Serviços bancários

Para cinco ministros do STF, bancos têm de obedecer ao CDC

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4 de maio de 2006, 18h09

Para cinco ministros do Supremo Tribunal Federal, o Código de Defesa do Consumidor pode ser aplicado nas relações entre bancos e seus clientes. O placar a favor dos consumidores ganhou corpo nesta quinta-feira (4/5), quando voltou a julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Consif — Confederação Nacional das Instituições Financeiras.

Contudo, a definição da questão — que está em pauta desde fevereiro de 2002 — foi novamente adiada com pedido de vista do ministro Cezar Peluso. Além de Peluso, faltam votar os ministros Celso de Mello, Ellen Gracie e Marco Aurélio.

Além dos cinco ministros que votaram pela aplicação do CDC, os ministros aposentados Carlos Velloso e Nelson Jobim votaram pelo meio termo. Para eles, a lei do consumidor vale para os serviços bancários, mas não para questões que envolvem o sistema financeiro nacional — como aplicações financeiras, investimentos e empréstimos.

Nesta quinta, os ministros Carlos Ayres Britto, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Sepúlveda Pertence, seguindo a linha adotada pelo ministro aposentado Néri da Silveira, consideram constitucional o parágrafo 2º do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor. O dispositivo inclui no conceito de serviço abrangido pelas relações de consumo as atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária.

Histórico do julgamento

A ação está em julgamento desde fevereiro de 2002, quando ficou decidido que se analisaria diretamente o mérito da questão e não o pedido de liminar, em razão da relevância do assunto. A causa foi pela primeira vez a julgamento em 17 de abril de 2002.

Na ocasião, o ministro Néri da Silveira considerou improcedente o pedido da Consif. O relator da ação, ministro Carlos Velloso, a acolheu em parte. Ele entendeu que o CDC não deveria ser aplicado nos assuntos relacionados ao sistema financeiro nacional. Então, o julgamento foi suspenso com pedido de vista pelo ministro Nelson Jobim.

Depois de quase quatro anos, a discussão seria retomada em dezembro passado, mas o ministro Jobim adiou a leitura de seu voto até 22 de fevereiro, pouco antes de se aposentar. Na ocasião, Jobim votou de acordo com o ministro Carlos Velloso. Depois, o ministro Eros Grau pediu vista dos autos e trouxe seu voto nesta quinta-feira (4/5).

ADI 2.591

Leia a íntegra do voto de Eros Grau:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.591-1 DISTRITO FEDERAL

RELATOR : MIN. CARLOS VELLOSO

REQUERENTE : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DO SISTEMA FINANCEIRO – CONSIF

ADVOGADOS : IVES GANDRA S. MARTINS E OUTROS

REQUERIDO : PRESIDENTE DA REPÚBLICA

REQUERIDO : CONGRESSO NACIONAL

VOTO-VISTA

O SENHOR MINISTRO Eros Grau: Tentarei ser objetivo.

Quanto à ofensa — na expressão “inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”, do § 2º do art. 3º do CDC — ao “princípio da razoabilidade”, anoto desde logo que ela, tal qual a proporcionalidade, não constitui um princípio. Como observei em outra oportunidade1, uma e outra, razoabilidade e proporcionalidade, são postulados normativos da interpretação/aplicação do direito — um novo nome dado aos velhos cânones da interpretação, que a nova hermenêutica despreza — e não princípios.

E assim é ainda que a nossa doutrina e certa jurisprudência pretendam aplicá-los, como se princípios fossem, a casos concretos, de modo a atribuir ao Poder Judiciário capacidade de “corrigir” o legislador. Isso me parece inteiramente equivocado, mesmo porque importa desataviada afronta ao princípio — este sim, princípio — da harmonia e equilíbrio entre os Poderes. De modo que não se sustenta a tentativa, da requerente da ADI, de inovar texto normativo [o Código de Defesa do Consumidor] no âmbito do Judiciário, pretendendo que este atue usurpando competência legislativa. O que se admite, unicamente, é a aplicação, pelo Judiciário, da razoabilidade como instrumento de eqüidade. Mas isso não no momento da produção da norma jurídica, porém no instante da norma de decisão obrigações impostos pelo Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras, atinentes à prestação de seus serviços a clientes — isto é, atinentes à exploração das atividades dos agentes econômicos que a integram, todas elas, operações bancárias e serviços bancários, na dicção do Ministro Nelson Jobim — esses encargos e obrigações poderiam perfeitamente, como o foram, ser definidos por lei ordinária.

