Informação responsável

Lucro com venda de jornal não pode compensar condenação

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5 de maio de 2006, 21h20

Questão que volta e meia retorna ao debate, e não só no Brasil, é a necessidade de preservação do anonimato da fonte que deu ao jornalista uma informação de grande relevância, geralmente denunciando deslizes de agentes públicos.

É óbvio que a liberdade de imprensa deve ser preservada e encarada com simpatia e respeito. O direito do público à informação — verdadeira, ou assim imaginada pelo seu autor, frise-se —, é essencial a toda democracia. Se esta se define como o governo do povo pelo povo, por meio de seus representantes, como, pergunta-se, o povo poderia controlar a condução de seu país sem saber como se comportam realmente seus representantes, em termos de interesse público? Quem o mantém informado é a imprensa.

Mesmo as ditaduras ditas esclarecidas, provisórias, bem intencionadas, impostas “por necessidade urgente de salvação nacional” e que confiam numa futura absolvição da história sabem, ou deveriam saber, que a verdade sempre acaba aparecendo. Assim sendo, não lhes conviria encobrir fatos politicamente relevantes, principalmente crimes de seus subordinados e que, cedo ou tarde, virão mesmo à tona. Ditadores “esclarecidos” — há quem diga que isso é contradição de termos — se inteligentes fossem, deveriam preferir o legado de uma reputação de duros — cortando inclusive na própria carne — em lugar de mentirosos. Afinal, mesmo os ditadores têm netos, que não gostariam de se envergonhar do avô.

Entretanto, todas as atividades humanas — sem exceção, por mais santa que pareça — trazem dentro de si um potencial para o mal ou, usando palavra menos forte, para o abuso. E a mídia não poderia ser a única exceção nessa regra. Ocorre que a mentira intencional, deslavada (não muito comum) ou a evidente leviandade podem incrementar de tal modo a vendagem de jornais e revistas que a perspectiva do lucro torna-se irresistível ao profissional ou empresário de imprensa imensamente ambicioso.

Nesse momento, pouco pesa a destruição moral da vítima se a perspectiva é de impunidade, ou quase isso. Principalmente quando a vítima já não tem boa fama. “Uma pedrada a mais, mesmo mentirosa, nesse pilantra, não fará muita diferença.” Mas faz, porque o “pilantra” pode comprovar a falsidade na Justiça e depois posar de vítima, induzindo a crer que as demais acusações (ainda que verdadeiras) nada mais são que armações de inimigos políticos. Boa parte da opinião pública fica em dúvida, confusa, e acaba apoiando quem não devia apoiar. Quase toda verdade, incluindo a dos “pilantras”, acaba vindo à tona.

A calúnia e a leviandade na mídia têm, portanto, que ser combatidas. Não somente por ser tratar de uma questão de justiça, mas porque seus efeitos nunca desaparecerão totalmente. Mesmo que a vítima consiga provar a falsidade da denúncia, a desmoralização, pelo menos parcial, torna-se fato consumado, legitimando a velha comparação com as penas de galinha espalhadas ao vento e que não podem ser recuperadas.

O diminuto desmentido gráfico, em canto de página, ou a condenação patrimonial, obtida na Justiça, não cobrem totalmente os prejuízos diretos e indiretos da falsidade. Alguma névoa venenosa permanece sobre a cabeça da vítima.

A pressa ou impossibilidade física dos leitores no lidar com o vagalhão informativo que tenta afogá-los diariamente é tal que se sair uma manchete dizendo que “o político, juiz ou empresário fulano de tal foi filmado saindo apressadamente do banco, após efetuar um saque de R$ 10 mil”, um alto percentual de leitores carimbará mentalmente o cidadão como sendo “desonesto” ou “suspeito”. Pensará assim: “Se o nome desse camarada saiu no jornal, alguma coisa errada ele deve ter aprontado. Não há fogo sem fumaça.” E o saque poderia ser totalmente inocente.

Acontece que, se é inerente ao repórter a missão de procurar notícias relevantes, principalmente sobre a administração pública, onde ele conseguiria tais informes? No palco administrativo, sim, mas também — ou principalmente — nos bastidores, para conferir se há uma relação de verdade entre esses dois ambientes.

Por motivos óbvios — temores de toda natureza —, sem a promessa de preservação da fonte, o jornalista não conseguiria obter as informações mais relevantes. Os “podres” governamentais, assim como os “podres” privados, são praticados nas sombras. Como conciliar as necessidades de informar e a de preservar a reputação do homem público que pode, em tese, estar sendo vítima de uma fonte mentirosa?

Nesse dilema entre publicar a informação “bomba” e correr o risco de denegrir um inocente, é de grande valor a recomendação de Voltaire de que “a vantagem deve ser igual ao perigo”. Uma versão mais abrangente — filosófica — de que precisamos sempre agir com cuidado, porque do contrário pagaremos as conseqüências que, no caso, devem ser patrimoniais e proporcionais ao grau de dolo ou culpa. Se a “vantagem” (do furo jornalístico leviano) é muito superior, financeiramente, ao “perigo” (da obrigação de indenizar), é natural que o profissional caia na tentação de abusar. Daí o desprestígio das indenizações “tabeladas”, bem modestas, no punir os crimes de imprensa. Não pode haver um “teto” muito baixo de indenização porque o lucro da vendagem sensacionalista pode compensar a condenação.

