Olhar para o passado

Primeiro de maio: um dia de festa e comemoração?

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1 de maio de 2006, 15h11

O império americano deu seus primeiros passos em direção à grandeza utilizando um imenso exército de milhões de imigrantes que vinham tentar a aventura na suposta terra da oportunidade. Ao fugir da desesperança em sua terra natal encontravam na Terra prometida um monumental formigueiro humano aonde não faltava ocupação. O extraordinário crescimento daqueles tempos abria suas portas a todos os homens de boa vontade, ou seja, aqueles dispostos a mourejar doze horas diárias por seis dias da semana.

Nesta furiosa torre de babel de atividade fervilhante e imensa miséria é que veio, em 1872, um jovem de 17 anos chamado Albert Spies, que logo se afundou naquele turbilhão fixando-se como operário em fábricas de móveis. Trazia consigo, contudo, uma marca da maldição para aqueles tempos ásperos, pois, sabia ler e escrever. Assim, nos anos seguintes, foi sendo atraído para a atividade sindical como interlocutor bilíngüe de uma classe operária que em sua grande maioria, só entendia a língua de seu país de origem. Este conhecimento que fazia com que fosse tão útil às lutas dos trabalhadores é que conduziu seus passos em direção a uma esquina da história em que teria um encontro com a tragédia.

As coisas estavam muito tensas em Chicago em primeiro de maio de 1886 porque após alguns anos de luta pela jornada de oito horas diárias, neste dia eclodiu a greve geral unificada em torno de tal reivindicação. Os piquetes começaram a defrontar-se com a polícia e no segundo dia da paralisação, nos portões da empresa International Harvester, a repressão foi tão violenta que resultou na morte de seis grevistas e ferimentos em muitos outros. No dia seguinte, o movimento sindical convocou diversos comícios simultâneos e Albert Spies foi encarregado de discursar na Praça de Haymarket, sem imaginar que iria dar seu primeiro passo em direção ao cadafalso.

A polícia esperou os discursos se esgotarem e o comício se esvaziar. Quando restavam apenas cerca de 200 pessoas, as autoridades invadiram a praça disparando com armas de fogo para dispersar os manifestantes. No meio da confusão, alguém que jamais foi identificado, atirou uma bomba nas forças da repressão, matando sete agentes policiais.

Aos trabalhadores era permitido ser morto pela polícia como ocorrera no dia anterior, mas o contrário constituía exasperante ofensa ao poder público. A fúria das classes dominantes entrou em ebulição e desencadeou uma busca frenética de culpados aptos a balançar na forca como troféus industriais. A prisão de centenas de pessoas de nada adiantou e não se conseguiu identificar os autores do bombardeio. Assim, depois de alguns meses desta caçada humana, para saciar a frustração dos centros de poder desafiados, resolveram prender oito operários imigrantes alemães para servir como bodes expiatórios e satisfazer a sede de vingança patronal.

Não havia qualquer prova de que estes homens tivessem conspirado para lançar o imperdoável artefato explosivo contra os agentes policiais. A acusação, portanto, centrou-se na tese de que, embora não se pudesse saber quem preparou e atirou a bomba, a mão que espalhou a morte, teria se movido sob a inspiração das idéias daqueles temidos agitadores.

Albert Spies que falava e escrevia em inglês e alemão e tinha idéias para dizer aos trabalhadores tornou-se, então, um dos principais suspeitos. O tribunal das classes dominantes promoveu uma farsa de julgamento que, sem nenhuma prova razoável, condenou um dos acusados (Neebe) a quinze anos de prisão e os demais (Spies, Parsons, Fischer, Engel, Lingg, Schwabb, Fielden), à morte por enforcamento. Em 11 de novembro de 1887, o operário bilíngüe foi enforcado juntamente com Parsons, Fischer e Engel. Em de junho de 1893, o julgamento foi anulado e foram soltos os que ainda não haviam sido executados.

O mundo não se recorda de Albert Spies e a única marca visível de sua passagem por este território de combate está grafada em pedra num monumento de homenagem aos chamados “Mártires de Chicago” que existe naquela mesma cidade. É uma frase que estava no texto de despedida escrito por Spies endereçado aos seus executores: “haverá um dia em que o nosso silêncio será mais poderoso do que as vozes que hoje vocês estrangularam”.