Neste ponto permito-me ainda discordar do que se afirmou anteriormente, na observação de que o texto do artigo 192 incorpora expressão que deveria constar da exposição de motivos da lei. A mim parece incompreensível possa alguém negar força normativa a esta autêntica norma-objetivo consagrada no texto constitucional, que estabelece os fins a serem perseguidos pelo sistema financeiro nacional, a promoção do desenvolvimento equilibrado do País e a realização dos interesses da coletividade.


Parece-me oportuno, de outra banda, considerarmos argumento desenvolvido em memorial, segundo o qual a lei especial, como tal entendida, no caso, uma resolução do Conselho Monetário Nacional, afastaria a aplicação da lei geral, vale dizer, do Código de Defesa do Consumidor.

O artigo 4º, inciso VIII, da Lei n. 4.595/64 estabelece que compete ao Conselho Monetário Nacional, segundo diretrizes estabelecidas pelo Presidente da República (redação da Lei n.6.045/74), “[r]egular a constituição, funcionamento e fiscalização dos que exercerem atividades subordinadas a esta lei, bem como a aplicação das penalidades previstas”.

O vulgo, quem não é versado nos meandros do direito supõe, equivocadamente, que é o Banco Central quem dispõe sobre esta matéria. Não é assim, contudo. O titular do exercício da chamada capacidade normativa de conjuntura4 é o Conselho Monetário Nacional.

O Banco Central limita-se a dar publicidade às deliberações do colegiado. A questão a considerar respeita à determinação do significado, no contexto do preceito — isto é, no mencionado artigo 4º, inciso VIII — do vocábulo funcionamento. É unicamente sobre esta matéria que o Conselho Monetário Nacional está autorizado a dispor texto normativo.

Os que exercem atividades subordinadas à Lei n. 4.595/64 são as instituições financeiras. Logo, é do funcionamento das instituições financeiras que se trata. Podemos, portanto, dizer: desempenho de suas atividades pelas instituições financeiras. O Conselho Monetário Nacional regula o desempenho de suas atividades pelas instituições financeiras. O vocábulo funcionamento é, porém, mais forte, na medida em que expressivo da circunstância de as instituições cumprirem uma função no quadro do sistema financeiro nacional.

O vocábulo tem a virtude de tornar bem explícito o fato de a lei ter estabelecido que para funcionar, para desempenhar a atividade de intermediação financeira, a empresa deverá cumprir o que determina o Conselho Monetário Nacional no que concerne a sua adequação a esse desempenho. Vale dizer, quanto ao nível de capitalização, à solidez patrimonial, aos negócios que poderá realizar [por exemplo, câmbio, captação de depósitos à vista, etc.], à sua constituição de conformidade com as regras legais [lei das sociedades anônimas, com todas as suas implicações].

Entrando em funcionamento, a instituição financeira, mercê da autorização que para tanto recebeu, pode exercer determinadas atividades, v.g., captar depósitos à vista, pagar benefícios previdenciários, captar poupança, receber tributos. Essas atividades deverão ser, no entanto, desempenhadas no quadro das determinações dispostas pelo órgão normativo [v.g., tipos de operações permitidas ou vedadas; volumes a serem aplicados nessa ou naquela modalidade de crédito; posições cambiais (níveis) a serem cumpridas e negócios dessa natureza que podem ou não ser contratados].

Digo mais: esse exercício há de ser empreendido de modo que a empresa — isto é, a instituição financeira — funcione em coerência com certas diretrizes de políticas públicas, suas prerrogativas sendo exercidas conforme definições, estruturais e conjunturais, que as delimitam [v.g., recolhimentos compulsórios, encaixe obrigatório]. Vê-se bem, destarte, que a função das instituições financeiras é sistêmica, vale dizer, respeita ao seu desempenho no plano do sistema financeiro. Ainda em outros termos, essa função somente pode ser cumprida no plano do sistema financeiro.

