de Direito. Este ano se completa 18 anos de estabilidade institucional, o mais longo período da vida brasileira. Um país que desde a proclamação da República foi marcado por golpes sucessivos e quebras de legalidade. Desde que Floriano Peixoto, vice-presidente de [Marechal] Deodoro não convocou as eleições e permaneceu no cargo, passando por todos os episódios golpistas contra Artur Bernardes, a Moção de 30, golpe de 37, destituição do Getúlio em 45, tentativa de impedir a posse do Juscelino em 1955, tentativa de impedir a posse do João Goulart em 60, até o movimento militar de 1967, que quebrou a sua própria legalidade prorrogando o mandato de Castelo Branco, impedindo a posse do Pedro Aleixo.

ConJur — Uma sucessão de quebras de legalidade.

Luís Roberto Barroso — E veio Constituição brasileira de 1988, acabou com estes ciclos do atraso e promoveu 18 anos de estabilidade institucional. Sob a Constituição de 88 destituiu-se um presidente da República, acusado de desonrar o cargo, houve crises importantes como a dos Anões do Orçamento, afastamento de senadores importantes no esquema de poder da República. E nós vivemos no Brasil a mais de um ano uma crise política que em qualquer outra época teria sido devastadora. Mesmo assim, em todas essas situações, ninguém cogitou uma solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. A Constituição de 1988 traz em si e na sua trajetória uma história de grande sucesso.


ConJur — E sob o outro ponto de vista?

Luís Roberto Barroso — A face menos virtuosa da Constituição de 88 é que ela não é a Constituição da nossa maturidade, ela foi a Constituição das nossas circunstâncias. As nossas circunstâncias na década de 80 eram circunstâncias complexas, de uma sociedade cuja participação política tinha ficado represada por muitos anos. A Constituinte que a elaborou foi quase que o cenário de um espetáculo antropológico. Nos corredores da Constituinte havia militares, índios, magistrados, prostitutas, garimpeiros, promotores. Todo mundo queria estar na Constituição, que acabou como um documento excessivamente analítico, prolixo, em alguns momentos casuístico e em outros momentos corporativo. O maior defeito da Constituição de 88 foi o de ter trazido para seu corpo matérias que deveriam ter permanecido no processo legislativo ordinário. Matérias que deveriam ter ficado para o processo político majoritário. A Constituição deve conter alguns valores permanentes e algumas escolhas políticas circunstanciais, eventualmente, mas em um elenco limitado. No momento em que você constitucionaliza questões que deveriam ser deixadas para lei, de certa forma constitucionaliza a política além do que ela deveria ter sido constitucionalizada.

ConJur — O que isso pode provocar?

Luís Roberto Barroso — A política ordinária acaba tendo que ser feita por via de emendas à Constituição. Isso explica termos, nesses 18 anos, mais de 50 emendas no texto constitucional. Toda pequena transformação no Brasil passou a exigir uma emenda à Constituição. Mas a Constituição de 88 merece e precisa ser defendida, pois o seu núcleo essencial, o núcleo que efetivamente deveria estar em uma Constituição, tanto em termos de organização política quanto em termos de direitos fundamentais, está intocado. O que é objeto de reforma permanente, na prática, não deveria estar lá. Vejo a sucessão de reformas constitucionais com desconforto como qualquer professor de Direito Constitucional. No entanto, não se pode esquecer que o que era verdadeiramente constitucional e bom, lá continua. O que saiu é o que não deveria ter entrado.

ConJur — O que o senhor acha da análise do ministro Eros Grau, de que a Constituição brasileira é a coisa mais linda que já foi escrita, mas que, ao contrário do modelo brasileiro, que é neoliberal, ela não é neoliberal. A projeção dela é uma projeção socialista. Ele falou principalmente com base nos artigos 3º e 170.

Luís Roberto Barroso — A Constituição, tanto no seu texto, quanto na sua interpretação, não deve ser nem socialista nem capitalista. Não deve ser nem privatista, nem estatizante. A Constituição deve ser o espaço da razão pública, deve ter algumas escolhas importantes em termos da proteção de direitos fundamentais. Mas deve assegurar que um governo socialista governe de acordo com seu programa, e que um governo liberal governe de acordo com o seu programa. Assegurar as regras do jogo democrático é o papel da Constituição. As escolhas políticas circunstanciais devem ser feitas fora da Constituição, pelo processo político majoritário. A Constituição portuguesa de 1976 era uma Constituição socialista, que preconizava a apropriação coletiva dos meios de produção, a estatização, a reforma agrária com expropriação das quintas. Na primeira oportunidade eles se livraram disso porque a democracia tem que pressupor que eu sou poder hoje e quem pensa diferente de mim será poder amanhã. Se você fizer uma Constituição socialista ou uma Constituição totalmente liberal, impede que as maiorias políticas de cada época governem de acordo com as demandas sociais daquela época. As Constituições devem proteger as regras do jogo democrático e os direitos fundamentais, não devem impor modelos políticos.

*A revista Consultor Jurídico adiou a publicação da segunda parte da entrevista com o professor Luís Roberto Barroso de segunda para terça-feira (16/5) em razão das notícias sobre a violência em São Paulo.

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