Em 1889, o representante da American Front of Labour, no Congresso da Associação Internacional de Operários, em Paris, convenceu os participantes de que em homenagem aos enforcados, o primeiro de maio, deveria ser o dia dos trabalhadores para marcar em todo o mundo a luta por suas reivindicações. Apenas nos EUA, aonde o sangue foi derramado, é que as classes dominantes (Presidente Groover Cleveland) se anteciparam e decretaram o dia 5 de setembro como sendo o Dia de Trabalho, que se tornou um grande festival reservado para eufóricos piqueniques em que os trabalhadores festejam aprazível feriado.

Desde então, muita água rolou sobre a ponte, muito sangue foi derramado e nos demais países de todo o resto do mundo, o primeiro de maio fixou-se definitivamente como o dia dos trabalhadores, envolvendo enormes manifestações. O mundo mudou bastante desde aqueles tempos e, se as coisas neste terreno não vão muito bem, com certeza, o mundo do trabalho deixou de ser a sucursal do inferno que era a fábrica do século 19.

Não é por nada que muita gente boa (e muita gente ruim) engajou-se na transformação deste marco de referência, fazendo que o de dia de luta virasse um dia de festa. No Brasil, mais recentemente, incorporaram a comilança, sorteios de automóveis, camarote vip e shows de música sertaneja. Em São Paulo, milhões de pessoas participam dos eventos rivais promovidos pela CUT e pela Força Sindical que batalharam palmo a palmo na disputa de quem conseguia reunir mais comensais no festejo.

Estas direções sindicais acreditam que o trabalhador tem muitos dias e muitas formas de lutar por seus interesses e merece comemorar anualmente um colorido e eufórico feriado. A forma da dominação mudou e não se lida com os dirigentes sindicais com os mesmos métodos brutais de antigamente.

Nos dia de hoje, o capital até colabora com os festejos doando alguns milhões para custear os espetáculos de primeiro de maio. Para que se faça uma grande festa que construa uma sensação tão alegre que ajude a esconder que este não é um tempo de festa. Não é mais preciso atirar em comícios ou enforcar operários já que o lucro se extrai através de métodos tão suaves como terceirização, precarização, cooperfraudes, locação de mão de obra, etc.. Com estes artefatos tão pouco sangrentos, o Capital transferiu para os seus cofres cerca de R$ 1,3 trilhão da renda dos trabalhadores nas últimas duas décadas.

Por outro lado, enormes contingentes de trabalhadores tornaram-se desnecessários nesse supostamente admirável mundo novo tão “flexibilizado e globalizado” e esta é uma das razões que permitem o festejo daqueles que não foram, ainda, expulsos do paraíso da carteira assinada.

A festa do Trabalho, como a Parada Gay, é parte da vida de uma grande e maravilhosa cidade, com tantas coisas boas e bonitas. Em volta deste mundo tão alegre e palpitante, há um cordão sanitário firme e seguro deixando de fora aquela multidão dos desnecessários. Para eles, não há festas e nem trabalho. Não dispõem de emprego e, portanto, não possuem a renda que seria o passaporte de entrada para este admirável mundo novo. Foram expulsos para periferias cada vez mais distantes, onde o único serviço público disponível é a polícia que se ocupa em que não atrapalhem com a sua feiúra e a sua tristeza.

As grandes festas do Dia do Trabalho pressupõem invisibilidade daqueles que se tornaram desnecessários nestas recentes décadas de aprofundamento do desemprego estrutural. Somente em São Paulo, cerca de dois milhões de desempregados vem sendo ensinados de que estão na miséria porque não teriam sido suficientemente “competitivos” num maravilhoso mundo moderno que é duro, mas que seria o único possível.

Há 120 anos atrás, Albert Spies começou sua marcha para a fôrca encarapitado sobre um caixote, vociferando que aquilo que viviam não era um destino inexorável. Explicava que o fato de existirem ricos e pobres não é um fato da natureza como existirem cachorros e ratos, mas fruto das escolhas das pessoas. Explicava que um outro mundo é possível. A lembrança de sua tragédia é uma forma importante de entender o mundo presente e aquela voz silenciada de modo tão brutal ainda tem algo a nos dizer com relação ao que acontece de perverso lá no andar de baixo.

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