ADI 2.591 / DF

Ora, o Conselho Monetário Nacional é competente apenas para regular — além da sua constituição e da sua fiscalização — o funcionamento das instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano do sistema financeiro. Tudo quanto exceda esse desempenho não pode ser objeto de regulação por ato normativo produzido pelo Conselho Monetário Nacional.

Por isso as resoluções que dispõem sobre a proteção do consumidor dos serviços prestados pelas instituições financeiras — resolução n. 2.878, de 26 de julho, alterada pela de n. 2.892, de 27 de setembro, ambas de 2.001 — são francamente ilegais. Como essa é matéria que excede o funcionamento das instituições financeiras, é inadmissível afirmar-se que suas disposições obrigam em virtude de lei5, eis que o artigo 4º, inciso VIII, da Lei n. 4.595/64 não autoriza ao Conselho Monetário Nacional o exercício de capacidade normativa de conjuntura em relação a ela. Permitam-me insistir neste ponto: a expedição de atos normativos pelo Banco Central, quando não respeitem ao funcionamento das instituições financeiras, é abusiva, consubstancia afronta desmedida à legalidade.

Francamente ilegais as resoluções, o argumento segundo o qual a resolução n. 2.878 excluiria a aplicação do Código de Proteção do Consumidor porque a lei especial afasta a geral — argumento de que se lança mão em memorial, com expressa alusão a um voto meu nos autos do RE n. 351.750 — francamente ilegais as resoluções, dizia, o argumento perece.


Também não resta dúvida no que tange à caracterização do cliente de instituição financeira como consumidor, para os fins do artigo 170 da Constituição do Brasil. A relação entre banco e cliente é, nitidamente, uma relação de consumo.

Vide meus votos nas ADI’s 3.090 e 3.100 e meu O direito posto e o

direito pressuposto, cit., págs. 244 e segs.

ADI 2.591 / DF

Como observei também em outra oportunidade, o Código define “consumidor”, “fornecedor”, “produto” e “serviço”. Entende-se como “consumidor”, como “fornecedor”, como “produto” e como “serviço”, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, o que descrito está no seu art. 2º e no seu art. 3º e §§ 1º e 2º.

Inútil, diante disso, qualquer esforço retórico desenvolvido com base no senso comum ou em disciplinas científicas para negar os enunciados desses preceitos normativos. Não importa seja possível comprovar, por a + b, que tal ente ou entidade não pode ser entendido, economicamente, como consumidor ou fornecedor. O jurista, o profissional do direito não perde tempo em cogitações como tais. Diante da definição legal, força é acatá-la. Cuide apenas de pesquisar os significados dos vocábulos e expressões que compõem a definição e de apurar da sua coerência com o ordenamento constitucional.

O art. 2º do Código diz que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. E o § 2º do art. 3º define como serviço “qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”. Assim temos que, para os efeitos do Código do Consumidor, é “consumidor”, inquestionavelmente, toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. Isso não apenas me parece, como efetivamente é, inquestionável. Por certo que as instituições financeiras estão, todas elas, sujeitas ao cumprimento das normas estatuídas pelo Código de Defesa do Consumidor.

É certo, no entanto, que o § 2º do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor há de ser interpretado em coerência com a Constituição. Para tanto se impõe sejam excluídos da abrangência por seus efeitos determinação do custo das operações ativas e da remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras na exploração da intermediação de dinheiro na economia.

A respeito dessa matéria deve dispor o Poder Executivo, a quem incumbe fiscalizar as operações de natureza financeira, o que envolve a fixação da taxa base de juros praticável no mercado financeiro.