Se o direito do jornalista de silenciar sobre a fonte de sua notícia for levado ao limite máximo, um mau profissional pode se sentir tentado a inventar um escândalo, ou exagerar tremendamente um fato mínimo, conquistando certa notoriedade, com efusivos agradecimentos verbais e pecuniários do dono do veículo informativo.

Como conciliar, na difícil missão do jornalismo, os interesses da comunidade (beneficiada com a vigilância da imprensa) e os de todo cidadão (se inocente) de manter sua boa imagem?

A solução lógica e ideal seria a de assegurar ao jornalista o direito de manter o segredo da fonte se convicto de que a informação foi correta. Se, eventualmente, o jornalista verificou, depois de publicada a notícia, ter sido enganado pelo informante, parcial ou totalmente, decidiria soberanamente quanto à revelação do nome dele ao juiz, aí sem nenhum constrangimento de ética jornalística, porque nenhuma fonte de carne e osso, só porque é fonte, está acima do bem e do mal, isenta de responder pelos seus atos.

Revelando a fonte, ambos seriam condenados conforme o grau de má-fé ou leviandade de cada um. Daí a recomendação de checar as informações mais virulentas, tanto quanto possível. Felizmente, a mídia não trabalha apenas com fatos políticos extremamente sensíveis, porque do contrário seria a profissão mais arriscada do mundo.

Se, entretanto, processado o jornalista, este está convicto de que sua fonte foi veraz, é seu dever profissional e moral não revelar o nome do informante. E aí entraríamos em outro desdobramento jurídico, embora pouco comum, sobre a preservação da fonte.

Se o Ministério Público, ou outro órgão investigativo idôneo, “detonado” — termo vulgar mas expressivo — pela notícia, precisa ainda de certas informações complementares para a investigação da infração, ou formalização da denúncia penal, mas não as consegue amigavelmente do jornalista, teria o órgão acusador o direito de exigir judicialmente do jornalista os informes complementares necessários?

Penso que tem até que se demonstre, doutrinariamente, o contrário. Afinal, a liberdade de imprensa visa, em última análise, proteger os interesses da comunidade, não a curiosidade doentia do público ou o crescimento financeiro das empresas jornalísticas ou de televisão. O Direito autoriza o sacrifício dos direitos à privacidade e boa reputação apenas atendendo ao bem maior — público — que seria a correção das falhas e punição dos culpados. Se o jornalista revela crimes de agentes governamentais e seus cúmplices privados, está aí implícito o dever da autoridade tomar alguma providência. Se a Polícia ou o Ministério Público não a tomam, essa omissão seria até criminosa. O povo diria: “E a Polícia e o Ministério Público? Não vão tomam qualquer providência?”

Por vezes, sem informações complementares, os órgãos da repressão estatal não têm como agir. A denúncia do promotor deve ser precisa na descrição dos fatos. Assim, estando a investigação em aberto, é direito da Polícia ou do Ministério Público exigir do jornalista denunciante os informes necessários, imprescindíveis, se a notícia publicada está incompleta e impossibilitando uma investigação suficiente para uma acusação formal em juízo.

O jornalista denunciante só se isentará dessa obrigação se as informações complementarem, exigidas pelo órgão investigativo, puderem ser obtidas, com razoável normalidade, pelos órgãos estatais de investigação. Isso porque o jornalista é apenas jornalista e não uma espécie de FBI privado. Mas pode haver certos dados importantes e imprescindíveis para o oferecimento da denúncia penal, que somente o jornalista, ou sua fonte, podem fornecer.

Nesse caso, o jornalista, solicitado a prestar tais informes complementares, não pode simplesmente dizer ao delegado, ou ao promotor, que “ouviu o galo cantar mas não sabe onde”, e ficar por isso mesmo. A razão de não poder silenciar, sem maiores explicações, está na possibilidade, em tese, de o jornalista ter apenas inventado a história. Ele seria a fonte dele mesmo. Cobrado nos detalhes necessários ao início de uma Ação Penal, não é obrigado a revelar a sua fonte, mas dela deve exigir — reservadamente — o que for necessário ao procedimento estatal de repressão ao crime. Em suma, pedir ao informante que “complete o serviço”, que teria iniciado por amor ao país. A não se pensar assim, estaria aberta a porta da irresponsabilidade.

Se, indo mais além, o jornalista sinceramente não sabe os detalhes exigidos pela investigação ou acusação estatal, e diz que sua fonte — ainda sem revelá-la — também não sabe (o que até pode ser verdade), cabe à Justiça, caso por caso, verificar bem o que ocorreu, absolvendo ou condenando o jornalista e sua empresa, conforme a prova. Aí não há como formular uma regra geral de julgamento, porque são muitos os fatores em jogo. E in dúbio pro reo.

Se ele, na reportagem, estava sendo sincero, mas, com preguiça de investigar, mencionou fatos graves não comprováveis, e sua fonte “roeu a corda”, como se diz, pagará sozinho a conta judicial. Terá sido ingênuo, crédulo demais, mas terá de pagar pela leviandade. O santo pagando pelo pecador informante. Sem esse critério, aparentemente duro, os jornalistas ficariam dispensados de examinar a veracidade dos fatos antes de difundi-los, notadamente envolvendo a honorabilidade das pessoas.

Finalmente, há que encarar com certa reserva a exigência do acusador público de ser mais municiado, pelo jornalista, com detalhes da infração para oferecer a denúncia. Em tese, apenas em remota tese — notadamente em regiões sob domínio de “coronéis” —, o acusador público pode estar apenas arranjando um pretexto para não provocar a ira de alguma poderosa figura pública.

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