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Casal homossexual consegue adoção de criança no Rio de Janeiro

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14 de maio de 2006, 13h30

Neste domingo (14/5), quando o Brasil inteiro festejar o Dia das Mães, com trocas de presentes e votos de amor eterno em meio a clima de intensa alegria, uma comemoração especial estará acontecendo em um apartamento na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio.

A jornalista Maria Letícia de Sarmento Mariano Cordeiro e a radialista Arlécia Corrêa Duarte, que vivem uma união homoafetiva há cinco anos, celebrarão a recente inclusão desta última como pólo ativo no processo de adoção de C., de 2 anos e seis meses. A decisão é do juiz Sandro Pithan, da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso.

Novos precedentes

O direito à adoção de criança por parceiros ou parceiras do mesmo sexo, em união estável, está se tornando realidade no estado do Rio. Ao contrário do que ocorre no Rio Grande do Sul, o Ministério Público fluminense admite a adoção pelas companheiras. No caso inédito, as duas têm guarda provisória do menor até agosto próximo.

A entrevista à Conjur foi marcada por momentos emocionantes como a declaração de Arlete em relação a C. “Eu tenho amor pelo meu filho. É incondicional. Não preciso de um papel para sedimentar tal sentimento em meu coração. O registro legal é importante para possibilitar que ele, hoje e amanhã, usufrua plenamente os benefícios do meu trabalho”, declara a radialista.

A mãe do menor, V.C.S. foi citada em abril último na Ação de Destituição do Poder Familiar. Ela vive em local incerto. Segundo a Defensoria Pública do Estado do Rio, que pela primeira vez trata de caso do gênero, V. nunca prestou qualquer assistência ao filho.

Tanto, que ao ser deixado no Abrigo Lar Luz e Amor, no subúrbio de Bonsucesso, ele não possuía registro civil de nascimento. A certidão está sendo pleiteada no processo, somando-se ao nome C. os sobrenomes da jornalista e da radialista.

No documento de adoção cumulada encaminhado ao Juízo da Infância, Juventude e do Idoso em março do ano passado, a defensora pública Eufrásia Maria Souza das Virgens – “um dos anjos que cruzou o nosso caminho”, diz Letícia – cita registros do Conselho Tutelar de Ramos, um deles reproduzindo laudo médico quando de uma passagem de C. pelo Hospital Estadual Getúlio Vargas: “criança desnutrida, anêmica, desidratada e com infecção respiratória. Nasceu aos sete meses de gestação, não faz puericultura e nem foi amamentada”.

O processo aberto na Justiça fluminense segue o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 1990, entre outras leis. Embora não haja restrição à adoção por parceiros e parceiras do mesmo sexo, casos como o de Letícia e Arlécia ainda causam polêmica.

Respaldo da Constituição

A afirmação de que criança adotada que vive em lar homossexual será socialmente estigmatizada vem sendo pouco a pouco derrubada por pesquisas nas quais se constataram a inexistência de diferenças na identidade de gênero ou na orientação sexual das crianças e adolescentes. Mas muitas pessoas não concordam com os resultados desses estudos.

Na ação que já dura três anos, a Defensoria Pública do Estado do Rio destaca que a adoção homossexual encontra respaldo na Constituição Federal, “que consagra o princípio da proteção integral e prevê a adoção como forma de atender o direito à convivência familiar e comunitária, não havendo qualquer vedação legal ao pedido de adoção por parte de pessoas que mantenham relação de afeto, independentemente de sexo”.

Sublinha, ainda, que requisitos legais estão sendo seguidos, citando a capacidade civil das companheiras, diferença de idade superior a 16 anos entre adotante e adotado e o quadro geral favorável, “uma vez que há convivência de fato com a criança, assistência afetiva, moral e material”.

Primeira vez

Quando Letícia Sarmento se cadastrou no Juizado de Menores, ela o fez identificando Arlete como sua companheira. Nos encontros que se seguiram com psicólogos e assistentes sociais, um ano depois, ambas estavam sempre juntas, assim como lado a lado percorreram os abrigos. “No início deu para perceber que os entrevistadores tinham despreparo face a situação. Não era um preconceito, mas incapacidade em lidar com o fato” explica.

A intolerância, segundo ela, deu as caras dois anos depois, quando identificaram C.no abrigo. “O juiz Sandro Espindola negou todas as guardas provisórias, com aval da Promotoria, deixando de considerar, que o menino estava com pneumonia dupla, subnutrido, coberto com feridas na pele e com o estado emocional tão abalado que seu cabelo não nascia, apesar dele ter 1 ano e três meses”.

De acordo com Arlécia, o menor ficou cinco meses tratando-se com diversos especialistas. Algumas conseqüências ainda se fazem notar, como a volta da pneumonia, apesar da assistência médica.

Quando se sentiram impotentes para tocar o processo, as duas recorreram a amigos e bateram na porta da Defensoria Pública. “Na instituição encontramos pessoas efetivamente interessadas em ajudar” enfatiza Letícia Sarmento, mostrando na mesa da defensora Eufrásia Souza fotos de C. à época e imagens mais recentes.

Como inúmeras outras pessoas no Estado do Rio, as duas reclamam da extrema lentidão do Judiciário fluminense num processo de adoção. “Quem decide ter um filho que não fecundou tem pressa. A gravidez acontece quando você entra no Juizado pela primeira vez. Não deveria ser algo que levasse mais de nove meses” reclama a jornalista, sublinhando que do grupo de 40 pessoas da qual fazia parte há gente esperando até hoje a Carta de Adoção.

Ela afirma ter esperado um ano pela primeira entrevista e quase dois anos até receber a lista com os endereços dos orfanatos e abrigos a visitar. “E olha que para agilizar o processo, além de deixarmos claro nossa estável relação e condições financeiras para cuidar de uma criança, declaramos aceitar qualquer menor com até três anos de idade”.

Finalmente, de posse da relação, achar C. demorou só um mês. “Foi amor à primeira vista”. O primeiro Termo de Guarda Provisória foi emitido dia 12 de abril do ano passado.

Sincera, Letícia não hesita quando perguntada que conselho daria as pessoas que querem ter um filho adotivo. “Vão para fora do Rio. Só conseguimos na cidade porque surgiram anjos da guarda em nosso caminho. Não fosse isso, a burocracia teria nos derrotado. Quase enlouquece a lentidão do andamento do processo. A desinformação é geral, inclusive nos abrigos”.

Não é por menos que passado já tanto sufoco, as duas terão o que comemorar nesse Dia das Mães. Com C. ao lado, claro.

Processos 2003.710.008125-2 e 2005.710.001858-3

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