A fixação dessa taxa não pode ser operada senão desde a perspectiva macroeconômica. Basta a menção, por exemplo, ao poder de multiplicação de moeda circulante em moeda escritural, que os bancos exercem de modo a receber a título de juros, pelo mesmo dinheiro materialmente considerado, em certos casos mais de três vezes o valor da taxa praticada. O volume de moeda adicional “criado” pelo banco corresponde a moeda escritural, isto é, a moeda bancária — moeda que, na dicção de Eugênio Gudin, “só se concretiza nos livros dos bancos, através de algarismos que passam de um a outro livro ou de uma a outra coluna. Esses algarismos são animados pela vontade das partes mas não saem dos estabelecimentos de crédito, onde nascem, circulam e desaparecem”.

Vou me deter um instante neste ponto, procurando desvendar essa poderosa capacidade de criação de riqueza abstrata de que os bancos desfrutam.

Quando um banco concede empréstimo a alguém, utiliza-se, para tanto, de moeda que recebeu de seus depositantes. Assim, admitindo-se que o banco depósitos igual a 100, alguém poderia supor que esse banco [o banco A] estivesse capacitado a contratar empréstimos, com B, C e D, no valor total de 100.

Essa suposição é, todavia, equivocada. E isso porque, a qualquer momento, um ou mais titulares de depósitos à vista no banco A poderão emitir cheques contra o banco depositário. Logo, é evidente que, se não o valor 100, ao menos uma parcela desse valor haverá de ser mantida em poder do banco A, a fim de que possa ele, tão logo sacados esses cheques, pagá-los. Essa parcela do valor 100, mantida em caixa pelo banco A, é chamada de encaixe (encaixe bancário).

Evidente que, se supusermos que aqueles depositantes que sacam valores de seus próprios depósitos o fazem para manter consigo os valores sacados, a parcela de encaixe do banco A será extremamente elevada, em termos percentuais. O quanto restaria para ser emprestado a B, C e D seria praticamente irrelevante.

Sucede, contudo, em primeiro lugar, que os depositantes no banco A, quando sacam cheques contra o banco depositário, fazem no, na maioria das vezes, para liquidar obrigações perante terceiros. E esses terceiros, naturalmente, depositam os cheques que receberam em um banco. Suponha-se somente existisse em determinada localidade o banco A: os credores que receberam cheques sacados contra o banco A irão depositá-los no banco A.


Em segundo lugar, ocorre que B, C e D — tomadores de crédito junto ao banco A — lançam mão desse crédito para efetuar pagamentos a terceiros, que, por sua vez, depositam os valores recebidos de B, C e D nesse mesmo banco A. Assim, é evidente que, ao contrário do que anteriormente se supôs, a parcela de encaixe do banco A, aplicada sobre o volume nominal dos depósitos, não será necessariamente elevada, em termos percentuais.

Resumindo: encaixe bancário é a parcela de moeda que o banco A mantém em seu poder para atender a eventuais quedas no volume total dos seus depósitos à vista.

Isto posto, teremos que, nas circunstâncias acima consideradas, o encaixe do banco A poderá ser igual, exemplificativamente, a 20% do volume total dos depósitos à vista que tiver recebido.

Naquelas circunstâncias — supondo-se existisse somente o banco A em determinada localidade e que nenhum dos titulares de depósito à vista nele tivesse sacado valores, contra esses depósitos, para mantê-los entesourados consigo, debaixo do colchão – — teremos que:

[i] – originariamente foram depositados 100 no banco A;

[ii] – o banco A emprestou 80 a B, C e D;

[iii] – os terceiros, que receberam pagamentos de B, C e D,

depositaram esses 80 no banco A;

[iv] – o banco A conservou 20% [= encaixe] desses 80,

emprestando 64 a E, F e G;

[v] – os terceiros, que receberam pagamentos de E, F e G,

depositaram esses 64 no banco A;

[vi] – o banco A conservou 20% [= encaixe] desses 64,

emprestando, em números redondos, 51 a H, I e J;

[vii] – os terceiros, que receberam pagamentos de H, I e J,

depositaram esses 51 no banco A;

[viii] – o banco A conservou 20% [= encaixe] desses 51,

emprestando, em números redondos, 40 a K, L e M;

[ix] – os terceiros, que receberam pagamentos de K, L e M,

depositaram esses 40 no banco A.

O banco A, assim, a partir dos 100 recebidos em moeda circulante de seus originários depositantes, terá emprestado 235, multiplicando por mais do que dois aquela quantidade de moeda circulante; terá 335 em depósito, recebidos de seus originários depositantes e dos terceiros que receberam pagamentos de B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L e M.

Eis como o banco A, a partir dos 100 que recebeu de seus originários depositantes em moeda circulante, pode “criar” um volume de moeda adicional no valor de 235.

O fato de, em verdade, não ser o banco A o único existente, ainda que em uma determinada localidade ideal, em nada altera a exposição até esse ponto produzida.

E assim é porque, ainda que alguns dos terceiros que receberam pagamentos de B a M e dos originários titulares de depósitos à vista no banco A não sejam clientes do banco A — mas sim do banco X e do banco Y — B e todos os demais, até M, e aqueles originários titulares de depósitos à vista no banco A em determinado momento receberão pagamentos em cheques sacados contra os bancos X e Y e os depositarão no banco A. A compensação entre créditos e débitos recíprocos é então feita nas chamadas câmaras de compensação.

Essa monumental multiplicação de moeda produzida pelos bancos sempre gera efeitos sensíveis, mas extremamente exacerbados, extremamente exacerbados quando a taxa de juros é elevada, como ocorre entre nós. Altas taxas de juros incidindo sobre uma base de depósitos inúmeras vezes multiplicada — para ficar somente no tema dos juros, sem avançar para o das tarifas — vale dizer, multiplicação de moeda a taxas elevadíssimas, isso é que explica o mais do que monumental lucro dos bancos, cujos montantes, por uma notável coincidência, foram divulgados pela imprensa no dia seguinte à sessão plenária, desta Corte, na qual votou o Ministro Nelson Jobim, 22 de fevereiro passado. Um deles lucrou cinco bilhões e meio em 2.005.

A circunstância de a taxa de juros ao consumidor ser muito elevada entre nós explica apenas parcialmente esse lucro que causa espanto. No anexo ao voto do Ministro Nelson Jobim lê-se que essa taxa — “taxa de juros ao consumidor” [repito: “ao consumidor”!] –– em 2.005 era de 56,85% ao ano.

Na verdade, porém, o sistema bancário, no seu conjunto, recebe muito mais do que esses 56,85% ao ano pelo crédito que concede, visto que, mercê do expediente da criação de moeda escritural, empresta mais de uma vez o mesmo dinheiro que recebeu de seus depositantes. No exemplo de que há pouco me vali, 100 recebidos em depósito a vista são transformados em 235, o que elevaria os juros percebidos pelo banco A de 56,85% a 133,59% ao ano. E, notem bem, meu exemplo é discreto, eis que em certos casos a quantidade de depósitos chega a ser multiplicada por três, o que elevaria a taxa de juros ao consumidor a mais de 170% ao ano.

Ora, essa poderosa capacidade de criação de riqueza abstrata não pode ficar sujeita a administração desde a perspectiva das relações microeconômicas, sob pena de comprometimento dos objetivos que o artigo 192 da Constituição visa a realizar, o desenvolvimento equilibrado do País e a satisfação do interesse da coletividade. Importa, no entanto, também considerarmos o descompasso existente entre a taxa de juros SELIC e as taxas efetivamente impostas pelos bancos a seus clientes. Taxa de juros SELIC é a “taxa média ajustada dos financiamentos diários apurados no Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC), para títulos federais”


É denominada básica para o mercado por ser aquela que o Estado, devedor peculiar, paga por seu endividamento e ao mesmo tempo sinaliza a política monetária implementada pelo Banco Central. Pois bem, a taxa de juros SELIC resulta amplamente ultrapassada nas contratações de créditos concedidos pelos bancos a todos os seus clientes, consumidores ou empresas, pessoas físicas ou jurídicas, precisamente aquelas contratações que operam a multiplicação de moeda e sua transformação em moeda escritural.

Deveras, a mera e simples comparação entre o montante da chamada taxa SELIC — que, sem nenhuma dúvida, é bastante elevada, se a considerarmos em relação à praticada em outros países — e a soma da efetivamente cobrada no plano de cada negócio individualmente considerado celebrado com os tomadores de crédito evidencia ser indispensável o efetivo controle da composição dessa soma. E não apenas nas hipóteses de relação entre banco, fornecedor de crédito, e cliente, pessoa física, senão também quando se trate de pequena ou média empresa. Pois aqui se instala — e de modo pronunciado — uma relação de dominação, em cujo pólo ativo comparecem os bancos, no pólo passivo, suportando-a, o devedor. Em certos casos, autênticas situações de dependência econômica.

O cliente do banco coloca-se sob os efeitos de uma relação de dominação, inclusive a que o abarca quando compelido a depositar em uma instituição financeira suas poupanças. Desejo dizer, com isso, que o Banco Central está vinculado pelo dever-poder de controlar vigorosamente a definição do custo das operações ativas e sobre a remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia.

Daí porque tenho como indispensável a coibição de abusos praticados quando instituições financeiras acrescentam à taxa base de juros, a chamada taxa SELIC, taxas adicionais de serviços e outros que tais. Vale dizer: tudo quanto exceda a taxa base de juros, os percentuais que a ela são adicionados e findam por compor o spread bancário, tudo isso pode e deve ser controlado pelo Banco Central e, se o caso, pelo Poder Judiciário. Não incide, contudo, sobre esta matéria — repito: definição do custo das operações ativas e remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia — não incide, dizia eu, o micro sistema do Código de Defesa do Consumidor, mas sim o Código Civil. O fato é que tudo quanto exceda o patamar da taxa SELIC é pura relação contratual. Por óbvio, a abusividade e a onerosidade excessiva na composição contratual dessa taxa, além de outras distorções, são passíveis de revisão nos termos dos preceitos aplicáveis do Código Civil — e, repito ainda, não somente em benefício do cliente pessoa física, mas também em especial das pequenas empresas, em relação às quais a dependência econômica pode estar francamente caracterizada. É necessário não perdermos de vista o poder do oligopólio constituído pelas instituições financeiras, capazes de, na multiplicação de moeda circulante em moeda escritural, produzir bem público. O que acima demonstrei, explicando os mecanismos de criação de moeda escritural e como estão constituídos os lucros das instituições financeiras, é impressionante.

Não acompanho o voto do eminente Ministro Nelson Jobim, que faz distinção entre “operações bancárias” e “serviços bancários”, para excluir plenamente da incidência da norma veiculada pelo § 2º do artigo 3º da Lei n. 8.078/90 as primeiras, o que, em rigor, equivale a dar-se procedência à ação direta. Com efeito, afastadas as “operações bancárias”, o Código de Defesa do Consumidor incidiria unicamente, na dicção do Ministro Nelson Jobim, sobre serviços autônomos prestados pelo banco, tal como outro prestador qualquer, recebendo remuneração específica por esse serviço [custódia de valores, caixa de segurança, cobrança de títulos, remessas financeiras, compra e venda de títulos e outras desse estilo]. Por outro lado, afirmar que os clientes bancários das operações bancárias estariam submetidos a sistema próprio de proteção é dizer que não estão protegidos, visto que as resoluções n. 2.878 e n. 2.892/2001 afrontam escancaradamente o princípio da legalidade. A proteção dos clientes bancários nas operações bancárias não é matéria atinente ao funcionamento das instituições financeiras. Essas resoluções são despidas de significação normativa, são — para lembrar Fernando Pessoa — são papel escrito com tinta, onde está indistinta a diferença entre nada e coisa nenhuma.

Sendo assim, julgo parcialmente procedente a ADI, de modo porém diverso do que o fez o Ministro Carlos Velloso, para o fim exclusivo de afastar exegese que submeta às normas da Lei n. 8.078/90 — Código de Defesa do Consumidor — a definição do custo das operações ativas e a remuneração das operações passivas praticadas por instituições financeiras no desempenho da intermediação de dinheiro na economia. Isso sem prejuízo do controle, pelo Banco Central, e do controle e revisão pelo Poder Judiciário, nos termos do disposto no Código Civil, de eventual abusividade, onerosidade excessiva ou outras distorções na composição contratual da taxa de juros, no que tange ao quanto exceda a taxa base.

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